Para o professor Antonio Candido, dentre os poetas que vincularam decididamente suas obras ao esforço consciente de dar corpo a uma literatura assumidamente nacional, aquele a quem o título “romântico” melhor se assenta é Castro Alves.
O professor apoia sua argumentação na análise das obras das chamadas três gerações românticas, cujos poetas apontados como mais característicos são Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo e o próprio Castro Alves, para as Primeira, Segunda e Terceira Gerações respectivamente.
Preso ainda às influências neoclássicas da poesia árcade, a poesia de Gonçalves Dias, em que pese a inovação temática e a adesão formal pugnada por Ferdinand Denis, modulando a saudade da terra natal por um sentimentalismo comedido, evita os arroubos egóticos, que comparecem emblematicamente na obra de Álvares de Azevedo, e os voos grandiloquentes do condor de Castro Alves.
A obra breve e radicalmente egocêntrica de Álvares de Azevedo, se por um lado traduz para a língua literária brasileira o ‘modus operandi’ do individualismo romântico que se espalha pelo mundo a partir da França, minimiza a temática nacional, pelo mergulho mesmo nesse profundo poço íntimo, povoado por fantasmas de pesadelos, cismas, presságios e trevas, em que consistem as manifestações do inconsciente atormentado.
Essa temática nacional, no entanto, a partir da segunda metade do século XIX, assume crescente interesse, sem dúvida em função da realidade política que culminará com a abolição dos escravos e com a proclamação da República.
Concordando com o professor Antonio Candido, da “Formação da Literatura Brasileira”, e parafraseando Paul Eluard, para o qual o maior poeta de França “continua sendo Victor Hugo, infelizmente”, pode-se afirmar que senão o maior poeta romântico, ao menos o mais praticado até hoje é Castro Alves, por incorporar intimoratamente a luta pela República e pela abolição da escravatura como temática francamente nacional.
Beneficiado sem dúvida pelas experiências estéticas de Gonçalves Dias e Álvares de Azevedo, sem oferecer sua obra como balanço das anteriores, o poeta baiano, sintonizado com as aspirações libertárias de sua época, em que, mais que Lamartine e Musset, pontificam Byron e Hugo, convoca: para sua épica, um personagem até então ignorado ou mitigado, o negro; para sua lírica, uma sensualidade antes coberta de véus ou reprimida e macerada na incompletude o ato sexual; e, para a linguagem poética, um campo semântico cujo recorte vocabular foi contornado ou evitado, por corresponder a agentes sociais estigmatizados – as camadas populares, com seu falar “errado”, e os negros, com seu hibridismo linguístico, evocatório das línguas e tradiçoes africanas de origem.
Se considerarmos, para o bem e para o mal, que o protótipo de autor romântico, em escala ocidental, é Victor Hugo, seremos levados a concordar com o professor Antonio Candido, quando este constata o amplo sucesso conquistado por Castro Alves, em vida e até nossos dias.
O projeto estético do poeta baiano, seguindo os passos do “poeta de França” – cuja cerimônia de despedida, quando de sua morte, teria reunido em procissão mais de um milhão e meio de parisienses –, buscou lançar suas raízes pelos mais amplos territórios de seu humanismo liberal, no qual a República, a luta antiescravagista, o pan-americanismo – numa época em que esse termo ainda não estava associado ao imperialismo norte-americano – e o amor físico pela mulher convivem entre exageros de voluntarismos, exaltações e rompantes teatrais.
A figura do bardo descabelado que espanca as trevas com seus versos plenos de luz, de sentimentos de justiça e igualdade, ou de néctar amoroso, está indissociavelmente ligado a esse poeta, cuja retórica dramática sem dúvida estabelece diálogo direto com o teatro, que amou e praticou.
Se hoje nos parece anacrônica a poesia retórica, plena de gestos, imagens visuais e sons marcantes, credite-se isso à fadiga do público, exposto desde o sucesso estrondoso da poesia declamatória, que encontrou nas performances de Castro Alves modelos prototípicos.
Como não poderia deixar de ser, ao inverter a direção do vetor individualista de Álvares de Azevedo – todo ele, o vetor, voltado para áreas íntimas e sombrias da interioridade egótica –, Castro Alves encontrou a sua frente uma realidade em vias de transformação, a qual convocava não uma atitude contemplativa ou irônica, mas uma intervenção marcada pelo protagonismo militante.
Enquanto que o romantismo conservador da Primeira Geração romântica, sob as asas do Instituto Histórico e Geográfico, praticava um sentimentalismo comedido cuja maior ousadia foi eleger o índio idealizado como símbolo da pátria; e enquanto a Segunda Geração, ultra-romântica, professava o satanismo, as trevas e o sarcasmo escapistas como mecanismos de negação de condições desfavoráveis a proliferação de novas ideias; a Terceira Geração romântica encontrou foco no mundo exterior para onde apontar suas críticas militantes na forma de versos.
Em certo sentido, a poesia de Castro Alves, comungando com Álvares de Azevedo o individualismo voluntarista, reorienta suas energias para o campo social e, ao fazê-lo, conquista uma repercussão que o poeta paulista, pelo intimismo, não logrou alcançar.
