terça-feira, 26 de dezembro de 2023

CRÔNICAS CARIOCAS — O espírito natalino

Era noite de sábado e principalmente antevéspera do Natal. Quem tinha comemorar o título de campeão, já o tinha feito. Quem tinha que troçar do Fluminense pelo sacode que levou do City, também.  Os presentes já tinham sido comprados, o mercado para a ceia já tinha sido feito por quem de direito. Por isso, o entorno do largo do Machado estava distensionado, relaxado, divertido, mas sem a eletricidade dos dias anteriores.

Para não a levar comigo, contei à minha irmã uma história difícil de acreditar, mesmo levando-se em conta o espírito natalino, e desci para tomar uma das últimas cervejas do ano — ainda que de 23 a 31 de dezembro sejam robustos oito dias, que só perdem enquanto maratona etílica para a semana do Carnaval, que dura o mês inteiro.

Por preguiça, escolhi uma mesa vazia do bar em frente ao condomínio em que deixara minha irmã em santa paz. Normalmente, o ambiente noturno ali é de quem quer assistir a um jogo de futebol em uma das três telas que eles disponibilizam. Como todos os campeonatos de interesse nacional tinham terminado, nas três telas passavam reprises de jogos da temporada encerrada.

Porém, só eu ali dava pelota para as TVs, ignoradas solenemente pelos demais, que falavam alto, cantavam, faziam batuque nas mesas, dançavam, já se despedindo sem remorsos do ano de 2023. A faixa etária ali também estava bem acima da que frequentou as noites do bar durante o ano e, observando bem, havia muito mais mulheres do que homens, todas animadas, tirando fotos em grupo, ou fingindo atender telefone para se encostar em minha mesa, que ficava a um canto solitário e esquivo, de frente para a tela de TV mais modesta.

Caso curioso, os homens, que na quinzena anterior gritavam por seus times ou contra os adversários, agora estavam bem comportados, mas as senhoras... esquindô, esquindô! Só alegria.

Alegria demais, pensei com meu faro de outros natais e carnavais para encrencas. E concluí que era hora de ir embora, pois excesso de álcool em festas começa na euforia, passa pela perda de senso e acaba na confusão, nas melhor das hipóteses. Tomei rápido minha cerveja, pedi a conta, paguei e me afastei aliviado, sob o olhar fulminante da dona, que, despeitada, parou de fingir conversê ao celular.

No bar da outra esquina, outro ambiente. Uma família, alguns jovens universitários, outro solitário como eu. "Bom — arrisquei —, aquela cerveja não valeu. Essa parece que vai dar pé". E deu. Nada como tomar uma cerveja em uma mesa na calçada, numa noite morna e relaxante, pensando em coisas amenas, vendo pessoas passarem, imagens aleatórias na tela da TV, casais passando, moças empurrando carrinhos de bebê...

Pedi a conta satisfeito, paguei e voltei cem metros ao condomínio, à porta do qual estacionara uma viatura de polícia, com o giroflex azul acionado. A rua estava calma, então imaginei alguma operação de rotina de fim de ano.

Porém, não: à porta da garagem, já do lado de dentro, um tumulto em forma de círculo se avolumara. Ao centro dele, uma daquelas alegres senhoras do bar, de que eu precavido me esquivara, rolava pelo chão, como que possuída. Estava só de calcinha e sutiã. O policial negro, enorme, atlético, de braços cruzados e fuzil empunhado para baixo, tentava fazer cara de bravo, mas, na verdade, ria de lacrimejar, com os dentes trincados e as bochechas contraídas.

Quando eu passava pela portaria, o  segurança do condomínio, em trajes impecáveis, cometeu a imprudência de se dirigir à senhora muito flácida, muito branca, muito gritona e muito possuída pelo álcool: "Se a senhora não vestir a roupa, não vai subir". Foi aí que  ela se atirou ao chão, rolou, sacudiu a cabeleira com gosto, imprecou, jogou o sutiã pra longe e... antes que ela tirasse a calcinha, eu saí do círculo de moradores e curiosos para tomar o elevador.

