Como o sonho, a poesia — ambos narrativas simbólicas —
condensa, sobrepõe, justapõe, dissocia, inverte, aumenta, reduz, desfoca,
deforma e assim sucessivamente. A verdade da poesia é também irmã da verdade do
sonho. Por isso é um tanto ingênua, em se tratando dos dois, a pergunta
"Aconteceu mesmo?"
Tudo que acontece no sonho e na poesia é verdade: verdade do
sonho e verdade da poesia. Porém, muitos hão de concordar, embora verdades
ambíguas, é mais fácil e prudente crer nessas duas do que naquelas que dizem
pertencer à vida real, seja lá o que isso for.
Por isso, penetradas as lógicas oníricas e poéticas, é
praticamente impossível escapar-se de suas narrativas, por mais antinarrativas
que se afigurem, por mais irracionais que se apresentem e por mais contrárias à
realidade que se possa aceitar.
No entanto, se num sonho somos tragados involuntariamente
por sua narrativa, instaurada pelo sono e por mecanismos psíquicos
involuntários longe ainda de serem desvendados, na poesia — e na literatura em
geral —, não. Vamos ao poema voluntariamente — ainda que, às vezes,
instados por imposições sociais, como ocorre na vida escolar e acadêmica; por
motivação intelectual, quando a poesia se oferece como apoio à reflexão; ou por
impulsos emocionais, ocasião em que a poesia opera o milagre do prazer íntimo e
estético.
Para que sejamos tragados pela narrativa poética, precisamos
antes tragá-la por mecanismos de leitura — uns, muito conhecidos de
todos nós, outros, nem tanto. Do idioma ao vocabulário; da sintaxe às regras de
pontuação e acentuação, empregadas ou subvertidas; da organização das palavras
na página aos jogos de linguagem, entre muitos outros aspectos, tudo na narrativa
poética ou literária é a um só tempo objeto, meio de leitura e elemento de
resistência a ela mesma.
À medida que são vencidos os elementos de resistência à
cognição — verdadeiros enigmas — , integramo-nos à própria
narrativa: é quando, ao internalizá-la, como que automaticamente, nos sentimos
contraditoriamente sugados para o interior dela. É quando os riscos e ir parar
inadvertidamente na última estação do metrô aumentam sobremaneira, por que se
entra numa espécie de transe. Assim, a partir do sonho, que é uma espécie de
transe, atingimos as narrativas simbólicas; ao passo que na literatura ocorre o
inverso: a partir da narrativa poética ou literária é que se chega a um estado
de transe, em que o corpo físico está em um lugar, mas a psique está mergulhada
no mundo onírico proporcionado pela narrativa poética.
Quando os elementos linguísticos de resistência do texto
literário são plenamente superados, assimilados e incorporados automaticamente
no ato de ler, os encadeamentos e associações deflagram-se na psique do leitor,
também automaticamente, como nos sonhos, em que as imagens se sucedem sem o
controle do sonhador, dotadas de vida própria.
Aqui, uma particularidade interessante: como no sonho, do
qual podemos nos despertar ou sermos despertados, mas, via de regra sobre cujas
cascatas de imagens que nele se desencadeiam não temos o menor controle, a
fruição da leitura pode ser interrompida por uma intervenção
externa — um ruído, uma parada brusca do vagão do trem, etc. —,
mas, uma vez deflagrada, escapam ao nosso controle as associações que ela faz
aflorar em nosso espírito, em nossas emoções, em nossa psique.
Estamos, pois, em face de dois processos
diversos — melhor seria dizer inversos — que alcançam os
mesmos efeitos, senão resultados. No sonho, é necessário estar-se dormindo,
portanto inconsciente, para se estar completamente entregue à narrativa onírica.
Na poesia e na literatura em geral, é necessária a plenitude da consciência, da
concentração cognitiva para, internalizada plenamente a narrativa, alcançar-se
a plenitude da fruição — caso em que, então, nos dissociamos de
nosso corpo e penetramos os mesmos domínios do inconsciente. Quando isso
ocorre, a cerca que separa a literatura do sonho está no chão.
Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).