Os sonhos acompanham a humanidade desde que ela existe enquanto tal. Ou, por outra, adotada a perspectiva científica decorrente da teoria da evolução das espécie de Darwin, antes mesmo de a humanidade ser esta que hoje conhecemos, uma vez que os estudos comprovam a atividade onírica em todos os mamíferos.
Em 1994, uma equipe de espeleólogos amadores descobriu por
acaso no sul da França, no interior de uma caverna, um acervo maravilhoso de
inscrições rupestres, nas quais animais e seres humanos são representados com
uma técnica altamente sofisticada, em perfeito estado de conservação — o que
ocorreu em razão de um terremoto, estimado em 20 mil anos atrás, ter fechado a
entrada da caverna.
A descoberta da
caverna de Chauvet impactou o mundo científico, pois as inscrições datam entre 30 e 40 mil anos atrás, tornando-se, portanto, as mais antigas até hoje
conhecidas. Foram tomadas medidas drásticas para preservação desse patrimônio
e, assim, as visitas foram proibidas, a caverna foi blindada com uma porta de aço
e seu interior foi dotado de sistemas de câmeras e climático para garantir a
integridade do acervo pintado em parede de rocha e em estalactites. O acesso a
ela é regido por severas normas, e restringe-se ao meio científico e àqueles
relacionados à divulgação cultural.
E o que isso tem a ver com os sonhos?
Tem a ver que o premiado cineasta e documentarista Werner
Herzog, autorizado a produzir um documentário para registrar a descoberta, não
encontrou melhor título para ele do que “A caverna dos sonhos esquecidos”. Assistir ao
documentário explica porque esse título se impôs ao cineasta: o impacto não
apenas do conjunto de mais de 420 pinturas e desenhos animais, de seres humanos e partes
de seus corpos, mas do próprio interior da belíssima caverna — remete
diretamente a paisagens de sonhos: o próprio clima no interior dessa espécie de
útero simbólico é intensamente onírico.
A relação da humanidade com os sonhos tem sofrido alterações
ao logo do tempo. Estudos de história, arqueologia, antropologia, sociologia,
psicologia, psicanálise e ciências afins, ou em suas fronteiras, registram essas mudanças
significativas.
Numa era em que as ciências sequer sonhavam em se estruturar, realidade, imaginação, fantasia, magia e sonho compunham um único tecido indiscernível. O que ocorria entre o dormir ao pôr-do-sol e o despertar com o sol nascente era tão vida e tão legítimo quando o que ocorria durante o dia claro, em que caça, pesca, coleta, fuga de predadores, cuidados com crianças, entre outros, se davam. Não havendo “muralha da china” entre sono e estado de vigília, o que ocorria em ambos era igualmente considerado pelo indivíduo como verdade: afinal, era extremamente angustiante ser atacado por uma fera tanto na vida real, quanto em sonho — com a diferença de que, como a fera do sonho não matava o homem real, este via naquele um aviso, uma premonição a ser tratada com seriedade.
Ao longo dos séculos, os sonhos foram assumidos com tal
respeito que passaram a ser objetos de intepretação e atribuição de personagens
especializados nas sociedades, de oráculos a sacerdotes, de adivinhos a sábios
— e, com o desenvolvimento do pensamento científico, de filósofos a
psicanalistas, passando por psicólogos, antropólogos, sociólogos,
neurologistas, neurocientistas etc.
As abordagens não científicas do sonho são legítimas. Cada
qual em sua esfera procura vislumbrar o humano por meio de sua perspectiva
específica.
Por que rejeitar a leitura mística de um sonho, quando esta
se apresenta muitas vezes como a única em que, em algum momento da vida, o
indivíduo pode apoiar-se para seguir em frente, em face de perturbações
incontornáveis? Por que desprezar uma interpretação religiosa ou mágica de um
pesadelo, quando apenas uma fração muito pequena da humanidade se declara ateia
ou agnóstica? Tanto mais quando tanto as perspectivas místicas, quanto as
religiosas e mágicas legaram à humanidade um acervo de obras de arte e
culturais de valor imensurável.
Porém, se essas perspectivas são legítimas, a científica
também o é, e talvez mais, pois incorpora todas as demais: as ciências estudam
o sonho na esfera material, mas também no âmbito do misticismo, das religiões e do pensamento mágico.
Coube a Freud dar um passo decisivo para compreender de um
modo científico o papel dos sonhos na vida humana, levando em conta fatores biológicos, históricos, sociais e, principalmente, psíquicos.
Sua obra A intepretação dos sonhos (1900), tornou-se
um marco, a partir do qual uma clivagem radical produziu uma decantação
definitiva nas abordagens desse tema, que, de “pária” nos meios
científicos, passa a ser tópico de
prestígio nas ciências da mente. A partir dessa obra fundante, as relações
entre os sonhos e o bem-estar mental e físico do indivíduo começam a ser
investigadas de maneira sistemática ao longo do século XX e adentram o XXI com abundantes pesquisas e publicações pelo mundo todo.
O racionalismo, base do progresso capitalista, que desde o
século XIV se desenvolveu na Europa, no interior do que se convencionou chamar
Humanismo, ergueu, aqui sim, uma “muralha da China” entre a vida psíquica
durante o sono e a em estado de vigília.
Disso decorre que uma parte substancial da existência humana
— aquela que vivemos dormindo — passou a ser ajuizada como “inútil”, afinal, não
se produz nada, do ponto de vista capitalista, durante o sono.
Freud enxerga a arbitrariedade, a fragilidade, a limitação e
o artificialismo dessa “construção” típica do modo capitalista de produção, que
ao reduzir o ser humano a uma unidade de produção econômica, concebe o sono
como uma pequena morte diária, um tempo desperdiçado, e os sonhos, como
bizarrices inúteis dentro de um tempo de produção desperdiçado.
Essa muralha não há para os pensamentos místicos, mágicos ou
religiosos — os quais Freud descarta já no início de seus estudos. Não há
porque, malgrado as particularidades desses pensamentos não científicos, eles
se esforçam por buscar uma compreensão integral (corpo e alma) do ser humano —
não apenas sua dimensão física, fisiológica, econômica.
Coube a Freud, no campo científico, com A Intepretação
dos sonhos, por abaixo essa muralha.