Contei essa história, mais duvidosa do que a anterior, à minha irmã, que nem imaginava o que se passava três andares abaixo. Disse-lhe: "Se eles a tivessem deixado subir, ela já estaria na cama no sétimo sono. Depois, era só informar à administração, que aplicaria uma bela multa à encrenqueira. E ponto final."

Nesse ponto minha irmã me interrompeu: "Que cor era o sutiã?". Impactado com a pergunta, respondi: "Preto, mas bem desbotado, com bojos colossais". Minha irmã piscou: "E a calcinha?". Cocei o cocuruto e respondi constrangido: "De oncinha, mas mais desbotada do que o sutiã, e bem deformada, se é que tinha elástico".

Minha irmã virou-se e dirigiu-se à cozinha, engasgando der rir. De lá gritou: "Fecho com o segurança, melhor chamar a polícia e deixar prender, mesmo. Até pra armar barraco é preciso cuidar da roupa de baixo".

Minha irmã ainda não estava tomada pelo espírito natalino.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

CRÔNICAS CARIOCAS — As metas ou: ninguém tasca

Uma amiga todo final de ano se atira do alto do trapézio sem rede de dezembro a um exame minucioso de seu planejamento anual. Como é sistemática, traz tudo anotado em cadernos e em seu computador pessoal. Diz ela que após esse balanço, comemora as metas alcançadas, faz um sério exame de consciência sobre os insucessos e traça as metas para o ano seguinte.

Admiro sua disciplina, mas... passo, ainda mais quando sou incapaz de chegar sequer próximo de algo semelhante ao que ela faz. Não que seja avesso à prática, não, também faço meus planos e traço minhas metas, porém deixo tudo na cabeça, só muito eventualmente pondo no papel, no computador, no aplicativo de notas do celular ou ainda, no mais das vezes, em post-its grudados na porta da geladeira, algo que a minha memória possa trair — e, mesmo nesse caso, de tanto olhar as anotações, acabo, uma hora ou outra, decorando-as.

É lógico que o método dela é mais científico e preciso do que o meu, mas quem disse que eu gostaria de, ao apagar das luzes do ano, voltar minha atenção para o leite derramado? Ah, não! É sofrer mais uma vez pelo que teve má solução lá atrás e cujas lições, seguramente, eu já extraí, pois nunca deixo de olhar atentamente, no momento mesmo do tropicão, para a pedra na qual me estropiei, após o que sigo em frente mancando até a dor passar, porque a lição, essa já restou aprendida in loco e in tempore. Assim, ao final do ano, voltar a esse passo em falso seria ocioso e um tanto mórbido.

Minha amiga que me desculpe, a estimo, mas não a copio.

Tracei há alguns anos metas simples de serem lembradas por anos a fio: ficar velho, barbudo, musculoso e endinheirado.

Tenho me esforçado por atingi-las, e quem me conhece sabe o quanto sou espartano —  CDF, se preferirem — quando decido algo. Querem ver? Das quatro metas que estabeleci, duas já alcancei: estou barbudo e  velho. E como dizia Aracy de Almeida: ninguém tasca.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).


CRÔNICAS CARIOCAS — Tudo está bem quando acaba bem

Meu amigo, orgulho da vila Ede, foi convidado a palestrar na cidade maravilhosa, tudo pago, incluso o cachê, que se não fez jus a seu enorme merecimento, ficou dignamente dentro dos valores praticados pelo mercado.

Artista plástico, professor e curador requisitado por museus, galerias e instituições congêneres, sua atuação foi como relatou Júlio César num outro tempo, num outro lugar, em relação a outras batalhas: foi, viu, venceu.

Fazendo o famoso bate-volta São Paulo - Rio de Janeiro, foi de  Uber até Congonhas, embarcou pela ponte aérea direto ao Santos Dumont, onde um carro da promotora do evento o aguardava e, chegando a seu destino, proferiu palavras cheias de calor e verdade a uma plateia atenta e feliz com a proximidade do Natal.

Desincumbido de sua tarefa, sobrou-lhe tempo para dar suas pernadas pelo centro do Rio. Pelo que depreendi de sua fala, passou ao lado da Colombo e nem se deu conta, tendo ido dar por distração em uma casa de chá gurmê, onde degustou uma infusão divina de pitanga que lhe custou os tubos  — o que repercutiu mal em seu digno pró-labore ainda por vir.

