terça-feira, 21 de junho de 2011

Entrevista TARJA PRETA com o escritor Bruno Azevêdo


Neste blog review, ameças são cumpridas, por isso, tirem da sala crianças de calças curtas. Nesta semana, vaza para o ar a ENTREVISTA TARJA PRETA realizada em off pela internet com Bruno Azevêdo, escritor maranhense com cara de humorista piauiense.  Por uma razão de decoro, quando lerem nas respostas do entrevistado bocudo palavras de baixo calão tipo caralho, cu, merda, porra e congêneres deem o devido desconto e imaginem a palavra Piiii.

O que se pode esperar de um pobre menino de rua que venceu na vida e virou escritor? Incompetência da FEBEM (Falculdade Escola de Bublicidade e Magavilhas), que não o disciplinou na época certa. Agora, está solto por aí, publicando livros. Meu Deus do céu, onde é que vamos parar?

Caro cliente radiouvinte, para sua segurança, esta ENTREVISTA TARJA PRETA está sendo gravada.

Para maior comodidade, leitor, observe a legenda:

OH! GranDiOso FÁ = :0
Bruno Azevedo = :)


Um dois três, rodando...

*             *             *

:0 Li dois livros seus, Breganejo Blues e O Mostro Souza . Gostei de ambos, mas só entendi o primeiro quiá quiá quiá. Seguinte, que escrever para trás não dá: fiz uma resenha para o primeiro (tá aqui no blog, o leitor que se vire para achar), mas vamos falar um pouco sobre o segundo.

:) Eu só digo sim! manda! aliás, o Monstro está indicado como melhor publicação independente no HQmix deste ano. Chique.

:0  N’O Mostro Souza - uma pulp fiction, não? - gostei da quebradeira que é... De onde tirou uma idéia tão estapafúrdia como a desse Monstro com nome de ex-jogador rejeitado do São Paulo? Sim, porque se estava sobre o efeito de algum cigarro fedorento ou substância impublicável, teje perdoado, mas se estava de cara limpa, ai dio mio, interna!

:) Filme de monstro, trash, com peitos e ketchupe, essa era a idéia (com acento mesmo, sempre). No começo as pessoas teriam vinagretes pendurados ao pescoço e haveria os vampiros sugadores de vinagretes. Eu fazia parte de um grupo de quadrinistas que editava fanzines e em frente ao nosso local de reuniões tinha a barraca de rotidóg do Souza, onde a gente matava a broca depois das reuniões. Os vinagretes e tudo mais acabou virando um cachorroquente. Eu comecei a escrever o roteiro do filme e ele se metamorfoseou até virar o romance. Tudo movido ao mais barato vinho São Brás, que é a mais nobre encarnação do vinho.

:0 É o que eu temia. Não era possível você estar são, de posse de toda a sua integridade cerebral, para encarar o vinho São Brás sem mais aquela. Isso é que dá a mistura de cachorro quente e zurapa (aqui é com um "r" só mesmo). Quando o bicho carpinteiro do humor picou você? Em que lugar?

:) O bicho do humor não é um mosquito, é meio como um dinossauro que te engole todo. Merda. Eu sempre li muito gibi brasileiro de humor (Angeli, Laerte, a Mad etc. etc.), e pra mim tem mais à (ou a ver? crase é foda) ver com uma coisa pré-leitura. Se eu olhar alguém cair na rua, antes de acudir, eu rio.

:0 Corre o boato que humorista e  juiz de futebol não têm mãe. Por que vocês são assim?

:) Pu! Engraçado que é a primeira vez que me chamam de humorista. Engraçado que eu ache engraçado. E mãe eu até tenho, mas prefiro mesmo as dos outros.

:0 Além do Breganejo e do Mostro Souza, quais outros crimes andou cometendo depois que saiu da FEBEM (Falculdade Escola de Bublicidade e Magavilhas)?

