domingo, 11 de abril de 2010

O Ermitão da Glória, de José de Alencar

Adaptação: Sonia Maria Sarti. Ilustração: José Antônio Rossin

Esta adaptação de O Ermitão da Glória, de José de Alencar para os quadrinhos estabelece uma excelente relação entre a obra do importante autor brasileiro e o público jovem por meio de ilustrações de qualidade irreparável, que põem em evidência e contextualizam visualmente a linguagem verbal, apropriada nos termos daquela empregada pelo autor no texto original.

Nessa história marítima, a cidade do Rio de Janeiro e sua geografia exuberante e praticamente intocada, nos inícios do século XVII, são palco das aventuras e desventuras românticas do jovem Aires de Lucena, em sua luta contra os invasores franceses e holandeses, e contra o destino, que se lhe confere sorte nas batalhas, por outro lado lhe prepara dolorosa provação, anunciada por presságios aziagos, em que comparecem a visão da Nossa Senhora da Glória e a imagem da jovem e bela de Maria da Glória, por ele salva ainda bebê, quando de um confronto com corsários na costa fluminense, e por quem se descobre irremediavelmente apaixonado.

As reviravoltas do destino vão ainda açoitar Antônio de Caminha, jovem que esteve a um segundo de desposar Maria da Glória, ante os olhos mortificados de ciúmes de Aires de Lucena. O drama é ainda maior por Maria da Glória corresponder ao amor do maduro corsário que a acolheu bebê dos braços da mãe.

Várias abordagens podem ser realizadas a partir dessa excelente adaptação realizada por Sonia Maria Sarti, que articula o texto de José de Alencar com as belas ilustrações de José Antônio Rossin, precocemente falecido quando realizava exatamente esse trabalho.

Uma discussão muito proveitosa poderia ser realizada, por exemplo, a propósito do amor de Aires por Maria da Glória, e dos desencontros que o permeiam. Aliás, os obstáculos que impedem a realização do amor são um tema recorrente no Romantismo. Os romances de Victor Hugo, por exemplo, são paradigmáticos nesse aspecto, sendo o famoso O corcunda de Notre Dame um modelo que se expandiu para todos os cantos do mundo em que o Romantismo vicejou.

Se, nesse romance, a feiúra do corcunda, em oposição a sua beleza humana, são, assim digamos, a “muralha da china” que o separa de sua amada, a belíssima cigana Esmeralda, cujo nome já é emblemático, em O Ermitão da Glória essa muralha é a diferença de idade. Outra linha interessante seria discutir os temas da fuga e da morte, eloquentemente presentes na obra.

Essas opções literárias, a que José de Alencar aderiu sinceramente, estão lastreadas por uma abundante produção filosófica e sociológica que seria conveniente mobilizar, ainda que apenas a título de contextualização. Mas o Destino, com “D” maiúsculo, não poderia ficar de fora de discussões mais cuidadosas essa obra, uma vez que ele, com suas reviravoltas, provações e antecipações premonitórias, confirmadas pelos fatos, é quase um personagem do romance.

FONTE: Sarti, Sonia Maria. O Ermitão da Glória / José de Alencar. Adap. Sonia Maria Sarti; Ilustr. José Antônio Rossin. 

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Poesia na Escola, do Jeosafá




Dia 1o. de dezembro a Editora Biruta lançará uma coleção minha sobre a presença da poesia na escola (três volumes). Vai ser na Livraria da Vila, em São Paulo, na r. Fradique Coutinho, 915, a partir da 19,30h. Haverá debate sobre os assassinatos contra a poesia na escola e sobre as possibilidades de nessa mesma escola a poesia brotar, crescer dar flores e frutos. Depois do debate, o tradicional vinho, a tradicional conversa fiada da boa e autógrafos. A seguir, um trecho do texto que introduz um dos volumes.

Vamos iniciar nossa jornada pelas terras arrasadas da poesia com uma pergunta: por que ela, ao menos no Brasil, ocupa espaços cada vez mais reduzidos nas estantes das livrarias? Essa pergunta simples e direta só pode ter uma resposta igualmente simples e direta: porque a poesia tem cada vez menos leitores, obviamente. A pergunta é descabida? Não. A resposta é descabelada? Igualmente não.

