sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

O trabalhador faz o trabalho e o trabalho faz o trabalhador


Diante de um trabalho coletivo bem realizado, a primeira impressão que se tem é de que se tratou de uma atividade fácil — e que, por isso, teria obrigatoriamente resultar em solução satisfatória. A segunda impressão é a de que os indivíduos envolvidos estariam à altura do desafio.

A realidade porém é que nenhum trabalho coletivo é simples, pois sua consecução envolve a ação de muitos e variados agentes, que só alcançam articulação satisfatória após a superação continuada de conflitos inerentes à própria natureza do trabalho coletivo   e essa superação ora é realizada por consensos, ora por acordos e ora por disputas cujas regras precisam ser debatidas e decididas pelos envolvidos.

Por outro lado, nenhum agente de atividade coletiva está aprioristicamente capacitado ou habilitado para a consecução de um objetivo comum   antes pelo contrário, os agentes se vão capacitando no próprio processo, à medida que vão aprendendo e buscando soluções adequadas a cada um dos muitos desafios que se erguem na trajetória de cada um e de todos.

Há, assim, uma relação dialética entre o trabalho coletivo e os agentes nele envolvidos: os trabalhadores fazem o trabalho, e o trabalho faz os trabalhadores.

A natureza social do trabalho coletivo impõe aos envolvidos a necessidade do desenvolvimento de formas organizativas e administrativas vivas, dinâmicas, flexíveis, que permitam a liberação das energias de cada indivíduo, com como de sua criatividade, mas também que estimulem seu engajamento voluntário nas tarefas e metas decididas conscientemente pelo coletivo de que faz parte   coisas que não acontecem nem de uma vez, nem para sempre.

Dessa maneira, por mais singelo que pareça um objetivo coletivo alcançado, ele é apenas a face visível de um imenso iceberg, de cuja parte maior somente os diretamente envolvidos têm a exata dimensão   e também só eles têm a mais clara consciência acerca do quanto aprenderam durante o processo para atingir o resultado final, que o observador externo só conhece pela aparência e parcialmente.

Empregando a alegoria do reino animal, somente as abelhas envolvidas na fabricação sabem quantas viagens foram realizadas e quantos riscos foram enfrentados e superados para fabricar uma mísera colher de chá de mel, mais ou menos a quantidade que uma abelha alcança em toda sua vida.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).



Clichê: um cuco parasita

 A ideia de não nutrir expectativas para se evitar frustrações é acentuadamente narcisista. Por detrás da atitude de não se esperar nada de bom de ninguém nem do futuro reside eloquente a megalomania. Quem assim encara a vida é como se dissesse: ninguém nem nada estaria a altura de meu ego. Aliado a essa megalomania está um pessimismo patológico em relação à própria vida, insuficiente para preencher o saco sem fundo dos desejos íntimos fortemente reprimidos.

Não é difícil entrever nessa postura frente ao mundo o seu exato oposto: desejo tanto que me amem e que o futuro me receba em um abraço cheio de afeto que não suporto sequer o risco de desejar, então reprimo e e rejeito o que na realidade desejo ao extremo.

Logicamente, quem age assim escolhe um clichê como mecanismo falho de defesa. Falho porque, obviamente, declarar falta de expectativas é já admitir não que elas sejam inócuas, mas que  o sofrimento que a frustração pode causar é, para um ego mal estruturado, insuportável. Bem observado, o clichê, aqui, mais do que uma declaração verdadeira, é um pedido envergonhado de ajuda — e ninguém pede ajuda se não está necessitando.

Na verdade, não nutrir expectativas em relação a nada e ninguém corresponde a se estar transido por impulsos autodestrutivos — numa perspectiva freudiana, pulsões de morte —, caso em que o desânimo reside não em uma realidade potencialmente pouco alvissareira, mas no próprio âmago do indivíduo, o que configura um sintoma neurótico.

Porém, um outro aspecto incide: o de que quem assim sente e assim pensa, embora grite por ajuda, ainda que por meio de um mal disfarçado clichê, busca aprovação externa de seu sentir e seu pensar, noutras palavras, busca, contraditoriamente, concordância e aprovação de outro sujeito para a neurose de que, lá no íntimo, na verdade, quer se ver livre.

Clichês como esse circulam em escala assombrosa pelas redes sociais, e quem os emprega não passa por uma peneira, mesmo grosa, de sinceridade. Por sob clichês peremptórios como esse, reside a mágoa, a ferida mal cicatrizada, ou às vezes ainda exposta, da frustração e da perda.

Não há chance para o indivíduo que assim age encontrar paz interior enquanto não deitar fora o clichê e assumir de uma vez seu sofrimento íntimo, só superável se encarado sem mecanismos de defesa, cuja função, ao fim e ao cabo, é preservar a própria ferida emocional, cuja dor oferece algum prazer, ainda que mórbido, como forma de compensação — e livrar-se dessa ferida e dessa dor implicaria em abrir mão também dessa compensação, sempre de natureza afetiva.

Como um filhote de cuco em ninho alheio, o problema do clichê, assumido pelo indivíduo como simulacro, é que ele toma lugar de manifestações verdadeiras, e atira para fora do ninho aquilo de que o indivíduo necessita para superar seu estado neurótico.

