terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

O desenvolvimento conflitivo da psique humana

Embora o desenvolvimento psíquico humano ocorra à medida que o próprio desenvolvimento físico ocorra, os estudos de Freud demonstraram que isso se dá de forma contraditória, não linear e sempre com avanços, recuos e acidentes de percurso de maior ou menor gravidade, dos quais derivam as neuroses e psicoses.

Num desenvolvimento absolutamente “normal”, Freud identificou cinco fases de desenvolvimento psíquico humano: ora, anal, fálica, latência e genial.

Na primeira fase, oral, entre 0 e 2 anos, a erotização da boca leva o indivíduo a buscar não apenas o alimento tão necessário à sua sobrevivência fora do útero materno, mas também o prazer. Esse prazer, a partir de um certo momento, descola-se da própria atividade de sugar o leite materno, o que explica o regurgito do bebê, que em busca do prazer, proporcionado pelo sugar, ingere mais do que o seu aparelho digestivo suporta — noutras palavras, ele continuou a sugar, por prazer, após sua necessidade fisiológica ter sido satisfeita. Também demostra a erotização dessa parte do corpo o uso da chupeta ou, tantas vezes, do próprio dedo.

A segunda fase do desenvolvimento psíquico para Freud é a anal, entre 2 e 3 anos, quando entra em jogo o controle da urina e das fezes. Naturalmente levado a esse exercício pelos próprios movimentos do organismo, e orientado e censurado pelos pais, a criança descobre o prazer de prender a urina e as fezes e de liberá-las. A sensação proporcionada por esse exercício de controle do próprio corpo erotiza essas regiões, mas o prazer ainda está associado exclusivamente à liberação de urina e fezes

A fase fálica, entre 3 e 6 anos, corresponde para Freud àquela em que o órgão genital é percebido enquanto tal pela criança, que passa a tocá-los em busca do prazer, mesmo quando a necessidade puramente fisiológica já foi satisfeita. O que ocorreu coma erotização da boca, ocorre com a erotização do órgão genital: o prazer se descola da função fisiológica da micção, e passa a ser buscado quando ela está em jogo.

Na fase de latência, de 6 anos à puberdade, Freud identifica um período em que as atenções do indivíduo se voltam para as relações sociais, para o exterior, em razão do que o desenvolvimento psíquico relacionado à sexualidade sofre uma repressão das sensações erógenas, em favor uma constituição mais definida do ego. Nesse período, as transformações físicas e psíquicas ocorrem gradualmente, muitas vezes de forma quase imperceptível, mas ao fim da qual, grandes e radicais transformações, em ambas as dimensões, ocorrem vertiginosa e definitivamente.

A fase genital, a partir da puberdade, para Freud, corresponde ao estágio em que o indivíduo, em condições normais, atinge em definitivo a maturidade psíquica e sexual. Mudanças significativas, deflagradas ao final da fase de latência, se impõem no início desta e, ao final dela, alcança-se a fase adulta.

Porém, os estudos de Freud verificaram que, em razão de traumas, fantasias ou idiossincrasias do próprio indivíduo, seu desenvolvimento psíquico pode sofrer recuos importantes e mesmo patológicos, caso em que afloram neuroses ou psicoses.

Para Freud, as neuroses são mecanismos defesa a que o indivíduo recorre para suportar um sofrimento excruciante. Assim, as manifestações emocionais ou psíquicas anormais não seriam a doença em si, mas uma reação do indivíduo para enfrentar uma dor interna sobre a qual não tem domínio e à qual não consegue sanar sem ajuda — aqui se justifica para Freud o papel do psicanalista, que é o de ajudar ao paciente afetado a descobrir a origem de seu sofrimento e a construir mecanismos psíquicos internos para restaurar sua saúde emocional.

As origens dessas neuroses, Freud identificou, residem em fases remotas do desenvolvimento psicossexual. As fobias, por exemplo, teriam relação a uma fixação do indivíduo na fase fálica, em que a angústia de castração e a sensação de aniquilamento e desemparo se sobrelevam. Aqui, uma lembrança ou em face de um objeto ou situação específica, o indivíduo reage desproporcionalmente. Por seu turno, as obsessões e compulsões teriam origem na fase anal, quando a imposição de regras e censuras, com os primeiros conflitos entre ID e Superego. Nesse particular, para “evitar o erro” e a dor de ser censurado, o indivíduo repete inúmeras vezes o mesmo gesto, o mesmo processo, a mesma ação. A histeria teria como ponto de fixação a fase fálica. Suas manifestações seriam uma somatização de uma defesa que não pôde ser elaborada psiquicamente pelo indivíduo.

