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Narciso (1594-96). Michelangelo Caravaggio. |
Há uma tendência de se personificar na figura de um indivíduo o sucesso coletivo. Mesmo quando não há um indivíduo que se destaque significativamente do grupo, impera a cultura do individualismo. Por trás dessa prática reside uma ideologia ultraindividualista que visa não reconhecer os méritos do indivíduo com desempenho indiscutivelmente superior, mas, antes, legitimar a si própria.
Essa ideologia elege não exatamente o indivíduo vencedor como seu símbolo, mas, sim, o indivíduo que se apropria dos melhores resultados individuais e coletivos. Ao reputar a um único indivíduo o sucesso de todos, essa ideologia legitima na verdade uma forma escandalosa de roubo. E de tal modo encontra-se naturalizada e institucionalizada essa ideologia, que causa espanto um atleta, artista ou líder remeter ao coletivo os méritos de seu sucesso individual — e mesmo quando isso ocorre, o entorno apressa-se a enfatizar o papel desse indivíduo, acrescentando-lhe além de todos os méritos do sucesso coletivo, o predicado da modéstia.
Muito antes do triunfo do individualismo, o humanidade conviveu com indivíduos "fora de série". Sábios, sacerdotes, guerreiros, aventureiros, líderes, artistas — de ambos os sexos — permeiam as histórias dos povos desde suas eras mais remotas. Alguns tornaram-se lendas; outros, heróis ou mártires; outros, ainda, deuses, mitos ou santos.
Assim, ao personificar em um indivíduo um sucesso coletivo, essa ideologia rouba do indivíduo sua real participação no triunfo, rouba do coletivo seus imensos esforços — e rouba de ambos o bem mais precioso: a verdade.
Em todos as esferas da vida sob o império do capitalismo, essa ideologia promove uma verdadeira caça ao símbolo da superioridade e primazia do indivíduo que sabe "aproveitar a oportunidade" e se apropriar dos esforços alheios, seja para enriquecimento próprio, seja para autopromoção. Porém, é nos meios de comunicação de massa que ela encontra seu templo sagrado e seu altar de glória, incluídos aqui a Internet e as redes sociais.
Nos meios de comunicação de massa o narcisismo atingiu um ponto cuja superação é difícil sequer imaginar. Neles, o culto do eu, da autoimagem, das fantasias narcísicas tornaram-se uma verdadeira pandemia que, como toda patologia coletiva, transmissível e fora do controle, enche hospitais, clínicas e consultórios de saúde mental— e faz a fortuna astronômica dos bilionários das novas tecnologias de informação e da indústria de fármacos.
Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).