A pergunta parte de uma constatação tão óbvia que a mais ligeira passada de olhos pelas estantes de qualquer livraria do Brasil basta para confirmar. Quer ver? Então vamos lá: direto à livraria do seu bairro. Bem, é quase certo que seu bairro não tem uma única livraria sequer. Então, está bem, então direto ao centro comercial mais próximo. Porém é quase certo que uma livraria, livraria mesmo, não exista. Talvez uma papelaria que venda livros, eventualmente uma banca de jornal... Então vamos fazer o seguinte: direto ao shopping center mais próximo, ainda que ele fique longe do bairro e mesmo fora do município, ou direto a uma rodoviária ou aeroporto... Satisfeita a curiosidade?

Se não é fácil encontrar sequer uma livraria, que dizer então da situação da poesia, cuja situação, exposta pela pergunta logo acima, é tão desalentadora quanto verdadeira?

Por que tão pouca gente se interessa por ela? A coitada está num miserê tal que, se morresse, seu enterro seria exatamente igual ao daqueles pobres andarilhos que tombam exangues pelas ruas das grandes cidades ou pelas beiradas das rodovias deste país imenso: uma viatura, sem maiores alardes, para não chamar a atenção dos transeuntes, apanharia o corpo serenado e mal coberto pelos andrajos úmidos da noite, e o levaria para o lugar nenhum. Ninguém para olhar a cena. Ninguém para ficar com os olhos úmidos e um ponto de exclamação, ou de interrogação, espetado no alto da cabeça, a observar o carro sumir na distância, com sua carga frágil, na poeira ou no mormaço deformante do asfalto.

Exagero? Quantos livros de poemas você tem em sua biblioteca? Aliás, você tem uma biblioteca em sua casa? Ao menos umas poucas estantes de livros?

Sejam quais forem as respostas a essas inquietantes perguntas, a pertinência delas é já um problemão não acha? E essa pertinência se deve a outra constatação óbvia: as pessoas, no Brasil, cultivam exiguamente o hábito da leitura, do que decorre o pouco interesse em ajeitar os livros no espaço muitas vezes apertado da residência. Daí, esses incômodos objetos acabam sendo deslocados de um canto a outro até encontrarem uma caixa de papelão perfeita, no interior da qual serão depositados e esquecidos até criarem bolor e não prestarem para mais nada.

Então é melhor deixar as coisas do jeito que estão, senão podem piorar, não é mesmo? Não, não é. Assim como as histórias não morrem nos livros que mofaram por descuido, as pessoas podem ser mobilizadas para que atribuam valor ao que muitas vezes, por falta de alerta, de insistência ou de jeito, ficou latente, mas não extinto: o prazer de ler.

Então vamos recapitular: livros de poesia faltam nas livrarias porque faltam leitores para elas. Esses leitores são os mesmos que reservam pouco espaço em suas casas, e em suas vidas, para a leitura. Nesse caso, a carência de leitores de poesia só pode ser entendida como uma, no âmbito de um conjunto de carências ainda mais amplas.

Porém, o assunto aqui não é o das carências mais amplas. O assunto aqui é o da carência talvez mais aguda da literatura. Há a penúria do teatro... Mas a penúria do teatro não é nada perto da penúria da poesia. Não é preciso nem estabelecer concorrência entre os dois para saber quem é mais pobre, mais sem posses, mais jogado à beira do caminho. Então, não vamos perder tempo com comparações equívocas entres irmãos deserdados, um a dormir sob pontes e outro a dormir sob marquises de prédios arruinados.

O conto e a crônica, quem não sabe que as editoras publicam muitíssimo mais do que a poesia? O romance então... esse é barão, perto dos outros, muito embora seja assassinado todos os dias nas escolas do país por "leituras" obrigatórias que, a pretexto de educar por meio de provas atávicas e de trabalhos desprovidos de bom senso, só não causam mais danos ao prazer de ler porque simplesmente o extinguem no nascedouro – o coração do estudante.