O ultra-romantismo de Álvares de Azevedo não o levou às formulações estéticas do poeta baiano porque estas derivam de condições de época que escaparam ao primeiro. Os horizontes políticos e sociais em cujo contexto a obra de Álvares de Azevedo vicejou eram desfavoráveis a utopias políticas e existenciais, uma vez que a Independência não resultara em imediato florescimento econômico e cultural e que os ventos da República e da abolição só começarão a soprar com maior intensidade após meados do século e a morte do mesmo Álvares de Azevedo.
O período de existência de Castro Alves coincide com o de ascensão das lutas sociais e políticas que culminarão com a libertação dos escravos e com a República – eventos aos quais o poeta não assistirá, mas os quais ele estará definitivamente ligado.
Esse período assiste o surgimento de novos agentes sociais, que buscarão expressão na política, mas também na literatura.
Obviamente, os ventos que sopram pelo mundo, ou melhor, da Europa para o restante do globo, são também de mudança, refletidos nas revoluções agrárias, populares e nacionais a partir de meados do século XIX.
Em que pese o descompasso cultural apontado por historiadores entre eventos dos dois lados do Atlântico e entre os países dos hemisférios norte e sul, as contradições políticas, sociais e econômicas do Segundo Reinado brasileiro estão permeadas por outras derivadas da Europa.
Assim, ainda que com atraso, a retórica hugoana de combate ao despotismo encontra nos versos de Castro Alves um digno representante mestiço. Não deixa de ser egenhosa a equação do poeta baiano para um problema não de menor magnitude para seu projeto literário: o da identificação e eleição do oprimido local para assumir a posição por ele ocupada correspondentemente na poesia combativa de Victor Hugo.
Na França revolucionária, o oprimido literalmente armou barricadas contra os opressores. Victor Hugo colhe nas ruas de Paris as personagens a serem redimidas por seus versos heróicos. O célebre quadro de Delacroix, “A liberdade guiando o povo”, traz ao lado da musa republicana o pequeno Gavroche, personagem do “Poeta de França”, brandindo pistolas sobre uma pilha de cadáveres.
Porém, no caso brasileiro, onde estavam os rebeldes oprimidos para sacudir a monarquia reacionária? Os primeiros românticos – que deveriam ser a vanguarda revolucionária –, aqui, eram empregados de Pedro II. O próprio Imperador elegia-se incentivador das artes românticas – e obras históricas recentes imputam-lhe mesmo o sonho malogrado de tornar-se o primeiro presidente da República do Brasil.
Ao destacar o papel do negro em sua poesia, Castro Alves localizou o elemento a ser tematizado por sua musa militante. Porém, nesse particular, não se tratou de resolver apenas uma questão de atualização literária, mas de convergência entre maturação de condições políticas e sociais de época e projeto literário conscientemente desenvolvido.
Para assumir suas feições integrais no Brasil, o romantismo teria de encarar sua dimensão de engajamento nas causas liberais. Gonçalves Dias não o fez por conservadorismo – que se estenderá até a obra de José de Alencar, cujas cartas ao Imperador contra a libertação dos escravos são conhecidas da historiografia brasileira –; Álvares de Azevedo, em seu liberalismo democrático, não o fez por ausência de condições de época e pela brevidade de suas existência; fê-lo Castro Alves.
Ao se constituir intérprete das aspirações libertárias da época, Castro Alves golpeou o indianismo escapista e o individualismo ensimesmado, dando sobrevida a uma corrente literária que na Europa, contestada pelo nascente realismo, entrava em franco declínio e fragmentação.
O impacto da obra de Castro Alves é tal que, embora o poeta tenha morrido em 1871, na libertação dos escravos, em 1888, portanto 17 ano depois, foram seus os versos os mais lembrados - ainda o são hoje.
Ao mobilizar as luzes da razão em favor das causas socialmente justas, o poeta baiano logrou neutralizar uma dimensão excessivamente irracionalista do romantismo, pela permuta do mergulho egótico, mórbido e suicida, pela ação voluntarista, visionária, arrojada – e talvez igualmente temerária e suicida – em favor dos oprimidos.
À luz dos dias de hoje, tendo seus versos sido publicados, lidos e declamados à exaustão, pode parecer algo de menor importância sua franca e comovida defesa dos negros e sua equação literária democrática, a assegurar ao oprimido um lugar não artificial e digno em nossa literatura.
Todavia, se considerarmos que somente o século XXI garantiu no Brasil, por meio de uma lei federal, a presença de conteúdos culturais relativos à afrodescendência nos currículos oficiais de nossas escolas, temos de reconhecer o papel significativo de Castro Alves, não só no que tange à sua coragem política, mas também no que diz respeito a seu gênio artístico, que alargou o cânone literário brasileiro para além dos modelos europeus ao incorporar em sua poesia de forma digna um dos pilares étnicos de nossa cultura.
A forma como o negro comparece na obra de Castro Alves inaugura uma nova fase não só da poesia romântica como de nossa literatura. E, assim como Victor Hugo fizera na França, Castro Alves leva o romantismo ao seu clímax, após o qual tudo terá de ser feito de modo diferente.
