Encontro com estudantes do Colégio ECO, na Lapa, em 2013, a propósito de meu livro O diário secreto das Copas. |
Relações de ensino-aprendizagem: Ética, Valores e Cidadania
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Faculdade Mário Schenberg - Aula comunitária 26/08/15 |
Porém, tivemos sucesso ao pôr em foco o debate sobre as
condições mínimas necessárias para existência do indivíduo, para a instauração
do cidadão e para o entendimento razoável do que seja o ser humano.
Com contribuição do colega professor José Evaristo Silvério Netto, vimos que
indivíduo, cidadão e ser humano são dimensões indissociáveis: não se oprime uma
sem se violentar as outras duas; por outro lado, ao se promover uma, as demais
também se desenvolvem obrigatoriamente.
Quando nascemos, somos um indivíduo da espécie. Nessa
condição básica, somos incapazes de
prover nossa própria existência. Porém,
incapazes de decidirmos por nossa conta, ao sermos acolhidos pelos demais
membros de nossa espécie, somos introduzidos no âmbito da humanidade, que nos
dias de hoje exige o imediato reconhecimento do direito à cidadania. Por isso é
hoje (mas em outra épocas não) obrigatório o registro de nascimento, no qual uma humanidade específica (de um país, de um estado ou província, de uma
cidade) faz constar o compromisso que ela assume conosco logo ao nascer,
identificando pai, mãe, data e local de nascimento, naturalidade e
nacionalidade. Ou seja, não se nasce humano: torna-se humano (nos mesmos termos
que Simone de Beaovoir afirma: “Não se nasce mulher: torna-se mulher”).
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Casa Pia Externato São Vicente de Paulo Aula comunitária - 24/10/15. |
Nossa discussão ficou bastante presa à polêmica de até que
ponto a dignidade humana aceita que o indivíduo seja violentado para que
permaneça vivo apenas em suas funções puramente fisiológicas. Vimos que essa é
uma discussão ética bastante dramática, mas que não se deve resvalar para o
terreno da moral, seja ela religiosa, política ou de grupo ideológico – pois se
abriria aí a possibilidade de a moral de um grupo, portanto restrita, impor
seus valores aos demais grupos que compõe o conjunto da humanidade.
Ora, mas o que é ética? O que é moral?
O assunto é extenso. Para fins absolutamente didáticos, abro
aqui espaço para um quadro sinóptico comparativo (e todo conhecimento é um
conhecimento comparado, já nos ensinaram os mestres das ciências da educação)
menos para explicar, mais para investigar:
Quanto
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A Ética
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A Moral
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Ao alcance
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É ampla e busca alcançar a humanidade como um todo.
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É restrita e válida apenas no interior de um grupo humano específico.
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Busca encontrar nas diversas morais pontos de convergência que tornem
possível a convivência humana.
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Prescreve regras de conduta obrigatória para a constituição e
sobrevivência do grupo.
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Ao estabelecimento das normas
de convívio social e humano.
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Tende à incorporação das descobertas, inovações e revoluções
científicas
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Tende à manutenção das tradições do grupo e à resistência a mudanças.
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À função
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É o campo especulativo, da reflexão filosófica, do estudo, da
pesquisa, das leis e normas gerais de convívio humano.
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É o campo reprodução ideológica e dos costumes, da prescrição de
normas de conduta e de controle do indivíduo.
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À análise de fatos concretos
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Tende à objetividade.
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Tende à subjetividade.
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Tende à síntese na forma de conceito generalizante a partir de
observações de fatos humanos concretos.
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Tende ao juízo de valor a partir das normas grupo social, convertidos
em “pré”-conceitos e preconceitos.
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Busca o possível e aceitável a partir dos pontos convergentes.
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Busca o obrigatório e o compulsório a partir da ótica do grupo.
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Mobiliza a razão.
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Mobiliza a emoção.
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Tende à mediação.
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Tende à polarização.
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O quadro acima poderia ser estendido e, a título de lição de casa, os estudantes poderiam ir opondo linha a linha elementos de ética e moral, de maneira a, organizando o que já sabem, compor um quandro mais completo a partir de suas próprias experiências e intuições. Porém, não me ofenderia se uma estudante dissesse: "Para que essa lição de casa?", ou, "Para que esse quadro?", ou ainda "Para que ética e moral?" - o que me obrigaria a estudar mais e a discorrer mais sobre o assunto (e isso tudo seria muito bom para mim e não só para essa eventual estudante inquieta).
Quando estamos à frente de uma sala de aula, ou de um grupo
heterogêneo, precisamos refletir com o máximo cuidado sobre nossas ações e
palavras, pois somos a um só tempo indivíduos, cidadãos e seres humanos éticos e morais.