Agarrado à sua valise, com medo de ser assaltado na Uruguaiana, ajeitando os óculos sobre o nariz, como todo curador de museu que se preza, quebrou à esquerda, deu uns passos rápidos e ingressou, pingando de suor, no Real Gabinete Português de Leitura, no interior do qual enxugou a face negra de profusas barbas brancas com um refrescante lencinho de papel fragrância limão que sacou do bolso — primeiro tirou o lenço da embalagem, fique bem entendido.

Depois, bateu várias fotos das estantes de livros com seu celular — mas também fique bem entendido que antes descartou o lencinho numa lixeira próxima, porque constatou que fotografar com o lenço úmido em uma das mãos estava enchendo saco. Por fim, usou o mesmo celular para chamar um Uber de volta ao aeroporto.

Chegou ao Santos Dumont com antecedência e, maravilha das maravilhas, conseguiu embarcar e partir antes do previsto, de sorte — se é que o que sobrevirá pode  assim ser chamado — que chegou a São Paulo ainda mal terminara a tarde, matutando, durante o voo rápido da ponte aérea, que seu estado de alerta pelas ruas do Rio não fazia sentido, tendo mais a ver com as notícias sensacionalistas da TV do que com a realidade carioca, em que o único assalto presenciado ficou sendo o preço do chá.

No aeroporto de Congonhas, tomou um táxi para a estação Santa Cruz do Metrô, onde desceu e, antes que alcançasse a entrada, foi inapelavelmente assaltado. Por sorte —  essa palavra que pela segunda vez comparece ambiguamente nesta crônica —, disse ele, não levaram documentos, só uns trocados em espécie, a carteira e o cartão do banco, inócuo para os bandidos pois seu saldo estava estourado e o cachê ainda não fora depositado.

Apressados, os bandidos esqueceram-se de levar o celular, pelo qual ele prontamente acionou o banco, que bloqueou o cartão roubado e emitiu um novo —  que ele inaugurou, aliás, pagando sua metade da conta no bar, em que fizemos troca de presentes de nossos sessenta anos de idade e de amigo secreto de Natal.

E fica explicado com este final feliz o título shakespeariano desta crônica — Melhor Shakespeare da comédia do que do drama, ao menos neste caso — disse ele, duplamente vítima: do episódio infausto e desta crônica.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).


sábado, 16 de dezembro de 2023

CRÔNICA — Cena urbana


A caminho do trabalho, logo pela manhã, fui atraído por uma altercação. Do outro lado da avenida, homem e mulher, ambos na casa dos cinquenta anos de idade, do um metro e cinquenta de altura e da compleição rechonchuda, trocavam cobras e lagarto à vista e aos ouvidos de todos.

Separados de mim e da restante plateia deste lado da via pelo fluxo intenso do trânsito, só chegavam a nós, seccionadas pelo ruído dos automóveis, fragmentos de palavras, cujos pedaços faltantes poderiam ser deduzidos sem esforço, graças aos gestos inequívocos e um tanto teatrais do casal  eram um casal, como se verá ao fim.

Entrei no bar, pedi o de sempre para aquela hora da manhã e tomei um lugar estratégico para acompanhar o bate-boca, que se degenerasse em agressão física exigiria a minha pronta intervenção, bem como a de meus vizinhos de balcão, uns apreensivos, outros curiosos, a maioria divertindo-se à beça com a situação.

Foi então que notei ao pé da entrada do bar um simpático vira-lata branco com manchas pretas aleatórias pelo corpo, cabeça e patas, comodamente sentado de costas para nós, as orelhas em pé, inicialmente, a observar os briguentos. Ofereci a ele metade de meu pão com manteiga, que ele aceitou sem se fazer muito humilde e que comeu devagar, sem tirar os olhos da cena que também o atraíra àquele ponto da cidade.

Como o entrevero não piorasse nem melhorasse, entrando naquele platô de previsibilidade um tanto desinteressante, cuidei do meu café por instantes. Ao observar novamente o cão, notei que também nele o interesse no conflito decaíra. Suas orelhas estavam lassas e sua cabeça acompanhava distraída o ir e vir de dos autos.