:) Ando cometendo 3 livros no momento, 3 gibis longos: Poço, Terminal e o Baratão 66. Este último deve sair ainda esse ano com desenhos do Luciano Irrthum. É a história de um estabelecimento que de dia opera como casa de depilação e, à noite, como centro de entretenimento masculino.

:0 Upa! Tô dentro, da programação noturna, fique claro. Excetuada esta entrevista, você já enfrentou situações constrangedoras por causa do que escreve e desenha?

:) Não. Tenho tão poucos leitores que até agora ninguém se incomodou. Espero muito que alguém se bula um dia e me bata. Imagina escritor levando porrada por algo que escreveu! Que poder! Vai que eu até acho um editor depois da polêmica.

:0 É, editor gosta de bater em autor, principalmente na conta bancária. Cê tá no caminho certo para ser chutado. Chovendo meio no molhado – pois você se já referiu a isso quando da pergunta sobre o Monstro Souza – vamos aprofundar essa questão devagar, para o leitor não sentir o impacto todo de uma vez, no fundo do seu eu. Quanto de realidade há no que escreve, tirando as completas pirações suas, que já fazem parte dela. Como é o processo de converter um fato da vida, uma personagem do dia a dia em ficção? Não precisa falar da vizinha, que pode dar bode. Ah! Toma uns livros meus, pra deixar de ser besta.

:) Tem uma coisa que acredito: tudo que me coloniza é meu e é nessa filosofia de buteco que eu baseio todos os roubos. No Monstro Souza, todos os recortes de jornal são reais, todas aquelas referências à mídia são reais e quase todos os personagens são gente que existe de verdade e que, de lambuja, transita aqui por São Luís. Minha idéia a certo momento era devolver a pancada que eu tomei quando li Os Tambores de São Luís, do Josué Montello. Pra  mim foi (e é) um livro seminal, na medida em que foi a primeira ficção que consumi que tratava do lugar por onde eu transitava. E ver o local reconstruído me causou um impacto tremendo. Daí que eu num tenho a verve de lambe cu do Montello e a minha cidade é diferente da dele. Fui buscar nos jornais e butecos essa São Luís que eu queria bolinar.

Nesse processo (o livro demorou 10 anos no forno) rolou não só de a ficção se moldar pela realidade (encontrar um recorte sobre um cara na Suécia que morre soterrado por ervilhas, por exemplo, desvia a trama de qualquer livro), como de a realidade midiática ser moldada pelos interesses da minha ficção; algumas daquelas matérias foram forjadas ou reforçadas sem que os autores soubessem no que elas dariam. Gertrudes, por exemplo, é uma figura arquetípica aqui de SLz, tem uma em cada esquina. O lance de olhar pruma realidade tão absurda é que muita gente acaba vendo que o monstro do livro é a menor das coisas. Ôpa! Valeu pelos livros. Lerei. uhu!

:0 Sobre os livros que lhe dei, convém primeiro dar uma "vista d'olhos" para depois se certificar de que deve agradecer. Alías, não agradeci aos seus, mas foda-se. Quando vier a São Paulo, preciso te apresentar um cineasta amigo meu (Diomédio Piskator) que é você atrás da câmera, do ponto de vista da linguagem bocassujista, odoricoparaguaçumente falando, mas também do ponto de vista da cara: são parecidos até umas hora, ao menos em preto e branco. Voltando à entrevista. Não te dá uma certa exaustão física após finalizar um de seus crimes? Aliás, eles têm interface na internet? Se não têm, por que, vacilão? Seria legal conversar pelo teclado com o Monstro Souza ou com os Ad(h)ailtons e seus tons e seus dons genitais, diria o Caê!

