segunda-feira, 12 de abril de 2010

Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa


Nesta obra prima de João Guimarães Rosa, Riobaldo, jagunço aposentado e fazendeiro de Minas Gerais, às voltas, entre outros, com o dilema da venda da alma para o diabo, passa a limpo a vida de bandoleiro do sertão.

O enredo se desenvolve a partir das memórias desse jagunço que, em perseguição do bando de Hermógenes, assassino do chefe Joca Ramiro, estabelece uma estranha relação de amizade com Diadorim, companheiro de bando cuja beleza o perturba.

Enquanto filosofa acerca da existência ou não do diabo e sobre os mistérios que envolvem a condição da vida em bando, o narrador Riobaldo tenta, por meio das palavras, compreender o que foi sua vida e o significado de sua relação com Diadorim.

A dificuldade para o narrador se apresenta não apenas em razão da natureza imprecisa das palavras, sempre lisas e fugidias para expressar a realidade, a essência dos pensamentos ou dos sentimentos, mas também em razão de as lembranças moverem-se na memória de forma escorregadia, como se se oferecessem ambíguas ao próprio:

“O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que o situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucúia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é o dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fecho; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucúia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães...”

Acompanhando o hábil narrador, o leitor é levado a perseguir os sentidos das palavras a partir de eventos abertos a todas as “opiniães”, que podem inclusive não se terem dado, a julgar pelo escorregadio da linguagem:

“Do demo? Não gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em falso receio, desfala no nome dele – dizem só: o Que-Diga. Vote! Não... Quem muito se evita, se convive”.

Afinal, o demo há ou não não há? Existe ou desexiste?

O narrador que passa sua jornada de ex-jagunço em revista é um desconfiado, pois sua vida em bando lhe reservou acontecimentos prodigiosos, entre os quais a revelação da verdadeira natureza de Diadorim, companheiro de armas que, sendo um, era na realidade “outra”.

Além da engenhosidade do enredo, essa obra de Guimarães Rosa alcançou o espaço que ocupa na literatura brasileira graças à linguagem inventada pelo autor, linguagem que articula a um só tempo neologismos e arcaísmos, fala popular e vocabulário culto, subjetividade no relato e precisão descritiva, diálogos secos e sintaxe complexa, entre outros.

Por isso, não se deve ler esse romance com ânsia de se chegar logo ao final. Cada página é como se fosse um verdadeiro poema, tal é o esmero do autor no tratamento das palavras. Não são poucos os trechos que poderiam ser destacados e lidos com prazer como se fossem peças únicas.

Alías, fica aqui a sugestão de que os leitores selecionem trechos dessa obra impressionante para leitura oral e coletiva. Tanto no que diz respeito ao assunto, quanto no que tange à linguagem escorregadia, múltiplas interpretações surgirão seguramente, não se tenha dúvidas: pão ou pães, é questão de opiniães.

FONTE: Rosa, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19 ed. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 2001.

Fahrenheit 451, de Ray Bradbury

Trad. Cid Knipel

Fahrenheit 451 (Trad. Cid Knipel. São Paulo, Ed. Globo, 2003), de Ray Bradbury já nasceu clássico. Adaptado para o cinema por François Truffaut, trata de um futuro não muito distante, quando os livros (metáforas do saber), proibidos, serão incendiados junto com seus leitores. Nesse futuro sombrio as televisões ocuparão paredes inteiras das residências e exercerão uma ditadura midiática cujo peso, nestes ano de 2015, conhecemos muito bem.

O livro é uma contundente alegoria contra regimes autoritários, para os quais nada pode haver de mais perigoso do que certos tipos de livros – e nada mais conveniente e eficaz do que a uniformização do pensamento humano. O que está em questão, aqui, é menos a ficção científica e mais a denúncia contra a manipulação das consciências, contra a censura e contra todos os totalitarismos, particularmente os que impedem o livre exercício do pensamento.

O livro, na edição em questão, conta ao início com uma breve biografia do autor e com um esclarecedor prefácio de Manuel da Costa Pinto. Ao final, escritos pelo próprio autor, dois contundentes textos alertam o leitor para práticas nocivas de censura que, apoiadas em senso comum ou em preconceitos, resultam no mau hábito de se amputar textos literários destinados à escola.

