segunda-feira, 12 de abril de 2010

Histórias Extraordinárias, de Allan Poe



Trad. e Adapt. Clarice Lispector

Esta exclente tradução de Clarice Lispector para as Histórias Extraordinárias, de Edgard Allan Poe, oferece ao leitor 18 dos mais importantes contos da obra desse decisivo autor da literatura de língua inglesa. A qualidade da edição, por outro lado, é um estímulo ao leitor, que recebe em mãos num só volume um clássico da literatura fantástica e uma tradução de altíssima qualidade de uma das mais importantes escritoras da literatura brasileira, cujo domínio de ambos os idiomas é indiscutível.

O mesmo rigor no tratamento da linguagem de Clarice Lispector em seus romances aqui revela-se na forma de uma tradução requintada, na qual o suspense, marca registrada do importante escritor norte-americano, surge na forma de um vocabulário que, simulando objetividade, reserva para o leitor muitos alçapões cheios de ambiguidades, supresas e sustos:

“Amanhã morrerei e hoje quero aliviar minha alma. Por essa razão vou lhes contar tudo. Na verdade, tudo não passou de uma série de simples acontecimentos domésticos. Mas, pelas suas consequências, estes acontecimentos me aterrorizaram, me torturaram e me aniquilaram. Espero que para outros não pareçam terrívies. Para mim foram. Tanto que, até agora, penso que sonhei. Ou que enlouqueci. Não, louco não devo estar. É que foi demais, horrível demais. Inacreditável que tudo isso tenha acontecido. E assim como aconteceu. E logo comigo que, desde menino, fui sempre dócil, humano”.

A sensação provocada pelo vocabulário convocado pela tradutora é a de que o narrador está abrindo seu coração e contando tudo ao leitor, mas, até onde o parágrafo está desenvolvido, esse narrador não contou absolutamente nada.

Esse narrador do conto “O gato preto” que inicia o volume, na versão de Clarice, vai, isso sim, fermentando o espírito do leitor com dúvidas, cismas, indícios e expectativas.

Nessa estratégia de prestidigitação, palavras aparentemente inequívocas vão constuindo cenários sombrios e idéias ambíguas. Afinal, aquilo que virá a encontro do leitor, é sonhado ou não, é loucura ou não, corresponde ao menino dócil e humano que o narrador foi ou não?

Mistério...

Que a tradutora soube respeitar – e segredo, que ela soube guardar até o último momento, com requinte e em reverência ao autor.

FONTE: Lispector, Clarice. História Extraordinárias/Edgard Allan Poe. Trad. e adapt. Clarice Lispector. Rio de Janeiro, Ediouro, 2005.

Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa


Nesta obra prima de João Guimarães Rosa, Riobaldo, jagunço aposentado e fazendeiro de Minas Gerais, às voltas, entre outros, com o dilema da venda da alma para o diabo, passa a limpo a vida de bandoleiro do sertão.

O enredo se desenvolve a partir das memórias desse jagunço que, em perseguição do bando de Hermógenes, assassino do chefe Joca Ramiro, estabelece uma estranha relação de amizade com Diadorim, companheiro de bando cuja beleza o perturba.

Enquanto filosofa acerca da existência ou não do diabo e sobre os mistérios que envolvem a condição da vida em bando, o narrador Riobaldo tenta, por meio das palavras, compreender o que foi sua vida e o significado de sua relação com Diadorim.

A dificuldade para o narrador se apresenta não apenas em razão da natureza imprecisa das palavras, sempre lisas e fugidias para expressar a realidade, a essência dos pensamentos ou dos sentimentos, mas também em razão de as lembranças moverem-se na memória de forma escorregadia, como se se oferecessem ambíguas ao próprio:

“O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que o situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucúia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é o dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fecho; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucúia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães...”

Acompanhando o hábil narrador, o leitor é levado a perseguir os sentidos das palavras a partir de eventos abertos a todas as “opiniães”, que podem inclusive não se terem dado, a julgar pelo escorregadio da linguagem:

“Do demo? Não gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em falso receio, desfala no nome dele – dizem só: o Que-Diga. Vote! Não... Quem muito se evita, se convive”.

Afinal, o demo há ou não não há? Existe ou desexiste?

O narrador que passa sua jornada de ex-jagunço em revista é um desconfiado, pois sua vida em bando lhe reservou acontecimentos prodigiosos, entre os quais a revelação da verdadeira natureza de Diadorim, companheiro de armas que, sendo um, era na realidade “outra”.

Além da engenhosidade do enredo, essa obra de Guimarães Rosa alcançou o espaço que ocupa na literatura brasileira graças à linguagem inventada pelo autor, linguagem que articula a um só tempo neologismos e arcaísmos, fala popular e vocabulário culto, subjetividade no relato e precisão descritiva, diálogos secos e sintaxe complexa, entre outros.