:) Dá mais canseira não ter onde lançar e ter que enfiar a mão no bolso pra fazer tudo artesanalmente, quase só. Cansa tanto que até a descrição do processo é sem vírgulas. Eu não escrevo com frequência então as idéias (com acento de novo) e os livros demoram uma renca de tempo pra ficarem no pontos. Sobre a internet: o Breganejo Blues foi lançado simultaneamente impresso e em PDF pela Mojo Books(http://www.mojobooks.com.br). Hoje o livro tá também no Overmundo (http://www.overmundo.com.br/banco/breganejo-blues ). A versão PDF é bem diferente na diagramação, partes do texto e conteúdo. Ela contém, por exemplo, as letras das canções de Adailton &; Adhaylotn. Aliás, te mando o arquivo em anexo, espalhe, plis. Já O Monstro Souza não deu pra fazer em PDF porque era grande demais e a forma dos vários conteúdos do livro superam e muito a minha capacidade de diagramador e a paciência do Gabriel Girnos, co-autor do livro.

Daí que criamos um blog no www.romancefestifud.blogspot.com, que é um blog de pinups do monstro desenhadas por convidados fodões, o site é aberto a colaborações. Não deixem de desenhar seu monstrengo! Mando em anexo pro seu email. Além do ebook do Breganejo, há algumas imagens de capa e conteúdo pra tu ilustrar teus posts, ok? Se calhar eu mando os livros presse teu amigo cineasta. Quem sabe ele enche o rabo de grana do governo e filma esses troços, né?

:0 Ih, Tá fu. O Diomédio é da tradição da Boca do Lixo, o que significa que quer ver o governo, seja qual for, pelas costas. De todo modo já tinha falado com ele sobre tu, já que você pôs o “tu” no meio. Ele penetrou fundo no... seu blog. Vou fazer uma entrevista com ele e, como ele não gosta de aparecer, perigas que na entrevista dele eu lasque uma foto sua. Porém ele te achou feio para acaretc. Mas a “questã” não é essa. Que tipo de gentinha, além de mim, lê os seus livros. Sim, porque, sendo eu zé-povinho da gema, não me importo e até gosto de ler esses autores mal-amados que atacam as elites dominantes, sempre bonitas e limpinhas.

:) Pu! Na maioria das vezes, penso que gente alguma! Dia desses vi uma pequena lendo O Monstro Souza num ônibus. Me escondi. Eu adoraria conseguir responder isso aí.

:0 Ôpa! A menina que você viu lendo seu livro em um ônibus aí de São Luís deve ser a mesma que eu vi em outro ônibus aqui de São Paulo. Nesse caso, não é uma leitora, mas uma ASSOMBRAÇÃO! Se benze, nego! Você acha que a literatura serve para alguma coisa?

:) Essa menina que você viu ai estava lendo um dos meus livros? Uau! Se sim, bota visagem nisso! A literatura não serve pra nada além da masturbação incessante praticada por nós que a escrevemos, lemos e discutimos pelos botecos como se isso importasse pra alguém. Uma das coisas que me grila em qualquer discussão sobre a arte é a repetição incessante da palavra "importante". Nós temos a mania escrota de usá-la como se fosse a última defesa. No fim das contas, importante de cu é rôla [Leitores e principalmente leitoras, imaginem aqui a palavra Piiiii, tudo bem? Não esqueçam].

:0. Ah, uma ex-aluna minha vulgo Marina perguntou se tu é homem ou o quê... Por que se for, ela disse que você parece bom de apanhar, por causa do que , enquanto autor, fez com o coitado do Ada Hylton, que só leva a pior e nas piores posições. A Marina, antes que eu me esqueça, tem dois metros de altura, pratica alterofilismo e tá doida pra socar um artista, que faz tempo que ela não entra de sola num desses cabras que ficam se assanhando pra cima das minas dela.

:) Para a minha sorte e azar da Marina, estou longe pra caralho [Leitoras, não esqueçam de imaginar palavra Piiii]. Pra meu azar, sou homem mesmo, que melhor estaria se mulher fosse e pudesse gozar dessas prerrogativas de, independentemente do alterofilismo, poder socar as pessoas (artistas ou não) e depois chorar de arrependimento com a sunga na mão. A propósito, o Adhaylton só tomou onde mereceu, não é minha culpa se coincidiu de ser onde gostava.

