Os sinais eram evidentes: as informações truncadas, oferecidas
em doses homeopáticas, a cada retorno ao guichê; minha admirável disposição de
resolver a demanda naquela manhã mesmo; minha sonolência em razão de uma quinta-feira
de muito trabalho; minha paciência em ir e voltar sem que sombra de irritação
me acorresse; e, pior, ao fim da jornada burocrática, a satisfação da funcionária quando
me informou que estava tudo certo e que agora era só aguardar o trâmite.
Os sinais eram claros: o destino estava a fim de me pregar
uma peça, só eu não percebi. Quando retornei para casa feliz da vida por ter vencido
o acaso, que tentava chuviscar na minha manhã de sexta-feira, na verdade ele
encerrara a conversa porque me havia passado a rasteira: ao abrir a pasta para guardar os documentos... onde estava a Carteira de
Identidade que eu renovara no mesmo prestigioso órgão e retirara no início do mês? Simples:
ela caíra da pasta de elástico durante o trajeto.
Refiz mais algumas vezes o caminho, mas... nada, o documento estava perdido, logo na primeira vez em que o utilizei — e por causa do mesmo órgão que o emitira.
Estava na cara que o acaso queria me sacanear naquela manhã. Tentou três vezes, na quarta não falhou. Cheguei em casa praguejando contra minha burrice, almocei de mau humor e, ainda sonolento, decidi: vou subir aquela escadaria num só fôlego para sacudir a zica e aprender a respeitar os avisos do acaso (a ciência do século XIX já ensinara: a primeira vez é acidente; a segunda, coincidência; a terceira, trata-se de fenômeno passível de estudo).
Quando cheguei aos trilhos do bondinho de Santa Teresa, lá em cima, os bofes para fora, o mau humor se fora. O dia estava nublado, com uma ventarola soprando, e as ruas vazias. Esqueci do documento novo extraviado e passeei aleatoriamente pelas ladeiras, pensando em como era bom ter boas pernas e olhos ainda em bom estado. Pensei nos escritores que li e nas referências que muitos deles fizeram a esse bairro. E me lembrei da adaptação para história em quadrinhos que fiz do conto O Espelho, de Machado de Assis, que tem uma ilustração muito bonita dos arcos da Lapa, do genial João Pinheiro.
Aliás o cenário do conto é em uma casa de Santa Teresa:
Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de cousas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.
Pipocam referências a Santa Teresa em Machado de Assis (mas não só nele), quem tiver curiosidade, é só pesquisar na Internet que ficará surpreso com a abundância.
O fato é que o acaso me surrupiou o documento novinho em folha
e me empurrou para uma tarde aprazível em um dos tetos do Rio de Janeiro.
Só no sábado à noite reparei que em meu celular, via uma das redes sociais que pouco utilizo, constava uma mensagem de alguém solicitando autorização do aplicativo para entrar em contato comigo.
A mensagem era do dia anterior, a mesma sexta-feira, 12 horas e 6 minutos. Dizia ela:
“Boa tarde. Sua identidade que vc perdeu se encontra aqui...”
E seguia o endereço, que omito, por discrição, e o nome da pessoa, que cito, pois merece muitas menções de agradecimento e revela um bom coração: obrigado, Cleyton Toshiro.
O destino me sacaneara, mas alguém muito gentil me salvara (não era a primeira vez: dois anos antes, perdera meu celular em frente a um hospital, liguei da editora para o meu número, um jovem atendeu e prontamente me restituiu o aparelho).
Se eu tivesse olhado o celular logo que dei conta da perda do documento, não teria passado nervoso, mas também não teria ido a Santa Teresa — o que melhorou tanto meu humor que, à noite, inclusive, tomei um chope no largo do Machado, esquecido do documento de cujo luto eu já me sacudira — e não teria conhecido o Cleyton, prova eloquente contra o pessimismo injusto de muitos em relação à espécie humana.
E esta fica sendo a crônica de Santa Teresa — a primeira, porque as referências de autores que estimo a esse bairro exigem mais, e não a propósito das rasteiras que o destino me prepara e dá, e das quais, com uma certa frequência, uma alma boa me livra.
Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP e Pós-Doutor em História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).