Afrânio Coutinho, com relação a esse particular, em ensaio introdutório à “Poesia Completa de Castro Alves”, publicada pela prestigiosa editora Nova Aguilar, afirma mesmo que o poeta entrega a poesia brasileira no limiar do realismo.
Hoje, em face da lei 10.639, há um renovado interesse na obra desse poeta, que viveu pouco e escreveu muito. Todavia, a crítica, os livros didáticos e os programas governamentais precisam vencer a inércia preconceituosa que envolve obras de teor popular, entre as quais se encontra a do poeta baiano.
Sua sintaxe algo arabesca, sua expressividade vertiginosa e seu vocabulário pouco palatável ao gosto neoclássico que rege a crítica ainda hoje – a qual em geral fala mais para a academia ensimesmada do que para a realidade da produção simbólica – testa os valores do leitor.
Sua grandiloquência, refletida em adjetivações monumentais – e por vezes incongruentes –, e seu apreço por antíteses e hipérboles, evocatórias de recursos caríssimos ao barroco, respondem a um projeto literário apoiado em agentes sociais – as camada populares – para os quais a “finesse” pouco significa, mas os quais pugnam pelo acesso à literatura com legitimidade.
Sua poesia incorpora ainda recursos do teatro e da oralidade, o que a coloca numa fronteira de gêneros extremamente fluida e fecunda. Não constitui, portanto, defeito, mas virtude, uma vez que rejeita o gosto livresco das elites, mais afeitas à traça de papel do que à literatura viva, que rejeita classificações rígidas, juízos hierarquizantes e leitos de Procusto.
Obviamente, como toda obra humana, artística ou não, a produção de Castro Alves tem oscilações. Nela há pontos de realização mais elaborada e outros de rotina da escrita. Todavia, se o juízo de sua obra for estabelecido por uma teoria que lhe é alheia, o resultado só lhe poderá ser desfavorável.
Muito das objeções feitas ao poeta baiano derivam de pressupostos apriorísticos assentados no “bom gosto” e no “bom senso”, seja lá o que isso for, das críticas neoclássicas ou que com elas flertam. Não por acaso semelhantes objeções recaem sobre obras de outros autores de nossa literatura, tais como Gregório de Matos, Aluísio Azevedo, Oswald de Andrade, Jorge Amado, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos entre outros.
É o caso de perguntar onde se encontram os defeitos, se nos autores objetos da crítica ou na própria crítica mergulhada na ilusão de valores esternos e absolutos de equilíbrio, perfeição e beleza – invariavelmente eurocêntrica.
terça-feira, 13 de julho de 2010
sexta-feira, 2 de julho de 2010
Gregório de Matos, séculos de polêmicas
O mundo que se apresenta ao poeta Gregório de Matos na segunda metade do século XVII é um mundo em transição, no qual se vão entrelaçar características de um tempo que se afasta, e que não voltará, e de outro, que se instaurará por um longo período da cultura ocidental.
O tempo que se afasta é aquele anterior ao das grandes navegações, regido pelos ciclos das colheitas e pelo deslizar das estrelas no céu, tempo em que a ligação estreita com a terra conferia ao homem um sentimento de pertença, segurança e de equilíbrio do universo em face de uma aparente imutabilidade de tudo.
O tempo que dá sinais de sua chegada anuncia-se primeiro na Europa, e paulatinamente se vai estendendo pelo globo à medida em que o comércio marítimo se intensifica e que as nações européias em melhores condições aceleram seus projetos de colonização da América, da África e da Ásia.
O tempo que será definitivamente superado refere-se ao que a história convencionou chamar Idade Média, e o tempo que já cruzou o horizonte e convive com a resistência da contra-reforma é a era de predomínio do capital que, dos estágios inicias da acumulação comercial, atingirá a fase financeira ao final do século XIX, tendo passado pelas convulsões globais decorrentes da revolução industrial, cujo epicentro foi Inglaterra com sua Londres afogada na fumaça das chaminés das fábricas movidas a carvão, e da revolução social e política burguesa, representada pelas conflagrações da França de 1789.
Gregório não verá os iluministas franceses “enviarem Deus de volta a céu”, nas palavras de Sarte, mas terá oportunidade de participar do turbilhão ideológico característico da época, em que a reação católica ao projeto renascentista assumirá contornos de disputa generalizada no campo da fé, mas principalmente nos campos filosófico, político e estético.
O tempo que envolve o poeta baiano, do início de sua juventude à sua morte, é uma encruzilhada na qual a Inquisição, mais agressiva em seus estertores, rivaliza com uma cultura laica que vai germinando e ganhando espaço na Europa por sob as disputas religiosas entre católicos e protestantes.
Numa evolução contraditória e desarmônica, os diversos projetos coloniais com sede no território europeu refletem maior identidade com a nova era do capital ou maior distanciamento em face das transformações que já estão em curso e que se operarão de maneira vertiginosa a parir do século XVIII.
