quinta-feira, 21 de julho de 2016

Querem saber de uma coisa? Não vou fazer coisa nenhuma.

Hoje tive uma ideia que talvez ponha em prática numa de minhas turmas do Ensino Fundamental. Consiste essa ideia em estimular a fantasia dos alunos por meio de histórias sugestivas, oníricas, fantásticas, ou meramente fantasiosas, plenas de imagens visuais e sonoras, que remetam à memória ou à invenção de futuros imediatos ou remotos.

Feito isso, orientaria os alunos a empregarem estratégias para disfarçar suas letras, de maneira que se tornasse impossível, mesmo para os melhores amigos, reconhecer pela grafia o autor ou a autora da história que viesse a ser escrita - e aqui já estou denunciando o terceiro estágio dessa ideia: alunos e alunas seriam instados a produzir narrativas curtas, a partir dos estímulos oferecidos, e a registrá-las em letras disfarçadas. O penúltimo estágio dessa ideia seria cada aluno, cada aluna, assumir um codinome (que apenas ele ou ela e o professor saberiam). O último estágio corresponderia à circulação e leitura dos textos, livremente.

Fico imaginando o que essa despersonalização da autoria acrescentaria em termos de liberdade de escrita a cada um dos autores e autoras. Naturalmente o jogo de esconde-esconde não sobrevive se a possibilidade de ser descoberto não estiver implícita. Na verdade, o que confere graça ao jogo e exatamente esse risco. Seja por pistas deixadas inadvertidamente em meio à grafia disfarçada, seja pela menção e episódios comuns entre colegas, seja pelo uso de certa expressão, ou mesmo vício de linguagem, nem todos os pierrôs e colombinas permanecerão eternamente indescobertos - e é mesmo possível que nenhum deseje permanecer eternamente nessa condição de anonimato.

Haverá um momento em que as máscaras hão de querer ser retiradas, uma vez que o narcisismo de adolescentes é uma balestra cujo gatilho é de acionamento irrefreável: quanto mais esticada a linha e curvado o arco, mais próximo o momento fatal do disparo.

Querem saber de uma coisa? Não vou fazer coisa nenhuma. Dá muito trabalho.


Jeosafá é escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria) e  em maio deste ano, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora. Leciona para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

A palavra mais linda do mundo


Como o sonho, a poesia também condensa, sobrepõe, justapõe, associa, dissocia, inverte, aumenta, reduz, desfoca, deforma e assim sucessivamente. A verdade da poesia é também irmã da verdade do sonho. Por isso é um tanto ingênua, em se tratando de ambos, a pergunta: "Aconteceu, mesmo"?

Vladimir Kush, Pôr de sol no oceano.

Tudo que acontece no sonho e na poesia é verdade: verdade do sonho e verdade da poesia. Porém, muitos hão de concordar, embora verdades ambíguas, é mais fácil e prudente crer nessas duas do que naquelas que dizem pertencer à vida real. Por isso, uma vez tendo-se penetrado nas lógicas oníricas e poéticas, é praticamente impossível escapar-se de suas narrativas. por mais antinarrativas que pareçam, por mais ilógicas que sejam, por mais inverídicas também.


Porém, num sonho, somos tragados involuntariamente por sua narrativa, instaurada pelo sono e por mecanismos psíquicos longe ainda de serem desvendados. Na poesia, não. Vamos ao poema voluntariamente - ainda que por vezes instados por imposições sociais, como ocorre na vida escolar e acadêmica. Para que sejamos tragados pela narrativa do poema, precisamos, antes, tragá-la por mecanismos de leitura muito conhecidos de todos nós.

Do idioma ao vocabulário, da sintaxe às regras de pontuação e acentuação empregadas ou subvertidas, da organização das palavras na página aos jogos de linguagem etc., tudo é a um só tempo objeto de leitura e elemento de resistência. Somente quando vencidos totalmente os elementos de resistência - enigmas - é que, tornando-nos parte da própria narrativa que internalizamos concretamente no ato de ler, nos aproximamos da fruição, que no sonho é involuntária por natureza - talvez até mais que involuntária: compulsória.

Vladimir Kush, Cavalo de Troia.
Quando os elementos linguísticos de resistência do pema são plenamente assimilados e incorporados automaticamente no ato de ler, os encadeamentos e associações se deflagram na psicologia do leitor, também automaticamente, como nos sonhos.

E aqui observamos um mecanismo, agora, também involuntário: como no sonho (do qual podemos ser despertados, mas cujo encadeamento não podemos controlar) podemos interromper a fruição do poema simplesmente abandonando a leitura, mas não podemos controlar as associações que a fruição fará aflorar em nosso espírito, em nossas emoções, em nosso juízo.

Estamos, pois, diante de dois processos diversos que alcançam os mesmos efeitos, senão resultados: no sonho, é necessário estar-se dormindo, portanto inconsciente, para se estar completamente entregue a sua narrativa. Na poesia, é necessária a plenitude da consciência para, internalizada a narrativa, alcançar-se a plenitude da fruição, sobre a qual perdemos, então, o controle. Noutras palavras, a cerca entre sonho e poesia está no chão.


Jeosafá é escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria) e  em maio deste ano, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Um livro mais leve que o ar, mas não sem risco

Em nome de Anna , de Rudi Fischer, que tive o privilégio de ler no original e que agora ganha forma definitiva, é um livro para leitores de coragem, sem a qual não é possível atravessar o Rubicão sequer da primeira para a segunda página. O livro foi escrito a partir da experiência mais dolorosa que um pai pode ter: a perda de um filho.

Vítima de um acidente doméstico, no final do mês de maio de 2012, a dias de completar seus quatro anos de idade, a pequena Anna Laura, filha de Rudi e da psicóloga Cláudia Petlik Fisher, deixou este mundo e foi para o céu das crianças, com seus cachinhos loiros, com sua inocência, e seus dentes de leite ainda intactos.

É um livro de dor e, ainda mais, de amor, na fonteira da poesia e da realidade; do sonho e do pesadelo; do êxtase e do tormento; da razão e do delírio - sempre transitando de um a outro lado desses mundos aqui não excludentes, nem complementares, nem congruentes. No entanto, é um livro mais leve que o ar, como os balões vermelhos que Anna adorava. Fique porém o aviso: mais leve não implica menor risco. 

Para compor essa obra, o autor convidou uma linda ciranda de amigos artistas, que se esmeraram em produzir belíssimas imagens, que são verdadeiras dádivas para os olhos e para o coração.

Para se ter uma ideia, numa das páginas iniciais e numa das finais há a ilustração de uma tesoura, obra de Gerardo Goldwasser. Se passarmos sobre essa ilustração o marcador de páginas semitransparente que acompanha o livro, a tesoura se abre e fecha, numa brincadeira visual que remete diretamente ao ato de picotar papéis - as crianças adoram isso - e à própria capa do livro, composta de mozaico de picotes.


Além do livro, Rudi passou a lutar para a instalação de parques infantis acessiíveis para crianças com necessidades especiais. A inciativa chama-se Anna Laura, Parque para Todos. Rudi mapeia locais públicos, inclusive fora do país, como em Tel-Aviv, articula-se com autoridades locais, fornece os equipamentos adequados e faz a manutenção deles, como forma de homenagear a filha e de converter a dor em solidariedade humana.

Em nome de Anna é um livro para leitores de coragem. Porém, sobre esse particular, Clarice Lispector já nos deu régua e compasso: "Repito por pura alegria de viver: a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale a pena!"

Leitor: arrisque-se!

Artigo relacionado



Jeosafá é escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou o ano passado O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria). e lança em maio deste ano, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora.