terça-feira, 9 de agosto de 2016

O poço cego do inconsciente, a vara, a linha, o anzol e a isca

Dor. Carvão. Claudindei Roberto, 1985.

Trato aqui um bocadinho, mas bem bocadinho mesmo, do mundo subjetivo, que pode ser representado das mais diversas maneiras, por todas as artes e linguagens. Raiva, paixão, medo, euforia, saudade, lembranças, sonhos, pesadelos entre outros são tornados conscientes por meio das linguagens, mas pertencem ao obscuro mundo do inconsciente individual humano, no qual a razão e as leis científicas têm pouco espaço.

Tornar consciente essa dimensão oculta de nós mesmos permite que aprendamos com ela, que conquistemos um mínimo de controle sobre emoções, sentimentos e pensamentos e, o principal, que criemos formas para viver melhor.  

Os textos verbais subjetivos (descrições, narrações, dissertações) são mecanismos para trazermos nossos fantasmas, medos, fantasias (boas ou más) para a luz. À luz da plena consciência, eles não nos assustam mais, nem hipnotizam e, símbolos que são, podem ser lidos, analisados, interpretados e compreendidos – passo decisivo para que assumamos domínio na construção e transformação de nossa integridade emocional e intelectual, e de nossa identidade individual e social. 

Enquanto nos textos objetivos, entre os quais os informativos, as regras da estruturação seguem modelos consagrados (a notícia tem um formato pré-estabelecido, assim como os textos dissertativos, por exemplo), nos textos subjetivos, embora haja gêneros canônicos (conto, crônica, poema, romance, teatro entre outros), o que conta é a total liberdade de criação. 

Isso ocorre porque não há a menor possibilidade de que a subjetividade aflore na ausência de liberdade de expressão. Em um texto subjetivo, em primeiro lugar está a adequação da forma à expressão da emoção, dos sentimentos, das sensações do autor. 

A coerência a que um texto subjetivo deve acorrer é a coerência interna a ele. A verdade desse gênero de texto é a verdade inventada em seu próprio interior. Nele, pedras podem voar, animais podem filosofar; seres humanos podem se converter em monstros e voltar à forma humana; de uma cena a outra, pode-se morrer e ressuscitar, se transmutar, levitar. 

Os textos subjetivos flertam com os sonhos, com os pesadelos, com o mágico, com o impossível, sob a ótica da razão chã. Acontece que o indivíduo humano enlouqueceria se não sonhasse (dormindo ou acordado) voar, viver aventuras de risco total, desvendar ou defender segredos vitais ou mortais. 

E enlouqueceria também se não conseguisse se livrar de seus pesadelos ou expressar suas fantasias e desejos por meio do teatro ou da pintura, do romance ou da música, da dança ou do cinema, da poesia ou da história em quadrinhos. 

Quanto sofremos perdas dolorosas, somos atirados num poço sem fundo de luto e tristeza. Se não pescarmos nas águas desse poço cego os símbolos por meio dos quais se possa converter essa dor, esse sofrimento, em uma nova narrativa, estaremos perdidos no labirinto de nossa própria subjetividade atormentada. 

Em situações como essas só a arte nos salva. Ainda que a arte pouco festejada: a de se aprender com a própria dor (não por acaso a psicanálise recorre à literatura desde seu surgimento). 

Por mais que resistamos, se desejamos seguir em frente, é preciso pescar no poço cego das perdas – e a linguagem em geral e as artísticas em particular são essa vara, essa linha, esse anzol e essa isca.



Jeosafá é escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria),  em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora, e no mesmo ano A lenda do belo Pecopin da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela Mercuryo Jovem. Leciona para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados de São Paulo.

domingo, 7 de agosto de 2016

O traidor ainda implorará de quatro "Meu reino por um cavalo"

Ator Ian Mckellen, o Ricardo III do filme
homônimo de Richard Loncraine.
Não sou pessimista, pois sei que estes dias sombrios e de maus presságios vazarão para as artes, entre elas o teatro, e permanecerão não como assombrações para gerações futuras, mas como memórias para reflexão de maus dias, que convém não esquecer para que não retornem na forma de pesadelos.