No caso das nações ibéricas, na proporção das opções realizadas pelos respectivos governantes, as concepções medievais de mundo agiram com um pesado fardo, cujas consequências implicaram em sério descompasso em relação ao desenvolvimento das demais nações européias.
Estudante de direito da Universidade de Coimbra, Gregório de Matos foi mergulhado na escolástica neoplatônica, cujo primado da fé sobre a razão, defendido por Santo Agostinho, estava ainda aquém das formulações de Tomás de Aquino, o qual, ao introduzir elementos de Aristóteles nas formulações católicas, aliviou-a um tanto de sua carga conservadora e excessivamente moralista.
Porém, uma coisa eram as aulas na Universidade, outra era a vida dos estudantes, entre os quais Gregório, que, com sua fama de repentista e músico habilidoso, reinava como um menestrel algo medievo, cujas paródias e improvisos faziam a alegria dos colegas de turma e a dor de cabeça dos docente, vítimas das troças relatadas por seus biógrafos – por mais que sua biografia seja lacunar, duvidosa e mesmo improvável, nalguns casos.
Em Coimbra, um pé na doutrina agostiniana das classes de Direito assimilada compulsoriamente, e outros nas tunas estudantis farristas e edonistas, Gregório incorpora a condição do intelectual da época, dividido entre uma doutrina que professa a imutabilidade das coisas e um mundo que se vê e se sente em tumulto e transição, um mundo em permanente desequilíbrio.
Na poesia de Gregório, até o fim, essas dimensões radicalmente opostas se desafiam, sem resultarem quer em exclusão mútua, quer em síntese, ainda que transitória. Em sua obra conviverão os poemas para as prostitutas do cais e aqueles de compungida devoção a Deus, nos quais o perdão é buscado a custo de retórica arguta, de técnica literária segura e de um, acusam os críticos, elevado sentimento de culpa, engenhosamente urdido por versos cheios de jogos de palavras em que não faltam volutas e esmero.
Sua permanência em Lisboa por longo período, após breve retorno à sua Bahia, o colocará, agora a condição de juiz de Direito, em contato com um outro Portugal, diferente daquele da vida universitária em Coimbra. A corte, com suas novidades aburguesadas e com seu cosmopolitismo de periferia européia, alargará suas experiências e mais ainda sua sensibilidade, a qual, no entanto, revelam seus poemas, jamais se desprenderá da base religiosa profundamente moralista de seus anos de juventude.
Essa longa permanência em Lisboa será responsável pela consolidação de sua formação intelectual, pelo seu sucesso enquanto homem do Direito e também por sua decadência.
Ainda que a corte lusitana fosse por essa época uma capital periférica da Europa, por lá circulavam, ainda que sob o crivo da censura inquisitorial, o que de mais moderno – e permitido – havia na época. Metrópole de um vasto sistema de colônias espalhado pela Terra, e se refazendo do período de domínio espanhol, Lisboa oferecia àqueles no Império voltados para as letras o que de mais dinâmico havia em termos de vida intelectual.
Ter caído em desgraça com Pedro II de Portugal e retornar ao Brasil derrotado, assim, significou para o poeta baiano um destino de poucas venturas e muitos dissabores, que não cessarão de aumentar ao longo dos anos em função de suas desavenças com os governantes e mais ainda de sua língua ferina, que lhe valerá a alcunha de Boca do Inferno até nossos dias.
Se as paródias e sátiras em versos já em Lisboa produziram seus estragos – que foram tolerados mais pela posição de juiz desfrutada do que pelo acolhimento nunca unânime, particularmente da parte dos afetados diretamente por elas –, mais ainda tiveram impacto na colônia, em que a vida intelectual se limitava à parca burocracia voltada para a coleta de impostos e à ação dos religiosos, com os quais Gregório se vai indispor e aos quais vai atacar com virulência igual, senão maior, à devotada aos governantes dos quais se torna desafeto e tormento.
Agradeça-se, assim, à indisposição da corte lisboeta em tolerar Gregório-jurista-político, descomprometido com Pedro II de Portugal, o questionadíssimo surgimento da literatura brasileira, na pessoa do seu mais questionado e controvertido poeta.
De volta à Bahia, à medida que Gregório se vai indispondo com o meio intelectualmente restrito, representado em última instância pelos governantes – principalmente o governador Câmara Coutinho – e pelo clero, vai firmando sua fama de amante da capoeira, da boêmia e rodas populares, do repente, do lundu – do qual, segundo Nelson Werneck Sodré foi uma espécie de rei – e das mulatas do cais.
Esse mesmo menestrel erudito, que aportou na colônia com o cargo de vigário geral garantido, caído aqui também em desgraça, passa agora a peregrinar com sua musa irônica, maledicente e paródica por tavernas, fazendas e sítios, a semear sua produção acérrima, que circulará oralmente entre risos e galhofas.
Tanto Nelson Werneck Sodré quanto o professor Segismundo Spina, ao tratarem do poeta baiano, chamam a atenção para a situação de insulamento intelectual vivida por Gregório de Matos em face da praticamente inexistente vida intelectual brasileira daquele período. Proibida a imprensa, restrito o embrionário sistema de educação as meios religiosos voltados para a catequese e vetada a interlocução com a burocracia dirigente em função mesmo das indisposições referidas, restou ao poeta voltar-se para os meios populares e boêmios – os quais nunca lhe foram alheios –, cuja cultura eminentemente oral lhe garantia o menos, ainda que de forma miserável, existência enquanto indivíduo e enquanto artista.