Levantei-me, paguei a conta e caminhei, parando ao lado do pintado, que aliás tinha coleira, pelos limpos e excelente aspecto. Ele apontou o focinho para os briguentos do outro lado da via e voltou para mim seu olhar significativo, como quem diz "Não vai dar em nada". Então, levantou-se e foi-se, abanando a cauda, feliz talvez com o resultado do conflito.

Vi-o sumir na esquina mais próxima, entre pernas de gente e fumaça de escapamentos de carros.  Tive ocasião de observar no outro lado da via a dona dar o último pito no homem, que desta vez não retrucou e flexionou o braço, oferecendo-o a ela. Esta, aceitou, opiniosa mas satisfeita, e meteu o seu no dele. Os braços dados, os dois seguiram pela calçada apinhada de gente, apressados em alcançar a entrada do metrô.

Nesse momento, um pensamento entre poético e bizarro me ocorreu: tivera eu também cauda, ela estaria rindo como à do simpático vira-lata de há pouco, que, como eu, parou ali só para assistir ao desenrolar da cena urbana, cujo desfecho feliz cada qual aplaudiu a seu modo.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).

CRÔNICA — Ninguém atire a primeira pedra contra as asneiras

Quem é capaz de impedir alguém de cometer asneiras? Conheci poucos   se é mesmo que conheci algum. E e os que se lambuzaram nelas? Perdi a conta, na qual me incluo, sem orgulho, mas, confesso, lamentando as vezes em que não deram certo.

O perigo das asneiras é que, envolvendo alto risco, às vezes, funcionam. E quando funcionam, viciam mais do que qualquer viciado pode sequer imaginar.

As asneiras, quando dão com os burros n'água, são uma santa vacina contra impulsos avassaladores, porém, quando ocorre de colherem bons resultados, por meios sempre para lá de duvidosos, acionam na psique  para não dizer em nosso diabinho interior  um mecanismo pernicioso de repetição neurótica de busca, a qualquer custo, do prazer  pronto, mencionei a palavra que não deveria e que, pudesse, omitiria até o fim. 

A verdade é que toda asneira causa prazer, mesmo as que acabam mal. Aliás, acabar mal ou bem é contingência, provocar excitação e prazer, não: é batata! Os religiosos deram à asneira um nome ainda mais sugestivo: tentação. Quem mantém suas tentações à rédea curta sabe no que podem resultar, quando elas escapam: penitência, purgatório ou inferno  ou os três, um na sequência do outro. Perdão, pura e simplesmente, está fora de questão.

Ninguém em sã consciência quer o inferno. Porém, quanto à penitência e ao purgatório, avaliadas as circunstâncias ou a famigerada relação custo-benefício, não há quem não esteja disposto a entrar na fila   e muitas vezes sem avaliação nenhuma, apenas sob o impulso pernicioso e irresistível de sentir aquele de friozinho na barriga.

A verdade crua e nua, nessa ordem, é que, dessas três consequências aziagas das asneiras, duas valem a pena, compensam o risco, balançam nossa escala de valores porque, se estão a meio caminho da danação, também estão à meia distância da salvação. Noutras palavras, se o copo está meio vazio, está meio cheio também. E a relação custo-benefício no mínimo empata. E quem não arrisca não petisca. E ninguém segura quem quer pecar, principalmente se o pecado não levar direto ao inferno sem as duas escalas anteriores.

Antes que me acusem de cínico e partidário da prática indiscriminada de asneiras, ofereço ao leitor esta crônica como aquele outro    de quem sigo o exemplo na santa parábola   , que estendeu a mão e ofereceu a primeira pedra aos fanáticos em lapidação.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).



CRÔNICA — Grosseria nossa de cada dia

Na estação Brás é um pouco pior.

Outro dia, embarcando em um trem da CPTM rumo à estação Estudantes, não pude deixar de me surpreender com a educação dos usuários. Eu estava à frente da fila, não, melhoremos isso, do amontoado de gente apinhada no ponto de abertura da porta que me dizia respeito da plataforma. Ilusão minha, achei que os primeiros seriam os primeiros.