Na história cheia de simbolismos e alegorias, um bombeiro – numa época em que eles só são úteis para pôr fogo em livros – vê a fé em sua profissão paulatinamente ruir. A amizade com uma jovem vizinha, participante de uma comunidade clandestina de leitores, acrescenta dúvidas a sua insegurança acerca da ordem incendiária vigente.

Num mundo em que a ordem totalitária impera e as televisões exercem um poder esmagador, só resta a clandestinidade e a marginalidade àqueles que não se encaixam nos padrões impostos a ferro e a fogo. Forçados a viver num mundo sem livros, os leitores mais radicais passam a se refugiar em áreas excluídas da urbe e a decorar obras inteiras, de modo a que o patrimônio intelectual seja preservado ao máximo, enquanto cada um viver.

Diz um personagem, após uma hecatombe nuclear que, durando um segundo, faz toda a cidade opressora desaparecer do mapa:

“Agora, vamos subir o rio (...). E nos concentrar num só pensamento: não somos importantes, não somos nada. Algum dia, a carga que estamos carregando [os livros que decoraram inteiros, como fossem bibliotecas vivas e ambulantes] conosco poderá ajudar alguém. Mas, mesmo quando tínhamos os livros às mãos, muito tempo atrás, não usávamos o que tirávamos deles. Continuávamos a insultar os mortos. Continuávamos a cuspir nos túmulos de todos os infelizes que morreram antes de nós. Durante a próxima semana iremos encontrar muitas pessoas solitárias, tal como no próximo mês e no próximo ano. E quando perguntarem o que estamos fazendo, poderemos dizer: estamos nos lembrando”.

Lembrar-se no caso, não da catástrofe nuclear, mas de cada palavra, cada vírgula do texto que, proibido em versão impressa, foi decorado, como o fazem os atores de teatro.


Em certo sentido, o autor deste clássico, de Crônicas Marcianas e Algo Sinistro Vem por Aí nem sabia que estava inventando, em 1953, antes mesmo da internet, uma versão muito mais sofisticada do que o e-book: o human-book, destinado a reconstituir por meio de sua memória o patrimônio humano destruído pela estandartização – catástrofe só possível em razão de uma humanidade que não resistiu a ela e a preferiu à liberdade.

Comparar o romance com o filme de François Truffaut é inevitável, até porque, embora ambos sejam primorosos, há enormes diferenças entre um e outro.

FONTE: Bardbury, Ray. Fahrenheit 451. Trad. Cid Knipel. São Paulo, Ed. Globo, 2003.

A Hora da Estrela, Clarice Lispector


A Hora da Estrela é uma das mais importantes obras de Clarice Lispector. A contundência da escrita, aqui, remove camadas superficiais da realidade para desvelar a situação de emparedamento da personagem principal frente a barreiras sociais de dificílima transposição. A temática social e a linguagem elaborada de forma requintada resultam em um texto paradigmático da literatura contemporânea brasileira.

O livro articula num só enredo Macabea, retirante alagoana que, como tantas, busca sorte e felicidade na cidade grande, Rio de janeiro, e o fictício escritor Rodrigo S. M, encarregado de narrar essa saga que não dará em leite e mel, mas em desacertos e amarguras.

Coadjuvante em sua própria história, Macabea só terá protagonismo no momento de sua morte, quando será atropelada por um automóvel importado, cujo motorista guarda semelhança com a descrição de seu “príncipe encantado”, feita pela cartomante a quem consultou.

A linguagem tendendo para dialeto regional, registra, em que pese a evidente crítica social, as esperanças ingênuas de uma personagem que será ludibriada pelo oportunismo (representado pelo namorado que a troca por outra de maiores posses); espezinhada pela insensibilidade (de uma cidade que dá as costas às suas dificuldades) e destruída pela frieza humana (representada pela máquina que a destroça ironicamente).

Adaptado para o cinema por Suzana Amaral em 1985, essa história incômoda não cessa de ver seu público crescer. A ingenuidade da rústica Macabea em oposição à falta de escrúpulos da sofisticada cidade expõe com eloquência o choque de valores não só culturais, mas também morais e humanos, aos quais a autora quis, sem dúvida aludir.

Ler e discutir o romance e compará-lo com o filme configura duplo prazer estético, uma vez que a adaptação de Suzana Amaral é de excelente realização e conta com um elenco bastante competente, no qual se contam: José Dumont, Tamara Taxman, Fernanda Montenegro, Denoy de Oliveira entre outros.

FONTE: Lispector, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro, Ed. Rocco, 1998.