Nessa configuração, o cliché é — como o filhote de cuco atirando para fora do ninho e para a morte os filhotes verdadeiros — um parasita que, manifesto na linguagem, aloja-se na psique, alimentando-se da ferida emocional e da dor do indivíduo. Enquanto não se expulsar do ninho esse parasita, o ciclo neurótico não se rompe e, pelo contrário, se intensifica.


Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).




quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Literatura enquanto fonte

 O estudo da literatura se justifica por si só, uma vez que ela tem relevância e prestígio em todas as sociedades que desenvolveram a escrita, porém seu estudo se justifica também por muitas outras razões exteriores a ela. Trato aqui apenas de uma dessas razões exteriores, qual seja: a literatura enquanto fonte de outras ciências.

As narrativas literárias nos permitem aferir o clima cultural de uma época, suas características dominantes e contra-hegemônicas, suas temáticas mais frequentes, sua sensibilidade, sua religiosidade, suas relações sociais, políticas, econômicas e de poder, suas classes e ideologias em conflito etc. Isso também poderia, e é, alcançado por outras ciências, porém de forma sempre parcial, porque cada qual realiza seu recorte específico da realidade, segmentando-a e enfocando-a a partir de seu exclusivo e estrito ponto de vista. 

A literatura, diferentemente, reconstitui simbolicamente a vida e as experiências humanas de forma mais integral, e oferece a oportunidade de imersão  no coração de simulações as mais amplas, complexas, ricas e profundas possíveis, a depender do engenho do artista.

Karl Marx, considerado hoje um dos pais da sociologia,  afirmava que A Comédia Humana, conjunto da obra de Honoré de Balzac (1799-1950) fora para ele mais importante em sua análise da sociedade francesa do que os muitos estudos de economia, história e filosofia por ele visitados. Seu companheiro de jornada, Friedrich Engels, afirmou em carta a Margareth Harkness (1888) ter aprendido com Balzac "mais do com todos os historiadores, economistas e estatísticos profissionais do período". Noutras palavras, dois dos mais importantes estudiosos das relações sociais, econômicas e de poder do século XIX encontraram na literatura fonte legítima para suas pesquisas, reflexões e formulações, que repercutiriam ao longo do século XX na forma de revoluções socialistas pelo mundo todo.

Razões externas ao estudo da literatura são abundantes, porque não há campo da atividade humana que não tenha sido visitado por escritores, dramaturgos e poetas. História, geografia, sociologia, filosofia, religião, mas também matemática, física, química, astronomia, entre outras, têm lugar na escrita ficcional, na poesia e no teatro desde que o código escrito foi inventado, seja porque os autores houveram por bem tratar dessas dimensões da vida, seja porque os próprios autores muitas vezes eram matemáticos, físicos, médicos, astrônomos etc., evento bastante comum tanto na história da literatura quanto na história das ciências.

Fiquemos no exemplo de Galileu Galilei, que, para expor seu ponto de vista científico, em Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundo (1632), empregou o artifício da narrativa ficcional. Nesse livro, o diálogo acontece entre três personagens: Salviati, defensor do modelo de Copérnico; Simplício, defensor do modelo geocêntrico adotado pela Igreja, e Sagredo, no papel de mediador imparcial. O livro foi divido em jornadas (quatro) , como o Decamerão (1348-53), de Giovanni Boccaccio , e o Pentamerão (1778), de Giambattista Basile.

Sobre Freud, deixo que fale Luiz Zanin Oricchio: 

Ao longo de sua carreira, Freud escreve múltiplos artigos que tomam obras literárias como pontos de partida para reflexões psicanalíticas. Basta lembrar do famoso Complexo de Édipo, inspirado na tragédia de Sófocles. Ou do tema do parricídio, que toma como ponto de partida a leitura de Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski. Há textos sobre autores hoje menos famosos, como Delírios de Sonhos na Gradiva de Jensen. E ensaios até hoje estimulantes sobre a arte, em diversos aspectos, como O Estranho (Das Unheimliche) e O Poeta e a Fantasia.

 Por que Freud cita mais autores literários que autoridades científicas em sua vasta obra (reunida em 24 volumes)? Bem, há motivos para afirmar que ele não procurava nas literatura a confirmação de suas teorias, mas, pelo contrário, eram as obras literárias que lhe davam "dicas" preciosas de como prosseguir por caminhos obscuros.

Em algumas ocasiões, chegou a escrever que os artistas chegavam antes, e de maneira mais profunda, à realidade psíquica a que ele, trabalhosamente, tentava aceder por seu trabalho clínico e de reflexão. Era como se o artista "antecipasse" realidades que apenas depois, e de outra maneira, o cientista iria alcançar. (In "Análise: Literatura era a arte que mais tocava Sigmund Freud") .

As justificativas para o estudo da literatura exteriores a ela são certamente infinitas, porém não me causa espanto o desinteresse pela leitura ficcional, pela poesia e pelo teatro que observo em profissionais especializados, do nível mais modesto ao mais elevado. A visão integral e humanista que a literatura oferece choca-se com o projeto de ser humano vigente, cuja essência é a fragmentação social ao extremo, a alienação total e o ultra-individualismo narcísico.

Fico por aqui. Se convenci — o que não era a intenção —, muito bem. Se não convenci: amém.