Tão logo o trem parou e abriu as portas, nós, os primeiros, fomos atropelados pela educação de quem vinha atrás, todos alucinados por tomar um lugar em um dos assentos, todos vazios, pois a composição vinha do pátio de manobras direto para primeira estação da linha, a da Luz — confesso que na estação Brás é um pouco pior, pois ali, mesmo no primeiro horário, ainda da madrugada, os assentos minguam.

Havia tantos lugares disponíveis que nós, os primeiros, agora os últimos, encontramos bons lugares para nos sentarmos. De pé, cada qual em seu vagão, com ares perplexos, escolhemos ao lado de quem estaríamos dispostos a dividir nosso tempo de viagem, conscientes de que, qualquer que fosse a escolha, ela recairia sobre alguém suficientemente grosseiro a ponto de passar por cima de quem quer que estivesse à sua frente para alcançar um assento vazio.

Busquei um lugar ao lado de uma senhora magra, pois a experiência de viajar ao lado de pessoas grandes e gordas não me deixou boas lembranças, eu, que, pequeno por princípio, mirrado por ruindade e esmagável — e atropelável — por educação, sofro horrores antes de reclamar com gente grosseira e folgada.

Sentei-me, saquei um livro do Luís Fernando Veríssimo da mochila e mergulhei na leitura, que logo foi perturbada por um camelô que se esgoelava no pregão de seu produto. Até a última estação, um exército deles se revezou aos berros à minha frente, sim, porque eu me acomodara em um banco votado para o corredor do vagão.

Minha leitura, assim, ficou picotada, espremida entre os pregões dos venderes ambulantes, que intercalavam sua propaganda com queixumes contra os seguranças, que insistiram em persegui-los, e pedidos para que Deus tocasse no coração dos usuários e os fizesse comprar seus produtos. Até que a senhora magra que me coube sacou da bolsa o telefone celular e desandou a falar, não discutir, não vociferar com outra dona do outro lado da ligação em volume que faria os pregões dos camelôs parecerem suaves noturnos de Chopin.

Até desistir por completo da leitura, estraga, pisoteada, vilipendiada, fiquei sabendo do resultado de todos os exames médicos dela, e ainda dos desgostos que a filha lhe proporcionava e da falta de caráter dos homens, que não valem nada e só querem saber de sexo.

Desisti, guardei o livro, alcancei meu celular na mochila, escolhi um aplicativo de música, selecionei em modo repetição a Lacrimosa, de Mozart, acionei os fones de ouvido no volume máximo, recostei no encosto do banco e só abri os olhos, despertado de meu transe, na estação final, onde as pessoas se atropelaram para atravessar na frente das demais a porta da composição mais próxima da saída, com todas as demais relativamente vazias.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).

Ouvir e falar: a fronteira final para o aprendiz de um novo idioma


Para quem busca adquirir um segundo idioma, sem se estar em terras em que ele vigora, ler e escrever não chega a ser um grande problema, desde que se domine bem a própria língua materna e, de meu estrito ponto de vista, esse segundo idioma seja uma das línguas neolatinas ou o inglês. Pena-se para se compreender a morfologia, o vocabulário e a sintaxe, porém sente-se o progresso ao longo do estudo e, ao cabo de um ano de empenho, alguma segurança e independência na leitura e na escrita já se observa.

Porém, no que tange à audição e à conversação, o cenário muda substancialmente. O progresso aí é lento e as conquistas, mínimas. A articulação audição-fala, no mais das vezes, se mostra escorregadia e, nesse binômio, a audição é que se mostra mais desafiadora. Identificar no continuum sonoro os signos linguísticos encadeados num fluxo e cadência típicos do idioma enche o coração do aprendiz da mais profunda sensação de fracasso.

Se o registro escrito permite o acesso ao dicionário para compor o sentido de um discurso ou texto em língua estrangeira, a natureza imediata da fala ergue-se como obstáculo intransponível para o iniciante — e mesmo para estudantes de nível intermediário , que se perdem ao ouvir uma ou outra palavra familiar em meio a um fluxo avassalador de sons incompreensíveis.

Por essa razão, tenho comigo que, em se tratando de aquisição de um novo idioma, ouvir clara e falar fluentemente é a fronteira final.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).


sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

O coletivo assaltado pelo indivíduo

Narciso (1594-96). Michelangelo Caravaggio.

