Artigo para a revista PRINCÍPIOS, Outubro de 2012, escrito a partir de dois outros, já publicados neste blog e na obra Entre Livros (São Paulo, Plêiade, 2012.)
No centenário do
nascimento de Jorge Amado, um romance significativo de sua obra, Capitães
de Areia, cuja primeira edição foi
incinerada pela ditadura do Estado Novo, em 1937, continua a assombrar
mentalidades reacionárias, atormentadas por um fantasma que ameaça seu mundo: a
justiça social.
No ano de 2009 tive a honra de defender Jorge Amado junto ao Ministério Público do Estado de São Paulo. Este, como Carlos Gardel – que depois de morto canta cada vez melhor –, continua atazanando as consciências culpadas das elites paulistas egressas da revolução de 32.
Setores empedernidamente reacionários da sociedade paulista, que plantam conservadorismo nas consciências desavisadas para colher votos nas eleições, continuam enxergando no grande escritor baiano inúmeras vezes cotado para o prêmio Nobel um subversivo instigador da juventude e, agora, a esta altura do século XXI, um aliciador de menores.
Esse setor, acérrimo adversário do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por entender que esse mecanismo de preservação de direitos “protege bandidos”, recorreu ao próprio ECA para sustentar suas argumentações inquisitoriais e falso-moralistas. Segundo essa parcela de mentalidade medieval da sociedade brasileira, o livro Capitães de Areia contém trechos pornográficos que ferem o Estatuto da Criança e do Adolescente, o que justificaria sua cassação do currículo escolar - o mesmo livro que, queimado pela ditadura do Estado Novo, foi aceito no currículo escolar por uma outra ditadura igualmente ou talvez mais feroz, qual seja a militar.

Milton Hatoum, no prefácio da edição mais recente dessa obra (São Paulo, Cia. Das Letras, 2008) em circulação há décadas na rede pública estadual, discorre sobre o impacto que em sua formação, toda ela ocorrida nos anos de chumbo, exerceu esse livro contundente, multipremiado, objeto de um sem número de dissertações de mestrado e teses de doutorado pelo Brasil e pelo mundo afora, e traduzido para mais de 20 diferentes idiomas da Terra.
A defesa técnico-pedagógico-literária que fui convidado a realizar na oportunidade, na condição de Doutor em Letras especializado na obra do escritor soteropolitano, foi contundente e convincente, o que sustentou a permanência dessa obra essencial de nossa literatura na sala de aula de nossas escolas públicas e nas mãos e nos corações de nossos estudantes.
Porém, no ano de 2010, em agosto, sempre esse mês aziago, um promotor público, movido por estranhos e impulsos, mandou recolher Capitães de Areia das escolas de uma cidade do interior de São Paulo, o que foi feito sob o silêncio sorridente do então governo Serra.
Capitães de areia, convertido para o cinema e cuja estreia ocorreu em outubro de 2011 (Dir. Cecília Amado, neta do escritor, e Guy Gonçalves), é uma obra significativamente representativa da fase da obra de Jorge Amado que o projetou no cenário literário brasileiro e dele para o mundo. A seguir, reproduzo o texto de um documento histórico, bastante esclarecedor da relevância desse livro para a literatura brasileira e para a consciência democrática:
ATA DE INCINERAÇÃO
Aos dezenove dias do mês de novembro de 1937, em frente à Escola de
Aprendizes Marinheiros, nesta cidade do Salvador e em presença dos senhores
membros da comissão de buscas e apreensões de livros, nomeada por ofício número
seis, da então Comissão Executora do Estado de Guerra, composta dos senhores
capitão do Exército Luís Liguori Teixeira, segundo-tenente intendente naval
Hélcio Auler e Carlos Leal de Sá Pereira, da Polícia do Estado, foram
incinerados, por determinação verbal do sr. coronel Antônio Fernandes Dantas,
comandante da Sexta Região Militar, os livros apreendidos e julgados como
simpatizantes do credo comunista, a saber: 808 exemplares de Capitães da areia,
223 exemplares de Mar morto, 89 exemplares de Cacau, 93 exemplares de Suor, 267
exemplares de Jubiabá, 214 exemplares de País do carnaval, 15 exemplares de
Doidinho, 26 exemplares de Pureza, 13 exemplares de Bangüê, 4 exemplares de
Moleque Ricardo, 14 exemplares de Menino de Engenho, 23 exemplares de Educação
para a democracia, 6 exemplares de Ídolos tombados, 2 exemplares de Ideias,
homens e fatos, 25 exemplares de Dr. Geraldo, 4 exemplares de Nacional
socialismo germano, 1 exemplar de Miséria através da polícia.