Concordando com aqueles que apontam a obra de Gregório como o ponto inicial da literatura brasileira – caso, por exemplo, de Haroldo de Campos de “O sequestro do barroco na ‘Formação da Literatura Brasileira’” – considero que a obra do poeta baiano decorre de duas mortes: a primeira, quando de sua partida definitiva de Portugal por razões políticas; a segunda, quando de sua recusa de acomodação aos molde limitados da elite baiana da época, em relação à qual se sentiu desconfortável e inadaptável.
Quando morreu o juiz de Direito lá e o membro da elite aqui, restou para nossa sorte o menestrel polêmico, cuja obra, disputada e rejeitada por portugueses e brasileiros, não cessa de se oferecer como campo de discussão nem sempre e quase nunca cordial.
A professora Maria de Lourdes Teixeira, na linha do professor Spina, em sua biografia “Gregório de Matos”, destaca o papel exercido pelo governador substituto de Câmara Coutinho, dom João de Lencastro, o qual, admirador do poeta, disponibilizou no palácio do governo meios para que o público fizesse registrar os poemas de Gregório em circulação por época de sua administração. Dessa coletânea apógrafa derivaria, segunda a autora da biografia, a profusão de textos atribuídos indevidamente ao poeta, que em algumas ocasiões talvez os interpretara em público sem contudo se autor deles – muitos dos quais constantes da coleção organizada por James Amado no ano de 1969.
Esse ‘corpus’ literário, polêmico como o poeta que se constituiu a partir de manuscritos apócrifos e que não parou de crescer desde o século XVII, foi objeto de estudo de importantes eruditos, entre os quais Sílvio Romero e José Veríssimo, cada qual e sua respectiva “História da literatura brasileira”, o primeiro, reconhecendo no poeta baiano o fundador de nossa literatura, o segundo rejeitando-o e agrupando-o inclusive com os espanhóis, em razão de atribuir a eles a propriedade do barroco praticado por Gregório – polêmica que evolverá no século XX outros eruditos, entre os quais além dos já citados, Afrânio Coutinho, considerado pelo professor Alfredo Bosi um especialista do Barroco.
Amado e rejeitado, a depender dos pontos de vista, os poemas de Gregório e aqueles a ele atribuídos são de diversa natureza, e têm sido grupados segundo os pontos de vista adotados por críticos, historiadores e teóricos.
De um determinado ponto de vista temático, há que os classifique da seguinte maneira como líricos, sociais, fesceninos (ou simplesmente pornográficos), satíricos, religiosos, filosóficos e encomiásticos (de homenagem). Outros pontos de vista realizam outras formas de classificação, mais, ou menos, distante da aqui citada, nenhuma sendo necessariamente excludente, uma vez que o poeta baiano foi um verdadeiro polígrafo: suas sátiras são verdadeiras crônicas de costumes, algumas de suas composições populares são verdadeiros romances, no sentido medievo, assim como alguns de seus sonetos são perfeitas paródias, como na que Gregório de Matos mete sua colher entre o Padre Vieira e seu irmão, Bernardo Vieira, que, trocando, sonetos entre si, jamais sonharam com o triângulo formado com a intervenção do Boca do Inferno.
James Amado, no prefácio ‘A foto proibida há 300 anos’ à coleção “Obras completas de Gregório de Matos – Sacra, Lírica, Satírica, Burlesca”, por ele organizada a partir da pesquisa em 25 códices manuscritos dos séculos XVII e XVIII e em obras do licenciado Manuel Pereira Rabelo e de Araripe Jr., faz a defesa do poeta baiano como iniciador de nossa literatura, apoiado no argumento de distanciamento do poeta em relação barroco espanhol vigente e de manifestação de identidade brasileira em sua obra, em diferenciação da portuguesa, pela incorporação da fala e da cultura popular, características das camadas pobres e marginalizadas da população às quais Gregório se voltou e às quais refletiu.
Sua defesa, como não poderia deixar de ser em se tratando do Boca do Inferno, expressa indignação em relação à crítica que ou ignora, ou combate ou exclui a poesia gregoriana do cânone literário brasileiro. Não por acaso, o poema que inicia essa vasta coleção e aquele em que o próprio poeta anuncia sua conversão ao popular:
“Cansado de vos pregar
Cultíssimas profecias,
Quer das culteranias
Hoje o hábito enforcar.”