Na linguagem, sons, partes de palavras, palavras, frases, orações se articulam (na língua escrita) em parágrafos, capítulos etc. e dão origem aos gêneros textuais ou literários, entre os quais o teatro.

Diferentemente da objetividade dos textos informativos, a linguagem do teatro se organiza inteiramente na esfera da subjetividade.

Se a linguagem objetiva busca o equilíbrio, no teatro exagero não só é válido como é o mais frequente, no drama, como na tragédia ou na comédia, isso porque as emoções humanas literalmente sobem ao palco e entram em cena.

No teatro, todos os fantasmas, medos e emoções ganham espaço por meio dos diálogos, em que sonhos, mas também pesadelos; fatos plenos solidariedade, mas também de cobiça, inveja, trapaça e ódio são representados em linguagem organizada para emocionar, surpreender, assustar, fazer rir, chorar ou refletir.

Antes do cinema, foi o teatro o responsável por tornar consciente de maneira coletiva a alma humana, com suas grandezas e baixezas. Antes de gritar "Meu reino por um cavalo", Ricardo III, de William Shakespeare, já assassinou no palco o irmão, obrigou a cunhada a desposá-lo e usurpou a coroa e o trono, numa das representações mais contundentes da degradação a que chegou a Inglaterra em um de seus períodos menos gloriosos.

Quem desejar conhecer de maneira mais objetiva essa fase transtornada da monarquia britânica, precisa mergulhar nos compêndios de história. Porém a verdade é que Ricardo III é mais conhecido no mundo inteiro pelas mãos de Shakespeare do que pelos textos acadêmicos, e é por essa via que ele chegou ao cinema no século XX em várias versões.

Se não fosse o dramaturgo inglês, Ricardo III estaria definitivamente morto para as gerações futuras, e sua múmia simbólica, confinada em algum sarcófago acadêmico empoeirado, seria objeto de estudo de uns poucos historiadores ou arqueólogos excêntricos.

Agradeçamos a Shakespeare a prevalência no tempo desse fantasma depravado, que com frequência é ressuscitado dos livros e sobe aos palcos para se oferecer como elemento de comparação com outros tantos que a vida real não cessa de produzir nos nossos dias.

Não sou pessimista, pois sei que estes dias sombrios e de maus presságios vazarão para as artes, entre elas o teatro, e permanecerão não como assombrações para gerações futuras, mas como memórias para reflexão de maus dias, que convém não esquecer para que não retornem na forma de pesadelos.


Jeosafá, professor, foi da equipe do 1o, ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria);  em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora; no mesmo ano publicou A lenda do belo Pecopin da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para o a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.








quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Professor tem que ter nervos de aço e coração de pedra - só que não

Acordar às quatro e meia da matina, tomar um café rápido, dar vistas no material didático e no planejamento do dia, fazer o check list na bolsa (apostilas ok, lapiseira ok, borracha ok, canetões de lousa branca ok, canetas ok, etc. ok), pôr o lixo na rua, ir para o ponto de ônibus ainda noite escura, encarar a linha Morro Doce - Praça Ramos sempre superlotada, mesmo às 5 a manhã, obrigado prefeito, depois a do trem da CPTM nas mesmas condições, obrigado governador, depois o Metrô, percurso Barra Funda - Tatuapé nas mesmas condições, obrigado novamente governador, mais vinte minutos a pé subindo a rua Tuiuti, ufa!

No caso de hoje - que dormi mal, depois de ter dormido mal ontem -, mal me equilibrei no ônibus, fui praticamente de quatro dele à estação de trem Domingos de Moraes, me arrastei dela pela conexão à estação do Metrô e estava em tal estado de sonambulismo que me cederam o lugar dos idosos para que eu desabasse sobre o assento azul da composição.