Mas uma coisa tem de se admitir: não há uma única pessoa no país que não fique com pena da situação da coitada poesia.

A situação da poesia é mesmo de comover um coração de pedra, de congelar o sangue nas veias, de arrasar nervos de aço e outras metáforas e hipérboles descabeladas mais.

E se Júlio Verne achou ter feito uma alegoria definitiva da situação da poesia, em seu Paris no Século XX, ao enviar seu personagem-poeta ao final do romance a um passeio desolador no cemitério, é porque sequer imaginou os efeitos que poderia ter extraído do romance caso situasse suas lúgubres previsões no Brasil de inícios do século XXI.

Com o que disse até aqui com a necessária dose de exagero de linguagem, espero ter convencido essa decisiva pessoa chamada "você" da necessidade de irmos todos para o front em defesa das barricadas da poesia. Então, como bárbaros, como um exército de brancaleones, vamos tomar de assalto as estantes de livrarias e bibliotecas, empurrando para fora de nossas fronteiras os livros de outros gêneros. Não se pode ter piedade neste momento.

Livros de auto-ajuda, vocês têm suas razões ou desrazões de ser, mas, com o perdão do mau jeito, cheguem para lá; livros de culinária, vocês são deliciosos, mas as hordas da poesia vão invadir estas prateleiras: se mandem para o andar debaixo ou de cima; obras de economia-política, de física nuclear, de vida e obra de grandes artistas do cinema, vocês são totalmente demais, porém: batam em retirada, que os volumes de Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Cecília Meireles, Florbela Espanca, Haroldo de Campos, Leminski e novos poetas, entre outros, enlouqueceram e, como vikings, partem em desabalada correria para retomar o espaço perdido.

Como já disseram outros, noutros termos, a propósito de outras causas consideradas justas, queimando atrás de si as pontes de retirada, lancemos nosso grito de guerra: Avante, companheiros:

 

Hasta la victoria siempre!















segunda-feira, 30 de março de 2009

Leitura literária na escola


No mundo atual, os parâmetros da globalização têm a pretensão de moldar as normas do viver e do conviver das sociedades, com propósito de uma “interação mundial” bastante particular e cujos efeitos vamos conhecendo mais ampla e profundamente nestes anos 2000. Parte essencial dessa mundialização, as novas tecnologias da comunicação, propiciadoras de acesso imediato às informações e ao entretenimento numa abundância nunca suspeitada, exercem papel predominante nessa instantânea interação, ao mesmo tempo fascinante e desafiadora.

Todavia, essa interação tem sido feita no mais das vezes em detrimento e em substituição de experiências essenciais ao espírito humano em âmbitos locais, comunitários, nacionais e mesmo globais, do que tem resultado, para estes lados do Ocidente, uma padronização cultural empobrecedora, orientada para o consumismo desenfreado, alienado e anulador de identidades legítimas, de diversidades sociais, culturais e simbólicas e, no limite, de direitos fundamentais da cidadania.


No caso brasileiro em específico, é notória a insuficiência de situações e espaços que propiciem saber e cultura, entendidos não como artigos passíveis de descarte, mas como elementos inerentes à instituição da própria natureza humana, nos termos da Declaração Universal dos Direitos Humano:

Artigo 27:
I) Todo o homem tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de fruir de seus benefícios.
II) Todo o homem tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.

Todavia, não há razão de ser para se temer ou aceitar que práticas sociais e simbólicas sejam abolidas pelo surgimento de novas tecnologias, embora haja quem tema e igualmente quem defenda esses pontos de vista.

Em Confissões de Minas (Andrade, Carlos Drummond de. Confissões de Minas. Col. Joaquim Nabuco. Dir. Álvaro Lins. 1 ed. Rio de Janeiro. Ed. América, 1944.) um Drummond ainda moço, algo irônico e ressentido, acusa o surgimento do cinema como razão do desaparecimento de grupos amadores de teatro de Itabira, não sem antes sugerir seu amor de fã por Greta Garbo – em seu último livro, o poeta retorna a esse amor sem qualquer complexo de culpa.

