DAQUI A CINCO MIL ANOS um pai contará para seu filho dormir
a lenda de um herói. Essa lenda dirá de um menino do Transkei, que calçou o
primeiro par de sapatos quando ingressou um tanto tardiamente na escola, que
viu e viveu os piores tormentos da vida humana, mas que, a despeito de todas as
previsões funestas, liderou seu povo a uma vitória definitiva sobre as mais
abomináveis formas de opressão e humilhação do homem sobre o próprio homem.
Essa lenda que atravessará os milênios futuros terá um nome: NELSON ROLIHLAHLA
MANDELA.
Num momento em que pelo Brasil se espalham manifestações nas
quais se misturam anseios legítimos da população historicamente oprimida com
palavras de ordem francamente racistas, autoritárias, suprematistas e
intolerantes, e num momento em que o guerreiro Madiba, herói de Soweto, herói
da África, herói da humanidade, parece querer dar paz a seu corpo já alquebrado
por tantas lutas coletivas e pessoais, sempre é bom convocar sua força, que
permanecerá em todos os democratas e revolucionários do mundo pelos séculos a
afora.

A pobreza no sertão da África do Sul, as condições aviltantes dos trabalhadores nas minas de diamantes mais profundas do mundo, a miséria nas favelas de Johanesburgo, a opressão das populações negras e de origem indiana, concretizada no sistema de apartheid, levaram bem cedo o jovem Nelson Rolihlahla Mandela a escolher entre o conforto de uma vida alienada e os riscos da luta contra o regime de segregação racial.
Fundador da Liga da Juventude do Congresso Nacional Africano (CNA), Nelson Mandela tornou-se o principal líder do mesmo CNA, e um dos mais significativos protagonistas da história humana contemporânea. Sua vida se confunde com a própria luta pela democracia e pela liberdade e, embora o território principal de suas ações tenha sido sua África do Sul mergulhada em um dos sistemas políticos mais abomináveis conhecidos, o apartheid, a indignação contra a injustiça de que foi vítima e os reflexos de sua vitória definitiva sobre o regime de segregação racial ecoaram, e ecoam ainda, por todo o mundo.
Da infância de pés descalços no sertão africano, no início do século
XX, à presidência da república, conquistada na primeira eleição verdadeiramente
livre em seu país, ao fim do mesmo século, Mandela seguiu um roteiro de
aprendizagem, persistência e esperança que lhe deu forças para suportar
sucessivas perdas de amigos, assassinados sob tortura ou em confrontos com o
apartheid; de familiares, com os quais sempre manteve fortes laços de afeto;
além de uma sentença de prisão perpétua absurdamente injusta, a partir de um
julgamento de exceção, forjado nos
mínimos detalhes para eliminar do caminho
os opositores do regime racista.
No interior da prisão da ilha de Robben, em que cumpriu a maior parte
dos 27 anos em que esteve encarcerado, Madiba, como também é conhecido entre os
amigos e parentes, organizou o que ficou conhecido como Universidade Mandela.
Essa iniciativa de educação geral e de formação política reuniu, anos a
fio, em debates, palestras e verdadeiras aulas, com currículo estabelecido
pelos próprios participantes, até mesmo os guardas do presídio. Muitos jovens
condenados à ilha de Robben, após cumprirem a pena, voltaram para a luta
antiapartheid mais bem preparados do que quando nela ingressaram. O amor de
Mandela pela juventude está estampado em seu sorriso – que, quando se abre, o
torna um menino novamente, um legítimo representante da “juventude do mundo”,
expressão muito empregada por sua geração de “lutadores da liberdade”, como,
com justiça, também se autodenominavam.
Torço com o coração apertado para que os jovens que agora tomam as ruas do país reflitam e se mirem na vida e na luta desse eterno jovem, que sacrificou tudo e a quem roubaram nada menos que 27 anos de vida, convertida em doação também para os jovens do Black Consciouness, de Steve Bico, quando estiveram presos com ele em na ilha de Hobben.
Se virarem as costas para esse verdadeiro gigante do humanismo e da luta pela justiça social, terão virado as costas para a própria história. Como sabemos, quem nega o passado, anda às cegas. Não posso esconder que, nestes dias de junho de 2013, os protestos sem rumo padecem dessa ignorância.
* * *

Neste livro, Jeosafá Fernandez Gonçalves, Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, com especialização nas relações Brasil-África, constrói um enredo ficcional em que literatura e realidade se articulam para dar corpo às angústias e às ações de um dos mais importantes personagens da história contemporânea mundial. A partir de cuidadosa pesquisa bibliográfica, o autor traça neste O jovem Mandela os passos decisivos da formação do homem e do líder que derrotou de maneira insofismável o apartheid.
Ao mesmo tempo em que retrata o homem (empregando para esse retrato, como um palimpsesto, o registro de outros que passaram por experiências análogas ), o autor oferece ao leitor os fatos históricos, uns dramáticos e mesmo trágicos, outros gloriosos, que serviram de placenta a uma epopeia em si plena de grandeza – e que ecoará certamente pelos séculos afora.
O autor é escritor de obras de ficção, poesia,
teóricas e didáticas voltadas para temas de língua portuguesa e literatura.
Bacharel em Letras pela Universidade de São Paulo, doutorou-se também nessa
área, na mesma USP, em 2002. Sua pesquisa de Doutorado voltou-se para as
relações entre Brasil e África, o que impôs o estudo de vasta bibliografia
sobre os movimentos de independência nesse continente e sobre os principais
líderes africanos do século XX, entre os quais, Nelson Mandela.
Concentrando suas atividades nas fronteiras entre literatura e
realidade, o autor tem desenvolvido nos últimos anos projetos em que pesquisas
bibliográficas, documentais e de campo servem de fontes para a produção
ficcional, a exemplo deste O jovem Mandela e do ciclo de romances urbanos sobre
a cidade de São Paulo ERA UMA VEZ NO MEU BAIRRO, que põe em cena aspectos
sociais e históricos das cinco grandes regiões de São Paulo: Zonas Norte,
Leste, Sul, Oeste e Centro.
Artigos n'O Estado de S. Paulo
|