E nunca a estação Tatuapé do Metrô ficara tão distante da portaria da escola.

Sete e meia em sala de aula é a lei para o que desse e viesse, às vezes numa boa, às vezes no maior stress. No caso de hoje, o pior estava por vir, palpitava meu coração. Acho que você não chega ao fim do dia, cochichava meu pessimismo nos meus tímpanos sensíveis pela noite de insônia.

Eis que uma turma do Ensino Fundamental, que tinha tudo para me moer feito carne de segunda, resolve patrocinar sua melhor aula do ano. Que estranho, pensava meus neurônios esbugalhados, enquanto os grupos discutiam objetividade e subjetividade na linguagem, ansiosos por saber o que são pulsões, impulsos e compulsões, e como eles se manifestam nos sonhos e quando estamos acordados, na fala como na escrita, no poema como na canção.

Eis que depois, no meio da manhã, do nada, um aluno, este do Ensino Médio, abre a porta da classe em que a aula corria às maravilhas e me põe nas mãos um catatau de páginas e páginas manuscritas com seus poemas raivosos contra a injustiça, cheios de vontade de viver, de paixões e das coisas mais verdadeiras que um coração de jovem pode inventar.

A manhã se encerra com a última aula encontrando alunos de um sexto ano Fundamental curtindo com surpresa cheia de curiosidade as origens históricas da palavra paixão, entre fósseis do latim incrustados nas palavras pateta, apático, simpático, antipático, patologia - e ecos deles nas palavras psicopataapaixonar, passional, entre outras.

O dia estava salvo, pensei ao cruzar o portão de saída da escola.

Porém, rumo ao Metrô, com uma leve dor de cabeça por causa do sono persistente, dois alunos do Ensino Médio me encontram pelo caminho e me acompanham pela rua abaixo. Ela, contente com as notas de redação do bimestre, pura simpatia, ele, com quem já troquei conversas sobre seus ótimos textos, interessado em saber o que eu achara de sua narrativa sobre uma utopia por ele inventada, aliás, excelente, o que não me desobrigou de corrigir um erros de coesão e outros de uso dos tempos verbais.

Quando a moça se despediu e seguiu seu caminho, continuamos conversando até a estação Tatuapé do Metrô sobre nada menos do que... Scott Fitzgerald, de O grande Gatsby, J. D. Salinger, de O apanhador no campo de centeio, e Marcel Proust, de No caminho de Swann (Um dos sete livros de Em busca do tempo perdido), que ele lera durante as férias.

Enquanto ele falava sobre Fitzgerald, Salinger e Proust, com a empolgação de que só um coração de estudante é capaz, eu o ouvia atento, chocado mesmo com a fraqueza em que me via flagrado, de coração batendo nos tímpanos, e pensava comigo: "Deus, piedade, como é dura a vida do professor, quando a gente acha que vai ter o direito de desabar e ser esmagado, vem socorro de todo lado".
Tem que se ter nervos de aço e coração de pedra, não é mesmo?

Quando me despedi do aluno, que atravessou a passarela enquanto eu me dirigia aos bloqueios, um maldito verso do Drummond atacou minhas coronárias (que segundo meus cardiologistas deveriam bater pum-pum, pum-pum; mas batem puf-pum, puf-pum):

Meu coração cresce dez metros e explode.

Se eu não me lembrasse do verso seguinte, último do poema Mundo Grande, era agora que meu coração explodiria, mesmo - porque eu estava num daqueles dias piegas, autocomiserativos, bom de entregar os pontos. Mas... eu me lembrei:

- Ó vida futura! Nós te criaremos.

Me lembrei e me salvei. Melhor, fui salvo. E um dia que não ia valer de nada, acabei desejando que não terminasse.


Jeosafá é escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria),  em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora, e no mesmo ano A lenda do belo Pecopin da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela Mercuryo Jovem. Leciona para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados de São Paulo.