:0 Porque as escolas evitam que obras mais polêmicas como a sua cheguem aos alunos, mesmo os do Ensino Médio, que já são uns baita duns marmanjos?

:) Porque as escolas ou as pessoas que escolhem o que se lê nas escolas são funcionários públicos e funcionário público nem gente é. Por mim mandava matar todos.

:0 Se eles escolhessem seus livros você tinha uma outra opinião sobre eles, mas foda-se [Piii]. Além de em Deus e em funcionários públicos, em que mais você não acredita nem a pau?

:) Eu acredito em quase nada. Bem, acredito em tudo que aparece no Jornada nas Estrelas: Deep Space Nine. E acredito no Roberto Carlos, até o disco de 1979.

:0 Sabia que você não era um cara normal. Depois dessa pisada, quer mandar um abraço pelas costas aos seus leitores? Manda ver em cinco segundos no máximo, senão eu edito.

:) Abraço. Não acredito nos leitores também.


:0 Caro leitor, viu como ele é ingrato? Assim caminham os escritores do Piauí, ops. Maranhão. Só porque estão mais próximos de Nova Iorque do que o resto do Brasil. Agora, falando sério, dá uma clicadinha aqui embaixo, dá, vai... Só uminha...:


REFERÊNCIA: Bruno Azevêdo. Monstro Souza, São Luiz, Ed. Pitomba, 2010.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Fora da Ordem e do Progresso, Luiz e Simone Ruffato (org.s)

A literatura é uma arte, mas é também uma forma de conhecimento do mundo. Não por acaso Freud estudou profundamente a literatura clássica grega para formular suas teorias sobre a psicologia humana e, por essa mesma razão, com frequência historiadores, sociólogos e antropólogos visitam as páginas da ficção para conferir nesse meio suas intuições, derivadas de anos de pesquisa documental, bibliográfica e de campo.

Naturalmente, no mundo da literatura as representações humanas, sociais, históricas e geográficas, não obstante a lagarta de que se criaram, são já borboletas, umas acinzentadas, outras monocromáticas, outras multicores, umas silenciosas e discretas, outras a estalar as asas enquanto voam.

Há quem se aborreça com a alegoria zoológica do parágrafo anterior, porém, foi a que melhor me acorreu para tornar visível um processo orgânico da produção literária: o de metamorfose da realidade.

Por mais realista que se apresente ao leitor um conto ou um romance, a realidade nele é uma produção psíquica do autor, registrada em letras pretas sobre páginas em banco. A realidade de que o autor parte para criar sua ficção é ainda uma lagarta, que só se converterá em borboleta após a hibernação no casulo de sua subjetividade e o rompimento dele por meio de técnicas mais ou menos comuns à sua época e de artimanhas de estilo, próprias de cada qual.

Dito isto, Fora da Ordem e do Progresso, volume de contos brasileiros organizado por Luiz e Simone Ruffato, embora enfatize a memória da lagarta hibernada no inverno de ditaturas e vícios políticos, é revoada de borboletas numa primavera de liberdade expressiva. Mais precisamente, dezessete delas:

João Anzanello Carrascosa, Júlio César Monteiro Martins, Luiz Fernando Emediato, Domingos Pellegrini, João Gilberto Noll, Luiz Vilela, Sérgio Sant’ Anna, Roberto Drummond, Nélida Pignon, Ivan Ângelo, Ignácio de Loyola Brandão, Lygia Fagundes Telles, Otto Lara Resende, Murilo Rubião, José J. Veiga, José Cândido de Carvalho, Marques Rabelo, Alcântara Machado, Dyonélio Machado, Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Lima Barreto, João do Rio, Alcides Maya, Arthur de Azevedo, Machado de Assis e Bernardo Guimarães.