Concordemos ou não com o insigne pesquisador, a quem se deve o esforço de reunião da poesia gregoriana, em letra impressa, de modo tão abundante, o fato é que não se pode tratar da origem da literatura brasileira sem se recorrer a essa obra que, reunida desde 1969 em 7 volumes e 1800 páginas muito bem cuidadas, é sementeira de polêmicas infernais, e que em nossa literatura se desdobra, em termos de língua ferina, obras como as de Oswald de Andrade e Stanislaw Ponte Preta, para ficarmos apenas em duas citações do próprio James Amado em seu prefácio.
quarta-feira, 23 de junho de 2010
O caso Morel (ou moral?), de Rubem Fonseca
A instauração da ditadura militar no Brasil, cujo recrudescimento, paulatino até o AI-5, vertiginoso após ele, teve impacto direto, amplo e profundo nos meios artísticos intelectuais, que, tendo vivido um período mais alargado de democracia e liberdade de expressão a partir do final da Segunda Guerra, se viu mergulhado na mais absoluta e truculenta censura desde o golpe do Estado Novo.
Inicialmente perplexa ante o aziago evento de 1º. de abril de 1964, e acreditando nas promessas de rápida restauração dos mecanismos democráticos institucionais, feitas por Castelo Branco, após a suspensão das eleições diretas de 1966, os meios culturais e a intelectualidade brasileira se dão conta da gravidade da situação instaurada e agravada no decorrer, até o fim e para além da década de 1960.
Se é verdade que não há uma relação automática entre realidade e literatura, é também verdade que determinados processos históricos vazam-na inevitavelmente, em razão mesmo da força de impacto desses processos na vida social e na produção intelectual.
Caso a ditadura militar brasileira tivesse restringido sua permanência aos limites temporais inicialmente apontados pelos chamados “militares da Sorbonne”, Castelo Branco à frente, garantidas as eleições diretas de 1966, certamente o desenvolvimento da literatura brasileira teria percorrido outro trajeto diferente daquele configurado pela perenização da ditadura, representada agora por Costa e Silva.
O fechamento do regime, a censura prévia aos meios de comunicação e a institucionalização da violência e da tortura como mecanismos de ação do Estado criaram um caldo de cultura do qual as letras pretas sobre as páginas brancas não puderam escapar.
Face à censura e ao risco de assassínio sob o manto do desaparecimento político, ou dos "autos de resistência", ao escritor brasileiro alguns poucos caminhos se ofereceram, entre os quais a adesão ao regime, o exílio, a clandestinidade ou marginalização e a subversão da linguagem literária como estratégia de não colaboração com o regime e de sobrevivência autoral, no âmbito da legalidade autoritária possível de ser ludibriada – ainda que com previsíveis riscos.
Interditados certos temas e certas abordagens, as gerações de autores das décadas de 1960 e 1970, submetidas a uma panela de pressão, desenvolveram formas muito características de expressão literária, a partir do material fartamente fornecido pela realidade asfixiante.
Contraditoriamente, exato a partir do fechamento representado pelo AI-5 é que surgem as obras mais incômodas ao regime.
Gestadas no período anterior, particularmente durante a conturbada década de 60, nessa época as formas artísticas em algum sentido resistentes à ditadura expressam maturidade no que tange às técnicas composicionais.
Na canção popular, a linguagem cifrada retrata personagens discriminados socialmente; na televisão, o humor escrachado satiriza o discurso oficial; no cinema, a pornochanchada da Boca do Lixo achincalha o moralismo reinante; na literatura (poesia, teatro e ficção), a pesquisa temática e de linguagem incorpora a violência social – uma vez que a política está sob a lupa e o pente-fino da censura – como assunto e como recurso expressivo, articulados em textos tecnicamente híbridos recheados de inconformismo, solidão, sexo, drogas, corrupção policial, lirismo e muito sarcasmo.
Esses textos maliciosamente fragmentados e embaralhados se oferecem ao leitor como válvulas de descompressão de tensões intelectuais e afetivas tremendas, e como bombas de efeito retardado, a colaborar com agulhadas para o colapso do regime num futuro quiçá a perder de vista.
Boal, Vianinha, Dias Gomes, Guarnieri, no teatro, toda a Geração Marginal ou Mimeógrafo, na poesia, João Antônio, Plínio Marcos, Márcio Souza, Ivan Ângelo, Silviano Santiago, Antônio Calado, na ficção, entre outros compartilham a angústia do escritor brasileiro desse período, e expressam em suas obras as tensões verdadeiramente dramáticas depositadas em seus espíritos e em suas sensibilidades pelas notícias vazadas, à boca pequena e de boca em boca, sobre os martírios nos porões dos DOI-CODI, DOPS, CENIMAR ou do II Exército, da Casa da Morte em Petrópolis, a título de exemplo, mas não somente.
A obra de Rubem Fonseca (questionado de muitos lados por seu envolvimento mal explicado com a ditadura) não se alheia aos mesmos ingredientes que ora salgam, ora azedam, ora apimentam as obras dos autores cuja maturidade literária coincidiu com esse tempo – que não foi ainda de todo superado, haja vista as ácidas polêmicas em torno do direito dos familiares dos desaparecidos políticos ao acesso aos documentos do período, em posse das Forças Armadas.
Se os crimes da ditadura só foram tratados enquanto tema literário ao fim do regime, e ainda assim de forma indireta, como no romance “Em Liberdade”, de Silviano Santiago, o crime comum proliferou enquanto assunto de romances e contos, nos quais a violência policial compareceu, prenhe de ambiguidades, deixando entrever a crítica ao regime – o que nem sempre escapou à lupa disforme da censura, como no caso de “Feliz Ano Novo”, de Rubem Fonseca, cuja circulação foi proibida por despacho direto do então ministro da Justiça, Armando Falcão, em 1975, sob a alegação de “exteriorizar matéria contrária à moral e aos bons costumes”.
Rubem Fonseca, cuja carreira literária se inicia com a publicação de contos em princípios da década de 1960, tempera seus enredos mergulhados nas trevas do submundo policial com os ingredientes oferecidos pela realidade repressiva dessa década e da posterior – repressão que via de regra, partindo das motivações políticas, termina por atingir todos os domínios da vida social e individual.
Em seu primeiro romance, de 1973, O Caso Morel, todos os ingredientes da ditadura estão postos: violência e corrupção policial, repressão sexual e pornografia, luta de classes e censura, drogas, desbunde, comunidades alternativas, esoterismo entre outros.
Nesse romance, Paulo Morel, na verdade Paulo Morais, preso por um crime que cometeu ou não, redige uma “biografia” para Vilela, um escritor amigo do delegado Matos, responsável pela detenção do mesmo Morel.
Nessa “biografia”, em que os nomes das mulheres com as quais Morel se envolveu estão encobertos igualmente por codinomes, o prisioneiro revela sua poligamia, aceita com naturalidade pelas parceiras, que convivem com ele no mesmo casarão do bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, em que ele exerce a profissão primeiro de fotógrafo publicitário e depois de artista plástico premiado.
Da relação sadomasoquista mergulhada na violência física com Joana (na verdade Heloísa), ninfeta de 20 anos de idade, “filha de embaixador”, à relação lírica com Carmen (na verdade Lilian Marques), prostituta que posa para fotos publicitárias, Paul Morel (ou Paulo Morais) é a representação do artista dilacerado entre o sucesso burguês, que implica na adesão à lógica da arte enquanto mercadoria (que ele abomina) e a realização da felicidade, refletida na liberdade de criação artística e de exercício da sexualidade (o que ele busca a todo custo).
Não deixa de ser extremamente sarcástico que a personagem Joana, que na “biografia” de Morel manifesta o desejo expresso pelo fim da arte, seja a sadomasoquista assassinada ou pelo mesmo Morel, ou por um faxineiro de hotel, ou por um seu, dela, admirador platônico, ou ainda por um outro agente insabido.
A incapacidade de Joana em se realizar sexual e afetivamente com Morel por meio dos fetiches sexuais – que ao final das contas são encenações voltadas para a excitação da libido – a leva a primeiro pedir, depois como que exigir dele verdadeiras sessões de tortura como mecanismo para atingir orgasmos cada vez mais intensos e arriscados.
Não se trata mais da simulação, da encenação, do fetiche ou do ritual erótico que precede, envolve e culmina no orgasmo, mas do orgasmo impossível de ser obtido sem a estimulação física proporcionada pela dor em doses crescentes, nas quais a hipótese da morte entra como componente de risco.
Rubem Fonseca, aqui, em meio à ditadura do moralismo, tira os véus da perversão sexual e discute, a partir da relação Morel-Joana, os limites entre a arte (o fetiche, o ritual simbólico que envolve o amor) e a realidade (a violência que irrompe da confusão entre a encenação da violência e a própria violência).
Até onde os pontapés de um Morel embriagado foram os responsáveis pela morte de Joana, a ninfeta endinheirada, egocêntrica e sadomasoquista, que desejava a morte da arte e pedia chutes para que obtivesse prazer?
As reflexões suscitadas por essa relação visceral entre os dois são muitas e de diversas naturezas. Há, sem dúvida, o questionamento frontal da repressão sexual, do recalque emocional que a violência física, longe de compensar ou aplacar, agrava. Se estamos aqui a um passo de Freud ou de Reich, é uma questão muito para além da literatura. Mas há também a alegoria do processo criativo na literatura e na arte.
Joana, na "verdade” Heloísa (todas as verdades desses romance precisam ser emolduradas por aspas), que deseja o fim da arte por considerar que ela, a arte, no estágio a que chegou, é incapaz de escapar à lógica da mercadoria, portanto sendo melhor que se acabe de uma vez, deseja, contraditoriamente, o artista, Morel, o qual, por sua vez, para manter viva a arte que pratica, envilece-a entre os tubos de esgoto que formam suas instalações. Sua intenção rebelde em relação ao mercado de artes que o deseja, tanto quanto Joana, é de eliminar toda qualidade artística que possa ser objeto de comércio.
No entanto, o que ocorre é que essa mesma qualidade envilecida e refletida em uma obra feita de tubulações de esgoto é premiada na Bienal de Arte – estamos aqui no terreno do escárnio e do escracho –, do que resulta que sua peça artística, feita para não gerar lucro, lhe rende em dinheiro mais do que lhe rendera suas fotos publicitárias, no âmbito de um mercado publicitário turbinado pelas musas de cerveja – Carmen uma delas.
Poderíamos daí inferir que, alegoricamente, Morel assassina Joana quando na “realidade” quisera destruir a Joana-matadora-da-arte?