Mas o cinema não extinguiu o teatro e se este último enfrenta crises permanentes no Brasil, tanto quanto, a bem da verdade, também o primeiro, isso tem mais a ver com a dinâmica do próprio setor e suas relações com a sociedade e com o Estado do que com qualquer suposta concorrência predatória entre artes, sistemas de produção simbólica ou mídias.

O mesmo se disse do cinema em relação à TV. Porém, passado um período de acomodação entre um e outro, a própria TV se abasteceu e consolidou a partir da veiculação de conteúdos gerados pela indústria cinematográfica. O desacerto desses setores deve-se, assim, não a uma concorrência de vida e morte entre ambos, mas a injunções políticas e econômicas cujos desdobramentos preterem, infelizmente, meios culturais e de produção de saber de extrema relevância.

Ao lado disso, é necessário constatar que as novas tecnologias trouxeram fortes elementos desestabilizadores dos diversos campos de produção simbólica constituídos ao logo de séculos, e não poucos entenderam que esses elementos desestabilizadores teriam potenciais apocalípticos, entre os quais, vale citar alguns:
  • A produção escrita culta, pela proliferação de "vícios" de linguagem aceitos e estimulados pela internet, veria seu prestígio social decrescer acentuadamente;
  • A leitura em geral e a leitura literária em particular, enquanto atividades de apropriação do mundo por meio do texto verbal tornar-se-iam acessórias em face da eficácia e do impacto das novas formas e gêneros disponíveis pela e na WEB;
  • A linguagem iconográfica da internet deslocaria significativamente a literatura de seu eixo verbal-escrito para o icônico;
  • Os meios digitais extinguiriam o livro impresso;
  • A sintaxe simultânea da tela, instituindo uma nova ordem leitora, instauraria a produção em massa de leitores para os quais a linearidade da escrita tradicional, e seus gêneros, seria um arcaísmo de difícil aceitação.
A lista de restrições é tão extensa que não compensaria aqui acrescê-la, ainda que mantida a ordem alfabética.

Fato significativo, porém, é que as novas tecnologias, passados os primeiros anos de impacto e euforia novidadeira, não apenas passaram a exigir uma significativa elevação das habilidades leitoras da sociedade em geral como também têm impulsionado, com ainda maior vigor, o letramento e o mergulho em práticas sociais e simbólicas relacionadas à língua materna e à literatura, seja no que tange à produção de gêneros tradicionais ligados à oralidade, seja no que se refere à produção escrita em seus múltiplos gêneros, tipologias e inusitadas modalizações impostas pela nova realidade.

Inversamente do que se imaginou na idade da pedra das novas tecnologias, se é que já nos encontramos em outra era, o horizonte aberto pela nova realidade não só impôs a recuperação de práticas relacionadas à leitura, à literatura e à escrita aparentemente em vias de extinção como também agora as estimula, revigora e incorpora enquanto conteúdos para pô-las em circulação em uma escala mundial nunca antes imaginada sequer pelo espírito mais otimista.

Assim, o pretenso definhamento da produção e reprodução da literatura e de outros gêneros apoiados no idioma e na leitura, como o teatro, não só se nos apresenta hoje como verdadeira paranóia niilista, como se vai reconhecendo ser a restrição dessas práticas a espaços deslegitimados subproduto não de avanços tecnológicos, mas de insuficiência ou ausência de respostas do próprio campo simbólico e da sociedade a uma situação concreta, que exige novos posicionamentos adequados à realidade.
As novas tecnologias e seu desenvolvimento exponencial não podem e não têm de ser encarados como as dez pragas do Egito. Muito pelo contrário, devem ensejar o impulso vivificante de busca e construção de ações criativas e vigorosas que reorganizem o campo simbólico, no interior do qual a formação de público leitor de literatura não é elemento secundário, de modo a acolher e extrair os melhores proveitos da nova realidade.