Como se pode observar na ordem em que os autores são citados acima, o critério de organização da coletânea é cronológico, e invertido: do presente para o passado. Assim, no início do livro está representada a última década do século XX, ao fim dele, o século XIX comparece.

As mazelas de nosso processo histórico, sociológico e, com mais ênfase, político, são flagradas ora com humor, ora com profunda indignação, mas sempre com muita qualidade estética, em que surpresas nos enredos e luminosidades de linguagem poética pontuam sempre.

O prefácio, dos organizadores da antologia, sucinto, preciso, direto e muitíssimo elucidativo explica:

“Há distintas maneiras de nos aproximarmos da História.  (...) Para esta antologia, propomos uma outra apreensão, a da História como sincronicidade. Ou seja,  entendida como acontecimentos simultâneos no espaço e no tempo, descompassada e inconclusa, que se constrói à medida que ocorre, protagonizada por anônimos personagens destituídos de heroísmos, tragicamente marginais à cronologia, agentes e pacientes sem o saber. Histórias que são e não são parte da História do Brasil. Histórias fora da ordem e do progresso”.

Para confirmar esse ponto de vista dos organizadores da coleção, é interessante listar as primeiras palavras dos contos iniciais do volume:

“Escurecia. As montanhas, havia pouco iluminadas pelo sol, em agora sombras suaves” (Travessia, João Anzanello Carrascosa).

“Meu amigo Pedro morreu de cabeça para baixo, com uma galinha ou uma fruta madura” (A Posição, Júlio César Monteiro Martins).

“Nós acordamos cedo e vestimos os nossos uniformes. Nossos pais nos recomendaram prudência e ouvimos seus conselhos” (A data magna do nosso calendário cívico, Luiz Fernando Emediato).

“O menino balançava na rede, com pijama de flanela. Não podia sair ali da varanda. Não podia pular. Não podia correr” (O dia em que morreu Getúlio Vargas, Domingos Pellegrini).

O leitor pode optar por outra ordem de leitura, mas seguir aquela proposta pelos organizadores da coleção não deixa de ser uma opção bastante feliz, pois as formas literárias de representação de nossa história se vão sucedendo como se o ponto de vista do  leitor mergulhasse em um túnel do tempo.

Fatos históricos de repercussão são abordados não pela lente grande-angular das efusivas comemorações ufanistas do período da ditadura militar, mas, a título de exemplo, por uma lente subjetiva que acompanha os passos de gente comum, encurralada entre bandeirolas da festa da Independência e fuzis que as obrigam a ser patriotas em massa.

Num outro exemplo, a tortura é captada não pela ótica de um estoicismo supra-humano, mas pela de um heroísmo chão, coerente, de um realismo cru, pelos olhos do personagem que descreve a morte do amigo, pendurado pela pernas como um frango de frigorífico, num dos muitos porões de suplício que se proliferaram durante o Regime Militar brasileiro.

Daí podemos dizer que se trata de um mergulho na história? Sim, sem dúvida porém, com o devido cuidado de lembrar que a lagarta aqui é já borboleta: é a história pela lente da literatura, por mais convincentes que sejam essas 27 narrativas e o prefácio.

Mas alguém em sã consiciência afirmaria que a história, com  "h" minúsculo ou maiúsculo, prescinde da lente literária? Com efeito, a história, tenha ela o "h" que tiver, nua e crua, sem o aporte significativo da literatura, talvez seja a maior das ilusões.

FONTE: Fora da Ordem e do Progresso. Organização, apresentação e notas Luiz e Simonte Ruffato. São Paulo. Geração Editorial, 2004.


quarta-feira, 8 de junho de 2011

Levantado do Chão, de José Saramago

Domingos Mau-Tempo é um giramundo, um sapateiro, um artesão cujo espírito não se ajusta comodamente ao modo de vida do latifúndio alentejano de fins do século XIX e início do XX. Com sua esposa, vagará de lugar em lugar em busca de emprego para sustentar a família e de taberna para sustentar o vício da bebedeira.