Há uma tendência de se personificar na figura de um indivíduo o sucesso coletivo. Mesmo quando não há um indivíduo que se destaque significativamente do grupo, impera a cultura do individualismo. Por trás dessa prática reside uma ideologia ultraindividualista que visa não reconhecer os méritos do indivíduo com desempenho indiscutivelmente superior, mas, antes, legitimar a si própria.

Essa ideologia elege não exatamente o indivíduo vencedor como seu símbolo, mas, sim, o indivíduo que se apropria dos melhores resultados individuais e coletivos. Ao reputar a um único indivíduo o sucesso de todos, essa ideologia legitima na verdade uma forma escandalosa de roubo. E de tal modo encontra-se naturalizada e institucionalizada essa ideologia, que causa espanto um atleta, artista ou líder remeter ao coletivo os méritos de seu sucesso individual — e mesmo quando isso ocorre, o entorno apressa-se a enfatizar o papel desse indivíduo, acrescentando-lhe além de todos os méritos do sucesso coletivo, o predicado da modéstia.

Muito antes do triunfo do individualismo, o humanidade conviveu com indivíduos "fora de série". Sábios, sacerdotes, guerreiros, aventureiros, líderes, artistas — de ambos os sexos — permeiam as histórias dos povos desde suas eras mais remotas. Alguns tornaram-se lendas; outros, heróis ou mártires; outros, ainda, deuses, mitos ou santos.

Assim, ao personificar em um indivíduo um sucesso coletivo, essa ideologia rouba do indivíduo sua real participação no triunfo, rouba do coletivo seus imensos esforços — e rouba de ambos o bem mais precioso: a verdade.

Em todos as esferas da vida sob o império do capitalismo, essa ideologia promove uma verdadeira caça ao símbolo da superioridade e primazia do indivíduo que sabe "aproveitar a oportunidade" e se apropriar dos esforços alheios, seja para enriquecimento próprio, seja para autopromoção. Porém, é nos meios de comunicação de massa que ela encontra seu templo sagrado e seu altar de glória, incluídos aqui a Internet e as redes sociais.

Nos meios de comunicação de massa o narcisismo atingiu um ponto cuja superação é difícil sequer imaginar. Neles, o culto do eu, da autoimagem, das fantasias narcísicas tornaram-se uma verdadeira pandemia que, como toda patologia coletiva, transmissível e fora do controle, enche hospitais, clínicas e consultórios de saúde mental— e faz a fortuna astronômica dos bilionários das novas tecnologias de informação e da indústria de fármacos.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).

O trabalhador faz o trabalho e o trabalho faz o trabalhador


Diante de um trabalho coletivo bem realizado, a primeira impressão que se tem é de que se tratou de uma atividade fácil — e que, por isso, teria obrigatoriamente resultar em solução satisfatória. A segunda impressão é a de que os indivíduos envolvidos estariam à altura do desafio.

A realidade porém é que nenhum trabalho coletivo é simples, pois sua consecução envolve a ação de muitos e variados agentes, que só alcançam articulação satisfatória após a superação continuada de conflitos inerentes à própria natureza do trabalho coletivo   e essa superação ora é realizada por consensos, ora por acordos e ora por disputas cujas regras precisam ser debatidas e decididas pelos envolvidos.

Por outro lado, nenhum agente de atividade coletiva está aprioristicamente capacitado ou habilitado para a consecução de um objetivo comum   antes pelo contrário, os agentes se vão capacitando no próprio processo, à medida que vão aprendendo e buscando soluções adequadas a cada um dos muitos desafios que se erguem na trajetória de cada um e de todos.

Há, assim, uma relação dialética entre o trabalho coletivo e os agentes nele envolvidos: os trabalhadores fazem o trabalho, e o trabalho faz os trabalhadores.

A natureza social do trabalho coletivo impõe aos envolvidos a necessidade do desenvolvimento de formas organizativas e administrativas vivas, dinâmicas, flexíveis, que permitam a liberação das energias de cada indivíduo, com como de sua criatividade, mas também que estimulem seu engajamento voluntário nas tarefas e metas decididas conscientemente pelo coletivo de que faz parte   coisas que não acontecem nem de uma vez, nem para sempre.