Por sua natureza intrinsecamente formadora, do ponto de vista intelectual, estétoco, moral e ético, a leitura literária, bem como as práticas que a instituem enquanto parte do sistema de produção simbólica, não tem substituto. O que ela oferece, apenas ela pode oferecer, de modo que estar privado, ou participar insatisfatoriamente dela – num mundo em que a formação intelectual é critério e linha de fronteira para inclusão ou exclusão social – é estar privado de uma parte essencial da cidadania e da própria humanidade em sentido mais amplo, profundo e contemporâneo.

Não existir para o patrimônio constituído, mobilizado e acessado pela leitura literária é confinar-se a situações e espaços simbólicos tendentes à desumanização, ao vilipêndio e ao aviltamento da cidadania; no limite, corresponde à asfixia das potencialidades vocacionais, das aspirações de completude e dos sonhos de realização individual dos quais o homem não pode abrir mão sem condenar-se, mutatis mutandis, à morte espiritual agônica.

Pelo inverso, existir com desenvoltura para esse patrimônio resulta não apenas em imbuir-se de fluxos constantes de humanidade como em pôr-se a circular vívida e participativamente por uma humanidade ampla no tempo, larga no espaço, rica na diversidade, infinitamente abundante na produção e disponível tão integral e simultaneamente quanto possível hodiernamente.

Nas novas tecnologias de informação a leitura literária encontra não uma rivalidade insolúvel, mas uma parceria comprovadamente fecunda, tanto quanto se sabe extremamente fecunda a tradicional fraternidade entre literatura e teatro.

O ponto de vista aqui adotado considera mistificação a atribuição de culpa pela crise do ensino de literatura nas escolas às mídias contemporâneas. A satanização da televisão e das novas tecnologias de informação se configura reação simplória e obscurantista a um problema que realmente necessita ser enfrentado e para o qual em nada contribui a atitude escapista de se depositar no outro a razão das próprias mazelas.

Se jovens e mais jovens perdem o interesse pela literatura, ou antes, se sequer tiveram esse interesse despertado em qualquer momento de sua trajetória escolar, seguramente isso não se deve à boa ou má programação da tevê ou ao impacto dos computadores nas sinapses virgens, mas à falta de respostas ou a insuficientes respostas da escola, tomada em seu conjunto, a uma questão que é fundamentalmente sua.

Não cabe à televisão nem à internet a responsabilidade de desenvolver habilidades relacionadas à leitura literária: cabe à escola. Noutras palavras, o problema não é do vizinho: é de nós mesmos, professores e educadores, que necessitamos sonhar e inventar caminhos, articulando o ensino da leitura literária com as substanciais contribuições das artes, das novas tecnologias e das diversas áreas do saber.

O texto escrito é, sem sombra de dúvidas, um dos bens de maior circulação e assume inequívoco valor de troca no mundo de hoje. Da sua criação individual ou coletiva, passando por sua produção industrial, à sua comercialização, governada por vasto emaranhado jurídico, que abrange das constituições e leis ordinárias de cada país a acordos da OMC (Organização Mundial do Comércio), ele, o texto, se constitui em produto comercial de grande valor econômico que movimenta ramos inteiros da economia mundial. E não há sombra de dúvidas que o principal filão desse comércio é o relativo à literatura, haja vista as monumentais, concorridas e reconhecidas feiras internacionais realizadas em todos os continentes, a mobilizar fortunas e públicos cada vez maiores.

Porém, antes de escoar pelo sistema produtivo na forma de mercadoria, o texto é produto intelectual da subjetividade humana, é expressão de cultura, particularidade que lhe confere natureza social imensurável, que age na construção de identidades e diversidades responsáveis pela coesão de grupos, comunidades locais, regiões, nações, blocos internacionais e articulações globais tanto mais intensificadas pela WEB.

Do ponto de vista simbólico, a circulação do texto e das práticas que o instituem (a leitura e a escrita) é muito mais ampla e tem um impacto muito mais duradouro e profundo do que os frios números do mercado podem sugerir. Um livro, uma vez adquirido e amorosamente preservado, tem uma vida útil centenária, e se oferecerá como jazida disponível a gerações e gerações de indivíduos que a ele tenham acesso – e se esse acesso for ainda incrementado por versão cibernética e por meios de consulta virtual, a vida útil desse bem se torna incalculável, quer em extensão no tempo, quer em profundidade de penetração social. E quem há de negar que o texto, o livro literário tem lugar de destaque nessa lógica?