Por isso, não se deve ler esse romance com ânsia de se chegar logo ao final. Cada página é como se fosse um verdadeiro poema, tal é o esmero do autor no tratamento das palavras. Não são poucos os trechos que poderiam ser destacados e lidos com prazer como se fossem peças únicas.

Alías, fica aqui a sugestão de que os leitores selecionem trechos dessa obra impressionante para leitura oral e coletiva. Tanto no que diz respeito ao assunto, quanto no que tange à linguagem escorregadia, múltiplas interpretações surgirão seguramente, não se tenha dúvidas: pão ou pães, é questão de opiniães.

FONTE: Rosa, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19 ed. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 2001.

Fahrenheit 451, de Ray Bradbury

Trad. Cid Knipel

Fahrenheit 451 (Trad. Cid Knipel. São Paulo, Ed. Globo, 2003), de Ray Bradbury já nasceu clássico. Adaptado para o cinema por François Truffaut, trata de um futuro não muito distante, quando os livros (metáforas do saber), proibidos, serão incendiados junto com seus leitores. Nesse futuro sombrio as televisões ocuparão paredes inteiras das residências e exercerão uma ditadura midiática cujo peso, nestes ano de 2015, conhecemos muito bem.

O livro é uma contundente alegoria contra regimes autoritários, para os quais nada pode haver de mais perigoso do que certos tipos de livros – e nada mais conveniente e eficaz do que a uniformização do pensamento humano. O que está em questão, aqui, é menos a ficção científica e mais a denúncia contra a manipulação das consciências, contra a censura e contra todos os totalitarismos, particularmente os que impedem o livre exercício do pensamento.

O livro, na edição em questão, conta ao início com uma breve biografia do autor e com um esclarecedor prefácio de Manuel da Costa Pinto. Ao final, escritos pelo próprio autor, dois contundentes textos alertam o leitor para práticas nocivas de censura que, apoiadas em senso comum ou em preconceitos, resultam no mau hábito de se amputar textos literários destinados à escola.

Na história cheia de simbolismos e alegorias, um bombeiro – numa época em que eles só são úteis para pôr fogo em livros – vê a fé em sua profissão paulatinamente ruir. A amizade com uma jovem vizinha, participante de uma comunidade clandestina de leitores, acrescenta dúvidas a sua insegurança acerca da ordem incendiária vigente.

Num mundo em que a ordem totalitária impera e as televisões exercem um poder esmagador, só resta a clandestinidade e a marginalidade àqueles que não se encaixam nos padrões impostos a ferro e a fogo. Forçados a viver num mundo sem livros, os leitores mais radicais passam a se refugiar em áreas excluídas da urbe e a decorar obras inteiras, de modo a que o patrimônio intelectual seja preservado ao máximo, enquanto cada um viver.

Diz um personagem, após uma hecatombe nuclear que, durando um segundo, faz toda a cidade opressora desaparecer do mapa:

“Agora, vamos subir o rio (...). E nos concentrar num só pensamento: não somos importantes, não somos nada. Algum dia, a carga que estamos carregando [os livros que decoraram inteiros, como fossem bibliotecas vivas e ambulantes] conosco poderá ajudar alguém. Mas, mesmo quando tínhamos os livros às mãos, muito tempo atrás, não usávamos o que tirávamos deles. Continuávamos a insultar os mortos. Continuávamos a cuspir nos túmulos de todos os infelizes que morreram antes de nós. Durante a próxima semana iremos encontrar muitas pessoas solitárias, tal como no próximo mês e no próximo ano. E quando perguntarem o que estamos fazendo, poderemos dizer: estamos nos lembrando”.

Lembrar-se no caso, não da catástrofe nuclear, mas de cada palavra, cada vírgula do texto que, proibido em versão impressa, foi decorado, como o fazem os atores de teatro.


Em certo sentido, o autor deste clássico, de Crônicas Marcianas e Algo Sinistro Vem por Aí nem sabia que estava inventando, em 1953, antes mesmo da internet, uma versão muito mais sofisticada do que o e-book: o human-book, destinado a reconstituir por meio de sua memória o patrimônio humano destruído pela estandartização – catástrofe só possível em razão de uma humanidade que não resistiu a ela e a preferiu à liberdade.

Comparar o romance com o filme de François Truffaut é inevitável, até porque, embora ambos sejam primorosos, há enormes diferenças entre um e outro.

FONTE: Bardbury, Ray. Fahrenheit 451. Trad. Cid Knipel. São Paulo, Ed. Globo, 2003.