Pode ser, e pode não ser, pois não é seguro sequer que seus chutes a tenham vitimado, uma vez que pertences da moça foram encontrados com o faxineiro do hotel, fugitivo de crime anterior, que habita escusamente com a esposa um barraco em frente a uma então distante praia da Barra da Tijuca, local em que o corpo da moça teria sido encontrado sem vida, ou não.
Tal como a instalação premiada de Morel, esse romance de Rubem Fonseca se estrutura de maneira inusual, destila violência e tensões-limite, e se constroi de matérias díspares, inclusive estercorária.
Em meio a descrições entrecortadas, surgem laudos periciais em linguagem tecno-científica, à guisa de notas de rodapé. Às descrições similares às de boletins de ocorrência seguem-se frases e parágrafos de lirismo comovente. No auge do prazer sexual de Joana, descrito com luxúria, comparece no discurso do narrador fescenino a preocupação de Morel em “brochar” no mento mais crucial do orgasmo.
A estratégia de espelhamento empregada no romance instaura uma duplicidade labiríntica: Joana é Heloísa; Ismênia é Aracy; Elisa é Marta; Zé, o cineasta, é Khaiub, o falso vidente; a negra Lurdes é Rosário; Carmen é Lilian Marques; Paul Morel é Paulo Morais e ainda Vilela, já que ao final do enredo o texto explicita que ambos são um só.
A certa altura, um tanto agastado com o proselitismo de Joana-Heloísa em torno das modas artísticas expostas em museus, que ao fim e ao cabo testam os limites entre a arte e a própria vida, Morel diz em sua “biografia”:
“Sentia raiva desses sujeitos que tinham uma dose de cretinice e idealismo suficiente para continuar tentando tudo, inclusive ‘acabar’ com a arte”.
Porém, a arte contra a qual Joana investe é a mesma contra a qual Morel produz seus simulacros cheios de sarcasmo, que no entanto são assimilados por galerias e marchands em termos de “arte de vanguarda”, potencialmente valiosa, uma vez que sob império do capital tudo se transforma em mercadoria.
Em seu livro “Argumentação contra a morte da arte”, Ferreira Gullar aborda esse beco sem saída em que a arte contemporânea se exilou: para fugir à prostituição do mercado, tornou-se efêmera e ensimesmada, de modo a se oferecer publicamente como irreprodutível. Todavia, esse exemplar efêmero e irreprodutível, portanto único, por essa mesma razão, vale milhões, e por isso mesmo não é exposto, mas guardado em cofre bancário.
Nesse livro, o poeta-crítico de arte arremete contra um tipo de fazer artístico que, para fugir à reificação, confundiu a arte com a própria vida, a exemplo de performances cênicas automutilatórias que só podem ocorrer uma única vez, já que o pedaço do corpo, um pênis, por exemplo, autoextirpado e atirado à plateia, implica na possibilidade de morte do próprio artista.
O dilema de Joana e Paul Morel é o do próprio escritor contemporâneo: como, a um só tempo, dizer artisticamente a verdade do artista, sem se prostituir, mas vivendo do dinheiro proporcionado pelo exercício da profissão, que na era do capital implica em comércio e coisificação da obra?
No romance em questão, aqueles que têm dinheiro para fruir a obra de arte são os mesmos que o artista detesta com todas as suas vísceras. E, assim como Morel torce, distorce e retorce seus materiais para dar origem a uma obra escatológica ou explicitamente pornográfica, Rubem Fonseca contorce, retalha, cola, monta, desmonta e reorganiza as informações em seu romance para tentar atingir “zonas” não prostituídas do leitor.
As cenas verdadeiramente orgiásticas por ele descritas, como em um filme da Boca do Lixo, assumem, à luz do contexto ficcional, dimensões estranhamente líricas. O palavrão, o baixo calão, situado milimetricamente na frase, ganha sentido e, se em uma primeira leitura choca, em outras posteriores, se afigura exato e insubstituível.
Mesmo a poligamia por ele, Morel, praticada, termina por se dar ao leitor como natural e até mesmo ingênua, nos mesmos termos das comunidades alternativas que pelo Brasil e pelo mundo viscejaram entre hippies e “bichos grilos” da contracultura durante a década de 1970, todos em busca de novas formas não autoritárias de convívio humano.
Nesse romance tudo é excessivo, chocante e imoral, como as performances magníficas tidas igualmente como exibicionistas e imorais de Ney Matogrosso, dessa mesma década.
Se o caldo de cultura que os contextualiza – a realidade repressiva , violenta e sufocante, bem representada pelo despacho de Armando Falcão – é o mesmo, as posturas também são similares: um, a desafiar o falso moralismo da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” com suas máscaras, figurinos e rebolados andróginos, outro, a fazê-lo com sua sintaxe e linguagem provocativas, irmãs da Nouvelle Vague, do "Bandido da Luz Vermelha", das pornochanchadas Boca do Lixo, mas também das neusas suelis de Plínio Marcos.
FONTE: Fonseca, Rubem. O caso Morel. São Paulo, Cia. Das Letras, 1995.
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