Muito se tem falado, no caso do Brasil, que se lê pouco e mal, e, no mais das vezes, sob pressão da escola. São frequentes as comparações com outros países, sendo a rivalidade com a Argentina, a título quase humorístico, para além do futebol, também nesse caso acionada, sempre com certo ressentimento de nacionalismo ingênuo: Buenos Aires teria mais livrarias do que todo o Brasil no conjunto.

As comparações são válidas, pois permitem que nos situemos em face do mundo. Ademais, consultar os resultados dos exames nacionais ou do PISA não há de resultar em ofensa a ninguém. Todavia nenhuma melhoria, em se tratando de constituição do público leitor literário, será efetiva se apoiada em simples reprodução de modelos elaborados para outras realidades, épocas e culturas, ou na desmobilização da escola e na redução de seu poder de pressão, que, a meu ver, deve, isto sim, aumentar.

Há, relativamente à população, poucas livrarias nas grandes cidades brasileiras, mas praticamente toda banca de jornal de nossas cidades grandes e médias, que não são poucas, vende, além de periódicos, livros e variados outros tipos de publicações que incorporam o texto literário.

Podemos concordar que seja insuficiente, e efetivamente o é, mas estamos longe da estaca zero: o Brasil detém hoje um significativo parque industrial voltado para os produtos da leitura em geral e literária em particular, e o patrimônio cultural brasileiro depositado em páginas impressas ou em websites está longe de ser desprezível.

Todavia, há que se reconhecer e enfrentar o problema da necessidade de reforço do público leitor de literatura, que depende de um impulsionamento geral das atividades de leitura cujo pólo dinâmico, sem qualquer sombra de dúvida, é a escola, das séries iniciais aos níveis superiores da educação.
Por óbvio, cabe à escola papel de destaque na alfabetização e na educação básica de nossas crianças e jovens. Porém não é ocioso perguntarmo-nos para que se realiza essa alfabetização e essa escolarização senão para auxiliar os indivíduos a se constituírem em leitores livres ao longo de seu período de escolarização e para além dele.

Elevar e aprofundar o letramento da população por meio da escola, na idade mais adequada para que isso ocorra, permitindo a ela desenvolver consistentemente competências e habilidades leitoras essenciais para os dias de hoje, em que não ficam em segundo plano as habilidades de leitura literária, é não só franquear a ela o acesso ao patrimônio imaterial do Brasil e do mundo como ainda, e com maior ênfase, incluí-la de forma integral, bem para além dos limites do mercado consumidor de obras escritas.

Por assim entender é que o ponto de vista aqui adotado volta-se para a constituição de habilidades de leitura literárias já nos primeiros anos de escolarização, especificamente o Ciclo 1 do Ensino Fundamental.
Por muitas razões, a leitura em geral e a literária em particular, como atividades inerentes ao processo de ensino-aprendizagem em na sala de aula, foram sendo preteridas no cotidiano escolar. Em nome do cumprimento de um programa que as deixou de fora, quer como conteúdo, quer como objetivo de aprendizagem, o professor foi sendo premido a solicitar aos alunos leituras domiciliares e a dar como entendido por eles o que ele, professor, não tinha sequer condições de saber com rigor se fora lido.

Sob o argumento de que a turma numerosa e o tempo exíguo impedem a leitura, literária ou não, em sala de aula, esta foi sendo empurrada para a margem do processo de ensino-aprendizagem até tombar na indigência de uma área cinzenta do saber, território de ninguém, cuja responsabilidade de cuidar, por essa mesma razão, ninguém assume.
Como fosse produto com data de validade prefixada, cuja importância decrescesse na proporção do avanço do aluno rumo às séries finais da Educação Básica, a leitura, principalmente a literária, é ainda hoje preterida paulatina e crescentemente das séries iniciais do Ensino Fundamental às demais do Ensino Médio.
Os péssimos resultados dos nossos jovens e crianças em exames estaduais, nacionais e internacionais denunciam a situação de verdadeira calamidade a que as atividades de leitura foram sendo relegadas ao longo dos anos. E dessa situação não se sai se a leitura não passar a ocupar a cena central da sala de aula e se o professor, por sua própria iniciativa e apoiado pelo sistema, não assumir o real protagonismo das ações comprometidas com resultados satisfatórios e com a elevação do desempenho dos alunos nesse quesito tão decisivo da formação escolar e humana.

O foco no Ciclo 1 do Ensino Fundamental reforça no professor o papel de emulador das habilidades de leitura literária do aluno, desenvolvidas a partir de leituras concretas, orais, silenciosas, individuais, coletivas, formais, dramáticas, analíticas ou interpretativas, para controle democrático de desempenho ou para a exposição de idéias, para estudo do texto e para o gozo, para aprender e para divertir, para acumular conhecimentos e para compartilhar experiências propiciadas pelo contato com temas e formas.

Ler, ler, ler, na sala de aula e em casa, experimentando todas as contribuições, todas as técnicas, todas as estratégias, todos os modelos criados para o mergulho nos oceanos simbólicos escondidos nas letras. Ler, mobilizando práticas de sucesso já consagrado, como aquelas relacionadas ao teatro, por exemplo, e recursos disponibilizados pelas novas tecnologias, tais como o audiovisual digital, as ferramentas da internet entre outros, convidando a nova geração de brasileiros hoje na escola, toda ela nascida já na era digital, a compartilhar a cultura das letras, que nasceu nas paredes das cavernas, sim, mas que, delas ao papiro e ao pergaminho, e destes à folha de papel, num salto, já voa transmutada pelas páginas da World Wide Web com seus La Fontaine, Perrault, Lígia Bojunga, Moteiro Lobato, Mil e uma Noites, entre outros, como uma imensa cegonha cibernética.

Porém, o desenvolvimento de habilidades de leitura literária no Ciclo 1 do Ensino Fundamental não é alheio a questões extremamente polêmicas, quer no campo da pedagogia, quer no campo da própria literatura.
A meu ver, certas visões limitadas, vigentes e dominantes hoje no ensino oficial, mercê de uma inércia mórbida, em que pesem esforços governamentais, redundam na seleção de textos absolutamente inócuos do ponto de vista da relação ensino-aprendizagem, fúteis, do ponto de vista da formação humana, e paupérrimos, do ponto de vista do trabalho de linguagem.

Como é que se vão desenvolver habilidades de leitura literária a partir de textos construídos a partir de clichês, obviedades, e lógicas calcadas no mais estéril senso comum? Com é que se vai desenvolver o gosto literário, eminentemente estético, a partir de pastiches ou de facilitações reducionistas de obras clássicas já voltadas para uma faixa etária específica? Como é que se vai desenvolver a acuidade linguística e de linguagem a partir de textos sem complexidades, sem desafios, sem nada a oferecer a não ser o arremedo em lugar do verdadeiro, o simulacro em lugar do original?

A meu ver, é preciso assumir uma postura de resistência em relação à pressão do mercado editorial, que em muitos casos quer vender livros com cada vez menos textos, mais imagens e mais banalidades; e em relação à força da inércia comodista, imperante no sistema educacional, que prefere ceder às facilidades e desviar o foco das críticas às suas insuficiências para a televisão e para novas tecnologias, bodes expiatórios a pagarem por seus pecados e pelos de outros.

Por óbvio, nessa faixa do Ensino Fundamental residem em potencial os futuros leitores de literatura, que não o serão caso não tenham habilidades específicas de leitura desenvolvidas no contato com o patrimônio literário reconhecidamente relevante e socialmente legitimado pelas instituições criadas por nós para esse fim, que se têm seus limites, devem ainda assim ser observadas, uma vez que não cabe ao professor ou ao mercado editorial decidir o que é literatura.

A experiência de leitura e de trabalho de literatura com crianças de periferia, em ambiente escolar ou comunitário, me demonstraram que tanto as dificuldades de linguagem dos textos mais sofisticados, quanto a distância das experiências retratadas neles são encaradas com naturalidade pelas crianças, que não necessitam mais do que a solidariedade e a paciência do adulto ou do professor para penetrar o mundo por vezes labiríntico da literatura.

Dessa minha experiência, nascida de uma intuição – a de que textos esteticamente pobres deseducam – cresceu a convicção aqui apresentada: a de que, para um sério trabalho de desenvolvimento de habilidades básicas de leitura literária, os textos verdadeiramente literários são imprescindíveis, e já desde os tenros anos da vida humana, antes mesmo do letramento, da aquisição da fala e quiçá da viagem para o exterior do útero materno.

O ensino escolar de literatura é frequentemente justificado por razões bastante fortes, tais como a necessidade de desenvolvimento de habilidades:
  • relacionadas ao domínio do idioma em nível mais avançado, portanto linguísticas;
  • de desenvolvimento do espírito, portanto intelectuais;
  • de conformação do próprio caráter, portanto morais;
  • relacionadas à sensibilidade artística, portanto afetivas e expressivas.
Historicamente, tem-se a predominância da primeira sobre as demais razões elencadas anteriormente, em razão do que as habilidades estritamente literárias são alocadas nas séries finais do Ensino Básico, quando se espera que, pelo estágio de domínio do idioma, o estudante esteja em condições de abordar com propriedade os fenômenos complexos da língua envolvidos no texto artístico, a partir do qual, compreendido em sua dimensão idiomática, serão realizadas aquisições intelectuais, morais e afetivas.

Não por acaso listei as razões em destaque na ordem em que o fiz, mas por ser essa a escala de importância tradicionalmente atribuída à presença do texto literário na escola: em primeiríssimo lugar, a literatura é pretexto para ensino do português culto, principalmente escrito; em segundo lugar, o texto literário serve para ensinar a pensar, a raciocinar, a tecer hipóteses; num honroso terceiro lugar, na condição de apêndice do processo de ensino-aprendizagem, o texto literário serve para a realização de reflexões morais que, por essa mesma razão, não serão jamais avaliadas, simplesmente porque não podem ser alvo de mensuração no âmbito escolar; e em último lugar, o texto literário na escola presta-se a seu próprio fim: o de desenvolver e mobilizar habilidades de leitura literária. Isto no Ensino Médio.

Todos sabemos que o domínio um pouco mais seguro de um campo do saber é resultado de acúmulos sucessivos por anos de aquisições, acomodações, crises, retomadas e saltos qualitativos. Como então pretender que, sem um longo e sistemático contato com o texto literário, um estudante do Ensino Médio apresente em face dele uma atitude acolhedora, produtiva, criativa e interessada? Como pretender que o estudante, habituado à leitura literária como pretexto, acolha sem rejeição o texto o literário como conteúdo do saber?

Considero que as dificuldades do ensino-aprendizagem de literatura comumente enfrentadas por professores e estudantes do Ensino Médio residem não além, mas aquém de suas fronteiras: no Ensino Fundamental.
E considero também que se práticas constituintes de habilidades de leitura literária não forem instituídas já no Ciclo I do Ensino Fundamental, correm o risco, e a realidade o demonstra, de não serem instituídas nunca.
Investigar sobre pontos de insuficiência ou de estrangulamento das relações de ensino-aprendizagem de leitura de textos literários é, por isso, essencial nessa fase da Educação Básica.

Esses pontos de insuficiência e estrangulamento, pelos resultados apresentados por exames como o PISA, o SAEB, Provinha Brasil ou outros, espalham-se por toda a cadeia do Ensino Básico brasileiro. E se o pólo de comparação for o PISA, o desempenho dos alunos de escolas privadas do Brasil não se distancia substancialmente daqueles das escolas públicas.

Por essa razão considero, tenho a firme convicção de que a leitura literária só alcançará sucesso no Ensino Médio caso as competências e habilidades básicas que as mobilizam e desenvolvem estejam fortemente presentes já no currículo e no cotidiano do Ciclo I do Ensino Fundamental, verdadeiro solo de todas as conquistas futuras.