Os livros incinerados foram apreendidos nas livrarias Editora Baiana,
Catilina e Souza e se achavam em perfeito estado.
Por nada mais haver, lavra-se o presente termo, que vai por todos os
membros da Comissão assinado, e, por mim segundo-tenente intendente naval
Hélcio Auler, que, servindo de escrivão, datilografei. (assinados)
Luís Liguori Teixeira, Cap. Presidente
Hélcio Auler, Segundo-Tenente Int. N.
Carlos Leal de Souza Pereira
Luís Liguori Teixeira, Cap. Presidente
Hélcio Auler, Segundo-Tenente Int. N.
Carlos Leal de Souza Pereira
(Transcrito do jornal Estado da
Bahia, de 17-12-37).
FONTE: Duarte, Eduardo Assis.
“Literatura e Cidadania”. Campinas, UNICAMP Disponível em http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/leitura%20e%20cidadania.htm.
Acesso em 22 agosto 2012.
A queima dessa obra em 1937, em sua primeira edição pela Livraria José Olympio Editora, marca um dos períodos mais obscurantistas da vida brasileira. Porém, não deixa de ser curioso que, se essa ditadura condenou Capitães de Areia, a que veio depois não viu nesse livro qualquer grande risco, uma vez que em 1966 ele fazia parte do currículo oficial e era lido por adolescentes do país.
Sobre esse particular, é esclarecedor o Posfácio de Milton
Hatoum à edição de Capitães de Areia realizada pela Cia. Das Letras. Diz o
insigne ficcionista brasileiro à pagina 273:
"Em 1937 Capitães de Areia foi censurado e depois queimado em Salvador", disse minha professora de português, quando eu estudava no Ginásio Amazonense Pedro II, em Manaus. A frase da professora aumentou a curiosidade dos estudantes por esse
romance, um dos livros obrigatórios do curso de literatura brasileira. Por
sorte, a leitura deu prazer aos jovens leitores. Agora, ao reler a história dos
meninos do trapiche, encontrei o mesmo deleite, mas com outro olhar: o leitor
de 1966 não é o mesmo de 2008.
Milton Hatoum nasceu em 1952, portanto em 1966, em plena ditadura militar, aos 14 anos de idade, ele era “obrigado” a ler – com prazer, confessa – o mesmo livro que a muitos partidários da censura ainda hoje, em plena vigência do regime democrático, causa comichões e apoplexia, como a atitude desse agente do ministério público obscurantista bem serve de exemplo e alerta.
Não deixa de ser espantoso que uma ditadura tenha queimado a
obra, junto com outras do mesmo autor e de outros, enquanto outra ditadura, por
muitos considerada mais feroz, a tenha acolhido para leitura de adolescentes em
início de puberdade.
Ray Brabury, em seu Fahrenheit
451, trata exatamente desse triste assunto: o da censura e queima de livros
por mentalidades e regimes obscurantistas.
Nesse excelente romance, que já nasceu clássico e que foi
adaptado para o cinema por François Truffaut, Ray Bradbury discorre sobre um
futuro não muito distante, quando os livros, proibidos, serão incendiados junto
com seus possuidores, convertidos, por um modo de vida e um regime
totalitários, em horda de leitores clandestinos e potencialmente perigosos . O
livro é uma contundente alegoria contra regimes autoritários, para os quais
nada pode haver de mais perigoso do que certos tipos de livros.
No posfácio da edição de 2003 (São Paulo, Editora Globo,
2003) o autor norte-americano diz:
Esfole, desosse, desmonte, escarifique, derreta, encurte, destrua. Todo
adjetivo de quantidade, todo verbo de movimento, toda metáfora que pesasse mais
que um mosquito – eliminados! Todo símile que teria feito a boca de um
submentacapto se contorcer – desaparecido! Qualquer paralelo que explicasse a
filosofia barata de um escritor de primeiro nível – perdido!
(...)
Existe mais de uma maneira de queimar um livro. E o mundo está cheio de
pessoas carregando fósforos acesos.

Nesse caso, pornográfico não é o livro, mas, a miséria que
ele tem a coragem de denunciar na forma de romance. Porém, quanto a isso, a mesma mentalidade que
caça livros para incineração no interior de São Paulo, silencia, e ri,
indecentemente.