Caso não nos coloquemos na posição de quem busca os pontos
convergentes entre todos os indivíduos, cidadãos e seres humanos desse grupo
heterogêneo (portanto composto diversas éticas e morais), fatalmente
resvalaremos para uma verdadeira guerra de valores, na qual cada um, instigado
pela nossa própria parcialidade, se sentirá autorizado a defender a sua própria
ética e a sua própria moral, lançando, nesse caso, mão das armas necessárias
para fazê-las triunfar sobre as outras a qualquer custo.
Se eu considero o MEU conceito de vida O conceito de vida, o
MEU conceito de feio O conceito de feio, o MEU conceito de Deus O conceito de
Deus, então eu estou autorizado a punir todos os que não concordam comigo,
pois, nesse caso, eu, mais do que estar certo, sou a própria certeza.
Muitas vezes a sala de aula se torna o campo da punição, do
medo e da esterilidade. Quando um aluno tem medo de errar, ele passa a repetir
sem raciocinar tudo que o professor fala - e o mesmo vale para um líder diante de seus liderados, seja um pastor, um padre, um dirigente sindical ou político.
O erro é a oportunidade de diálogo entre professor e estudante, entre o líder e o liderado, é o campo fértil da pesquisa, da troca de ideias em que todos dão e recebem. Porém, se eu, professor, líder, estou sentado no trono das certezas, o que faz um aluno ou liderado a não ser assumir um papel secundário, submisso, sem brilho, opaco como o alumínio (que na natureza é fosco – daí vem a palavra “alumno">aluno”), que só brilha com uma bela esfregada do saber do professor (e mesmo nesse caso ele não faz mais que refletir a inteligência e a sabedoria do mestre)?
O erro é a oportunidade de diálogo entre professor e estudante, entre o líder e o liderado, é o campo fértil da pesquisa, da troca de ideias em que todos dão e recebem. Porém, se eu, professor, líder, estou sentado no trono das certezas, o que faz um aluno ou liderado a não ser assumir um papel secundário, submisso, sem brilho, opaco como o alumínio (que na natureza é fosco – daí vem a palavra “alumno">aluno”), que só brilha com uma bela esfregada do saber do professor (e mesmo nesse caso ele não faz mais que refletir a inteligência e a sabedoria do mestre)?
No entanto, a carreira de professor (e do líder consciente não manipulador) é eminentemente
humanista, ou seja, seu papel é o de contribuir para que a inteligência,
as emoções, as habilidades do aluno se desenvolvam para que ele, deixando
paulatinamente a condição de aluno (eterno dependente do mestre, do líder), se converta
de uma vez para sempre em eterno ESTUDANTE – um indivíduo, um cidadão, um ser
humano integral que pensa, age, cria por conta própria e assume os riscos dessa
sua liberdade de pensamento e expressão, liberdade que precisa ser ensinada e compartilhada também.
O que queremos em nossa sala de aula, em nossos auditórios e praças públicas? Um eterno aluno (ser humano incompleto,
cidadão de segunda categoria, em processo, ainda não de posse da liberdade
inerente à sua condição humana) ou um estudante?
Um aluno jamais confrontará a ética e a moral de seu mestre ou líder,
mas um estudante questionará o tempo todo a ética e a moral de seu professor, mas de sua família, a
sua própria, a de seus pares, a da
sociedade em que está inserido. A ética e a moral hoje vigente
correspondem a suas expectativas de indivíduo, cidadão e ser humano?
Penso que a maior tarefa daqueles que se dedicam à educação
nos dias de hoje é de auxiliar a que nossas crianças, adolescentes, jovens e
adultos sentados (por que eternamente sentados?) nos bancos escolares façam a
transição difícil da condição de alunos [(“alumno = a (sem) lumno (luz)” opaco por natureza] à de
estudante – que mesmo na mais tenra idade está coberto de razão quando pergunta à
professora ou ao professor: Por que isto? Por que aquilo? Por que essa aula?
Por que essa lição de casa? Por que essa tarefa tão fácil? Por que essa prova
tão difícil? Ou... por que essa greve?
Penso que quem não estiver preparado para essas perguntas,
deve refletir profundamente sobre o que faz à frente de uma sala de aula, ou de um auditório, ou de uma praça pública. Se
não é para formar indivíduos, cidadãos e seres humanos livres, no mais amplo sentido
desse termo, então para que mesmo? Aliás, por que será que a canção de Milton Nascimento
se chama Coração de Estudante, não “coração de aluno”?
Os temas bullying", assédio e preconceito serão tratados na segunda parte, que em breve publicarei neste mesmo blog.
Os temas bullying", assédio e preconceito serão tratados na segunda parte, que em breve publicarei neste mesmo blog.
Jeosafá é escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou o ano passado O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria). e lança em maio deste ano, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora.