sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

O coletivo assaltado pelo indivíduo

Narciso (1594-96). Michelangelo Caravaggio.

Há uma tendência de se personificar na figura de um indivíduo o sucesso coletivo. Mesmo quando não há um indivíduo que se destaque significativamente do grupo, impera a cultura do individualismo. Por trás dessa prática reside uma ideologia ultraindividualista que visa não reconhecer os méritos do indivíduo com desempenho indiscutivelmente superior, mas, antes, legitimar a si própria.

Essa ideologia elege não exatamente o indivíduo vencedor como seu símbolo, mas, sim, o indivíduo que se apropria dos melhores resultados individuais e coletivos. Ao reputar a um único indivíduo o sucesso de todos, essa ideologia legitima na verdade uma forma escandalosa de roubo. E de tal modo encontra-se naturalizada e institucionalizada essa ideologia, que causa espanto um atleta, artista ou líder remeter ao coletivo os méritos de seu sucesso individual — e mesmo quando isso ocorre, o entorno apressa-se a enfatizar o papel desse indivíduo, acrescentando-lhe além de todos os méritos do sucesso coletivo, o predicado da modéstia.

Muito antes do triunfo do individualismo, o humanidade conviveu com indivíduos "fora de série". Sábios, sacerdotes, guerreiros, aventureiros, líderes, artistas — de ambos os sexos — permeiam as histórias dos povos desde suas eras mais remotas. Alguns tornaram-se lendas; outros, heróis ou mártires; outros, ainda, deuses, mitos ou santos.

Assim, ao personificar em um indivíduo um sucesso coletivo, essa ideologia rouba do indivíduo sua real participação no triunfo, rouba do coletivo seus imensos esforços — e rouba de ambos o bem mais precioso: a verdade.

Em todos as esferas da vida sob o império do capitalismo, essa ideologia promove uma verdadeira caça ao símbolo da superioridade e primazia do indivíduo que sabe "aproveitar a oportunidade" e se apropriar dos esforços alheios, seja para enriquecimento próprio, seja para autopromoção. Porém, é nos meios de comunicação de massa que ela encontra seu templo sagrado e seu altar de glória, incluídos aqui a Internet e as redes sociais.

Nos meios de comunicação de massa o narcisismo atingiu um ponto cuja superação é difícil sequer imaginar. Neles, o culto do eu, da autoimagem, das fantasias narcísicas tornaram-se uma verdadeira pandemia que, como toda patologia coletiva, transmissível e fora do controle, enche hospitais, clínicas e consultórios de saúde mental— e faz a fortuna astronômica dos bilionários das novas tecnologias de informação e da indústria de fármacos.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).

O trabalhador faz o trabalho e o trabalho faz o trabalhador


Diante de um trabalho coletivo bem realizado, a primeira impressão que se tem é de que se tratou de uma atividade fácil — e que, por isso, teria obrigatoriamente resultar em solução satisfatória. A segunda impressão é a de que os indivíduos envolvidos estariam à altura do desafio.

A realidade porém é que nenhum trabalho coletivo é simples, pois sua consecução envolve a ação de muitos e variados agentes, que só alcançam articulação satisfatória após a superação continuada de conflitos inerentes à própria natureza do trabalho coletivo   e essa superação ora é realizada por consensos, ora por acordos e ora por disputas cujas regras precisam ser debatidas e decididas pelos envolvidos.

Por outro lado, nenhum agente de atividade coletiva está aprioristicamente capacitado ou habilitado para a consecução de um objetivo comum   antes pelo contrário, os agentes se vão capacitando no próprio processo, à medida que vão aprendendo e buscando soluções adequadas a cada um dos muitos desafios que se erguem na trajetória de cada um e de todos.

Há, assim, uma relação dialética entre o trabalho coletivo e os agentes nele envolvidos: os trabalhadores fazem o trabalho, e o trabalho faz os trabalhadores.

A natureza social do trabalho coletivo impõe aos envolvidos a necessidade do desenvolvimento de formas organizativas e administrativas vivas, dinâmicas, flexíveis, que permitam a liberação das energias de cada indivíduo, com como de sua criatividade, mas também que estimulem seu engajamento voluntário nas tarefas e metas decididas conscientemente pelo coletivo de que faz parte   coisas que não acontecem nem de uma vez, nem para sempre.

Dessa maneira, por mais singelo que pareça um objetivo coletivo alcançado, ele é apenas a face visível de um imenso iceberg, de cuja parte maior somente os diretamente envolvidos têm a exata dimensão   e também só eles têm a mais clara consciência acerca do quanto aprenderam durante o processo para atingir o resultado final, que o observador externo só conhece pela aparência e parcialmente.

Empregando a alegoria do reino animal, somente as abelhas envolvidas na fabricação sabem quantas viagens foram realizadas e quantos riscos foram enfrentados e superados para fabricar uma mísera colher de chá de mel, mais ou menos a quantidade que uma abelha alcança em toda sua vida.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).



Clichê: um cuco parasita

 A ideia de não nutrir expectativas para se evitar frustrações é acentuadamente narcisista. Por detrás da atitude de não se esperar nada de bom de ninguém nem do futuro reside eloquente a megalomania. Quem assim encara a vida é como se dissesse: ninguém nem nada estaria a altura de meu ego. Aliado a essa megalomania está um pessimismo patológico em relação à própria vida, insuficiente para preencher o saco sem fundo dos desejos íntimos fortemente reprimidos.

Não é difícil entrever nessa postura frente ao mundo o seu exato oposto: desejo tanto que me amem e que o futuro me receba em um abraço cheio de afeto que não suporto sequer o risco de desejar, então reprimo e e rejeito o que na realidade desejo ao extremo.

Logicamente, quem age assim escolhe um clichê como mecanismo falho de defesa. Falho porque, obviamente, declarar falta de expectativas é já admitir não que elas sejam inócuas, mas que  o sofrimento que a frustração pode causar é, para um ego mal estruturado, insuportável. Bem observado, o clichê, aqui, mais do que uma declaração verdadeira, é um pedido envergonhado de ajuda — e ninguém pede ajuda se não está necessitando.

Na verdade, não nutrir expectativas em relação a nada e ninguém corresponde a se estar transido por impulsos autodestrutivos — numa perspectiva freudiana, pulsões de morte —, caso em que o desânimo reside não em uma realidade potencialmente pouco alvissareira, mas no próprio âmago do indivíduo, o que configura um sintoma neurótico.

Porém, um outro aspecto incide: o de que quem assim sente e assim pensa, embora grite por ajuda, ainda que por meio de um mal disfarçado clichê, busca aprovação externa de seu sentir e seu pensar, noutras palavras, busca, contraditoriamente, concordância e aprovação de outro sujeito para a neurose de que, lá no íntimo, na verdade, quer se ver livre.

Clichês como esse circulam em escala assombrosa pelas redes sociais, e quem os emprega não passa por uma peneira, mesmo grosa, de sinceridade. Por sob clichês peremptórios como esse, reside a mágoa, a ferida mal cicatrizada, ou às vezes ainda exposta, da frustração e da perda.

Não há chance para o indivíduo que assim age encontrar paz interior enquanto não deitar fora o clichê e assumir de uma vez seu sofrimento íntimo, só superável se encarado sem mecanismos de defesa, cuja função, ao fim e ao cabo, é preservar a própria ferida emocional, cuja dor oferece algum prazer, ainda que mórbido, como forma de compensação — e livrar-se dessa ferida e dessa dor implicaria em abrir mão também dessa compensação, sempre de natureza afetiva.

Como um filhote de cuco em ninho alheio, o problema do clichê, assumido pelo indivíduo como simulacro, é que ele toma lugar de manifestações verdadeiras, e atira para fora do ninho aquilo de que o indivíduo necessita para superar seu estado neurótico.

Nessa configuração, o cliché é — como o filhote de cuco atirando para fora do ninho e para a morte os filhotes verdadeiros — um parasita que, manifesto na linguagem, aloja-se na psique, alimentando-se da ferida emocional e da dor do indivíduo. Enquanto não se expulsar do ninho esse parasita, o ciclo neurótico não se rompe e, pelo contrário, se intensifica.


Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).