Que fazer? Artistas assim são, embriagam-se sempre de vida e, havendo dignidade pouca nela, embriagam-se doutras coisas. Esse é Domingos Mau-Tempo, de bar em bar, perdido o rumo de casa na confusão da embriaguez, que se não distingue o latifúndio que o vergasta, aplaca sua consciência insatisfeita.

Quando atar a um pé de pau sua corda de enforcar-se, terá pensamentos na esposa, Sara da Conceição, e nos filhos que deixará. Porém, já separado em definitivo deles por conta de seu desregramento imprevisível, de suas andanças e de seus sumiços episódicos, saltará no ar e morrerá suspenso, com mais esse nó na garganta.

Do pai, João Mau-Tempo, o primogênito, herdará o sobrenome, recebido como mensageiro de maus presságios ou como objeto de galhofa, e a indisposição em relação ao latifúndio que, com o padre Agamedes e a guarda, forma a santíssima trindade da exploração, sempre violenta sobre os camponeses do Além-Tejo, sul de Portugal, atados à terra como outrora estiveram os negros africanos às correntes da escravidão.

João Mau-Tempo consumirá sua infância no trabalho da terra tão logo suporte o peso de uma segadeira, foice, enxada ou pá. Em jornadas de dezesseis, dezessete, dezoito horas atravessará a juventude e penetrará a velhice arrastando às costas o fardo do latifúndio, que para os pobres constitui-se de exaustão física e nada de seu além da cova em que se deitará por último.

A esse peso no corpo – de resto, espécie de força de gravidade de uma estrutura fundiária escandalosamente injusta e cruel, cujos efeitos se abatem sobre todos os pobres – João Mau-Tempo acrescentará o dos castigos por – ao invés do pai, que esmagado pelo modo de vida semi-feudal se enforcou – aderir à resistência comunista que se alastra por meio de folhetos volantes largados pelo caminho e do jornal Avante! do PC Português.

Diferentemente do pai, que sucumbe pelas próprias mãos, João Mau-Tempo resistirá a setenta e duas horas de ininterruptas torturas, sairá do calabouço alquebrado, mas vivo para participar ativamente de uma semeadura cujas flores desabrocharão em forma de cravo, na Revolução de 25 de abril de 1974, a qual encontrará seu filho, Antônio Mau-Tempo, em idade de compreender os mecanismos injustos, mas passíveis de serem derrotados, que, no campo, atam o homem à terra e, na cidade, o homem à máquina.

Por meio da saga dos Mau-Tempo, José Saramago destrinça literariamente entre setenta e oitenta anos de lutas camponesas no Sul de Portugal, e põe em cena personagens cuja beleza reside em parte na arte do escritor, mas também em grande parte nos próprios referenciais da vida real em que ele se inspirou.

Do giramundo, que se enforca por não se ajustar à uma vida indigna, ao militante clandestino, que enfrenta a tortura por lutar contra essa mesma existência aviltada, Saramago colhe traços para compor um enredo com um pé na ficção, outro na realidade, dois braços na enxada e dois olhos em um futuro mais digno para o artista, representado na figura de Domingos Mau-Tempo, e para o trabalhador, na de seu filho, João Mau-Tempo.

Quanto a Antônio Mau-Tempo, neto do primeiro e filho do segundo, no enredo do romance participante das manifestações que vão dar na Revolução dos Cravos, de 1974, me ponho a pensar: já ancião, como terá recebido a vitória da direita portuguesa nas eleições de 2011?

Tremo de horror em pensar que ele tenha participado com seu voto dessa “consagradora” vitória, uma vez que sem o voto popular,ela não se teria concretizado. Nesse caso, teria feito como o avô: passado a corda no pescoço e saltado para o nada.

Porém, ouso um palpite. Não: Antônio  Mau-Tempo não saiu ao avô, mas ao pai.

Nesse caso, a luta continua.