Os estudos de Freud demostraram também que em linhas gerais, todos os seres humanos são em certa medida neuróticos, pois durante o processo de desenvolvimento psicossexual, todos, todos recalcamos impulsos e desejos, alguns dos quais, mal elaborados em nossa psique, retorna na forma de sintoma.

Sob esse aspecto, Freud também inovou no que tange à saúde preventiva, pois, ao constatar que todos estamos expostos a traumas de maior ou menor monta, deixou implícita a necessidade de que a psicanálise se voltasse não somente para os indivíduos diagnosticados com patologias, mas também para os considerados em condição de normalidade, uma vez que mesmo estes não estão a salvo de processos estressantes que desencadeiem sintomas neuróticos mais acentuados — e a situação de confinamento durante a pandemia de Covid-19 bem o demonstrou, com os índices de atendimento de saúde mental do SUS saltando substancialmente entre os anos de 2020 e 2022.

Porém às neuroses, somam-se ainda as psicoses (esquizofrenia, paranoia e melancolia), cujas origens podem ser diversas, mas cujos danos psíquicos são ainda mais severos. Ambas, tanto neuroses quanto psicoses, demonstram que o desenvolvimento psíquico humano nem é linear, nem está livre de afecções, e que o conflito entre Id, Ego e Superego é inerente à própria condição humana.

Freud e o início da Psicanálise

 

As pesquisas e as práticas de Freud inserem-se no conjunto de revoluções científicas e técnicas do século XIX, que promoveram um progresso exponencial em todas as áreas do conhecimento humano. Porém essas revoluções não ocorreram como frutos do acaso, constituindo-se, antes, como um salto de qualidade de mais de quatro séculos de disputas entre os pontos de vista religiosos e os científicos — os quais ao mesmo tempo impulsionavam e eram impulsionados pelo capitalismo nascente.

Com efeito, das grandes navegações, com suas caravelas movidas pelo vento, em fins do século XV e início do XVI, à máquina à vapor, que pôs navios gigantescos nos oceanos e espalhou ferrovias por todos os continentes da Terra, no século XIX, praticamente todas as barreiras religiosas que se opunham ao progresso tecno-científico vieram abaixo.

Se a filosofia, com seus humanistas e iluministas, em sua guerra contra o predomínio da religião, imperou soberana nos meios cultos até o século XVIII, no século XIX o polo dinâmico se deslocou para as ciências da natureza, que já tinham em Copérnico, Newton, Galileu e Giordano Bruno um solo fértil, cultivado desde o século XVI. Porém não veio diretamente da física a influência predominante desse século XIX tão decisivo para as ciências, mas do que então se chamava história natural, hoje identificada com a biologia.

A pesquisa genética de Mendel e principalmente a da origem das espécies, de Darwin, ultrapassaram seus próprios limites, e tiveram suas perspectivas e seus métodos importados pelas demais ciências, naturais ou humanas — entre as quais as que se voltavam para o estudo dos transtornos mentais.

De uma maneira geral, pessoas com transtornos mentais mais severos eram, como continuam a ser até os dias de hoje em muitas partes do mundo, em manicômios e asilos para alienados, onde, a depender da situação econômica e da tradição local, eram compartilhavam espaço com crianças órfãs e idosos abandonados, surdos-mudos confundidos com pacientes psiquiátricos, tuberculosos, leprosos entre outros.

Os trabalhos de Freud e de sua geração de pesquisadores da mente foi pioneiro, ao buscarem, orientados por critérios científicos, diagnosticar transtornos psíquicos e desenvolver métodos e práticas terapêuticas.

Afastando perspectivas metafísicas, religiosas, místicas e do senso comum, Freud logrou compreender a pisque de seus pacientes por meios inusitados para a época. Porém, para tanto, era necessário desenvolver conceitos eficazes tanto na diagnose quanto na terapêutica. De todos os conceitos desenvolvidos por Freud, talvez o mais emblemático seja o de “inconsciente”.

Ao propor que a psique humana é constituída de três dimensões — consciente, pré-consciente e inconsciente —, Freud põe por terra as ideias religiosas de unidade da alma, e as metafísicas, de identidade individual indivisível. Não fora o suficiente para abalar verdades até então consagradas, Freud ainda defende que a maior parte da psique humana é ocupada pelo inconsciente, no qual residem lembranças, memórias e pulsões recalcadas durante o processo que se inicia no útero materno e que acompanha o indivíduo até sua morte.

Se num primeiro momento Freud compreende a psique humana como tripartida entre consciente, pré-consciente e inconsciente, à medida que suas pesquisas avançam e suas sistematizações progridem ele chega à uma outra versão dessa mesma ideia. Agora, para ele, sem descartar a tríade consciente-pré-consciente-inconsciente, os conceitos de Id, Ego e Superego ganham lugar. Esse modelo promoverá um verdadeiro abalo nas ciências da mente e da psique humanas.

Ao considerar que o Ego é uma dimensão da psique humana que busca controlar as pulsões primitivas do Id (em relação às quais a moral, a ética e os limites sociais nenhum poder têm), e resistir às imposições do Superego (relacionadas às convenções sociais), Freud expõe a fragilidade do equilíbrio psíquico humano, que dependeria, assim, de um Ego bem estruturado e sadio, mediador de tensões entre Id e Superego.

A esses conceitos fundadores, Freud acrescenta e desenvolve o de “pulsões”, que seriam energias psíquicas originárias no Id, a alimentar tanto o Ego quanto o Superego. E para desconforto geral de uma ciência que considerava a morte como inimiga da vida, Freud propõe que a saúde psíquica depende do equilíbrio entre pulões de vida (Eros) e pulsões de morte (Tanatus), sendo as primeiras chamadas por ele de “Libido”.

A obra teórica de Freud se avoluma e se sofistica à medida que suas práticas terapêuticas e suas reflexões científicas apresentam novos desafios, que exigem ajustes em seus modelos. Se incialmente seu trabalho se voltou para pacientes às voltas com transtornos psíquicos sintomáticos, à medida que sua perspectiva passou a ser adotada mais largamente, suas reflexões se mostraram também válidas para psique humana em geral — não apenas para a compreensão das psiques abaladas por traumas significativos.

Ao observar que sintomas de seus pacientes estavam relacionados com seus inconscientes — portanto com seus Ids —, Freud buscou formas de acessá-los; primeiro, por meio da sugestão hipnótica; depois, descartando-a, por meio da livre associação, oriunda da fala sem censuras do próprio paciente: ao alcançar por meio da livre associação os eventos traumáticos recalcados nas profundezas do inconsciente, o paciente punha-se em condições de inseri-los em uma nova narrativa, esta consciente, e ressignficá-los, habilitando-se a, reforçando seu próprio Ego, reequilibrar toda sua psique, abalada sempre que o trauma aflorasse sem expressão na linguagem — sob esse aspecto, o sintoma seria uma manifestação fisiológica, oriunda de um trauma não equacionado pelo Ego.

Por entender a importância do inconsciente na psique humana, Freud envereda seus estudos para um campo em que ele, o inconsciente, age sem freios: o campo dos sonhos.

Freud será também pioneiro em investigar os sonhos de um ponto de vista estritamente científico — uma vez que os sonhos são alvo de interesses místicos, religiosos e metafísicos desde que o homem se entende enquanto tal. Sua obra A interpretação dos sonhos, publicada em 1900, se tornará um clássico para além das fronteiras da ciência em ele que pontou como fundador, a psicanálise.

Se Copérnico tirou o homem do centro do universo, e Darwin o tirou de seu pedestal sagrado, Freud demonstrou que ele não é senhor sequer de sua psique, cujo Ego luta para não ser esmagado pelo Superego, introjeção das convenções sociais, e pelo Id, dimensão primitiva e biológica de nossa humana condição.

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Ditadura relativa e negacionismos - Marcos Silva

Ditatura relativa e negacionismos, do prof. Marcos Silva, da Universidade de São Paulo, realiza um minucioso raio X das leituras do jornalista Elio Gaspari e do prof. Marcos Napolitano sobre a ditadura militar brasileira.

Quanto ao primeiro, o prof. Marcos Silva, com sua linguagem elegante, analisa de que perspectiva Elio Gaspari tece sua narrativa de jornalismo retrospectivo, tomada por mais de um desavisado como obra historiográfica.

Ao desmistificar as fontes documentais usadas pelo jornalista para redigir sua obra monumental (ao feitio das obras faraônicas do período Médici), Marcos Silva deslinda a parcialidade de Elio Gaspari, mal disfarçada pela linguagem escorreita que caracteriza a escrita encomiástica da ditadura. O ponto de vista de que o jornalista fala é o do escriba de Castelo Branco, Geisel e Golbery do Couto e Silva - o primeiro, tratado como militar culto e bem intencionado; o segundo, como estadista racional e adversário dos porões da mesma ditadura que ele comandava; e o terceiro, como mago a idealizar, preparar, conceber e  propiciar o fim de uma ditadura da qual participou desde o primeiro momento e à qual serviu como ministro dos diversos ditadores que se sucederam desde o infausto 1o. de abril de 1964.

Em sua crítica à obra, Marcos Silva observa como, para Elio Gaspari, a história comparece como um alinhavo de eventos desencadeados por pessoas ilustres e comandados por figuras proeminentes, quando não notáveis, caso dos três militares acima citados. O conflito entre classes sociais passa longe da coleção de 5 volumes (A ditadura envergonhada, A ditadura escancarada, A ditadura encurralada, A ditadura derrotada, A ditadura acabada), e os movimentos de resistência à ditadura, quando abordados, servem de pano de fundo, à moda de cenário desfocado propositalmente para que holofotes sejam projetados sobre os atores principais.

Os títulos das obras se figuram, assim, após a leitura do livro do prof. Marcos Silva, no mínimo ambíguos, quando não cínicos, em relação ao texto: ditadura, sim; mas haveria ditadores bem intencionados, cultos e avessos a radicalismos de ambos os lados do conflito que ensejou a "revolução redentora'.

Quanto ao livro 1964: História do regime militar brasileiro, do prof. Marcos Napolitano, Marcos Silva analisa a obra do ponto de vista de um colega de ofício, e por isso aponta criticamente o que entendeu serem às vezes insuficiências, às vezes descuido, às vezes erro metodológico — mas há espaço também para a saudável divergência teórica, relacionada às linhas no campo da história que caracterizam a identidade intelectual e política de ambos os professores.

Marcos Napolitano oferece sua perspectiva teórica ao leitor já no título de sua obra em destaque — e começa já aí a crítica de Marcos Silva, uma vez que "regime" e "ditadura" têm denotações e conotações muitíssimo diversas. Para Marcos Silva, o título é, quando menos, um eufemismo (isso digo eu, que escrevo esta resenha).

Também aqui Marcos Silva observa na narrativa de Marcos Napolitano um certo papel secundário reservado às classes e grupos sociais resistentes à ditadura, em meio a certas imprecisões no detalhamento de conceitos trabalhados no livro, mas que se prestam a questionamento teórico sempre (o que é a classe média? o que é periferia? haveria classe média em periferias geográficas? o centro geográfico de uma metrópole comporta periferias?).

Nas duas obras o prof. Marcos Silva apresenta com farta argumentação elementos que se prestam à relativização da ditadura e à negação de suas consequências na vida do país - consequência que, demonstra Marcos Silva, apontam para a permanência de fortes elementos da ditadura até os dias atuais, a exemplo do golpe que derrubou a presidenta Dilma Rousseff e do atual governo, abertamente apologista da tortura, do assassinado de opositores e da própria ditadura, a qual reinstaurará caso a correlação de forças na sociedade o permita — isto dito por último, também, o afirmo eu, que escrevo esta resenha, com o que, no entanto, me permito supor, o prof. Marcos Silva talvez concordará. 

Maria Antônia Edições
Número de páginas: 160
Dimensões:12,5 x 21 cm
Peso: 212 gr.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP E Pesquisador Colaborador do Departamento de História da mesma Universidade. Escritor e professor mesma Universidade, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).