Dessa maneira, por mais singelo que pareça um objetivo coletivo alcançado, ele é apenas a face visível de um imenso iceberg, de cuja parte maior somente os diretamente envolvidos têm a exata dimensão   e também só eles têm a mais clara consciência acerca do quanto aprenderam durante o processo para atingir o resultado final, que o observador externo só conhece pela aparência e parcialmente.

Empregando a alegoria do reino animal, somente as abelhas envolvidas na fabricação sabem quantas viagens foram realizadas e quantos riscos foram enfrentados e superados para fabricar uma mísera colher de chá de mel, mais ou menos a quantidade que uma abelha alcança em toda sua vida.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).



Clichê: um cuco parasita

 A ideia de não nutrir expectativas para se evitar frustrações é acentuadamente narcisista. Por detrás da atitude de não se esperar nada de bom de ninguém nem do futuro reside eloquente a megalomania. Quem assim encara a vida é como se dissesse: ninguém nem nada estaria a altura de meu ego. Aliado a essa megalomania está um pessimismo patológico em relação à própria vida, insuficiente para preencher o saco sem fundo dos desejos íntimos fortemente reprimidos.

Não é difícil entrever nessa postura frente ao mundo o seu exato oposto: desejo tanto que me amem e que o futuro me receba em um abraço cheio de afeto que não suporto sequer o risco de desejar, então reprimo e e rejeito o que na realidade desejo ao extremo.

Logicamente, quem age assim escolhe um clichê como mecanismo falho de defesa. Falho porque, obviamente, declarar falta de expectativas é já admitir não que elas sejam inócuas, mas que  o sofrimento que a frustração pode causar é, para um ego mal estruturado, insuportável. Bem observado, o clichê, aqui, mais do que uma declaração verdadeira, é um pedido envergonhado de ajuda — e ninguém pede ajuda se não está necessitando.

Na verdade, não nutrir expectativas em relação a nada e ninguém corresponde a se estar transido por impulsos autodestrutivos — numa perspectiva freudiana, pulsões de morte —, caso em que o desânimo reside não em uma realidade potencialmente pouco alvissareira, mas no próprio âmago do indivíduo, o que configura um sintoma neurótico.

Porém, um outro aspecto incide: o de que quem assim sente e assim pensa, embora grite por ajuda, ainda que por meio de um mal disfarçado clichê, busca aprovação externa de seu sentir e seu pensar, noutras palavras, busca, contraditoriamente, concordância e aprovação de outro sujeito para a neurose de que, lá no íntimo, na verdade, quer se ver livre.

Clichês como esse circulam em escala assombrosa pelas redes sociais, e quem os emprega não passa por uma peneira, mesmo grosa, de sinceridade. Por sob clichês peremptórios como esse, reside a mágoa, a ferida mal cicatrizada, ou às vezes ainda exposta, da frustração e da perda.

Não há chance para o indivíduo que assim age encontrar paz interior enquanto não deitar fora o clichê e assumir de uma vez seu sofrimento íntimo, só superável se encarado sem mecanismos de defesa, cuja função, ao fim e ao cabo, é preservar a própria ferida emocional, cuja dor oferece algum prazer, ainda que mórbido, como forma de compensação — e livrar-se dessa ferida e dessa dor implicaria em abrir mão também dessa compensação, sempre de natureza afetiva.

Como um filhote de cuco em ninho alheio, o problema do clichê, assumido pelo indivíduo como simulacro, é que ele toma lugar de manifestações verdadeiras, e atira para fora do ninho aquilo de que o indivíduo necessita para superar seu estado neurótico.

Nessa configuração, o cliché é — como o filhote de cuco atirando para fora do ninho e para a morte os filhotes verdadeiros — um parasita que, manifesto na linguagem, aloja-se na psique, alimentando-se da ferida emocional e da dor do indivíduo. Enquanto não se expulsar do ninho esse parasita, o ciclo neurótico não se rompe e, pelo contrário, se intensifica.


Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).




quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Literatura enquanto fonte

 O estudo da literatura se justifica por si só, uma vez que ela tem relevância e prestígio em todas as sociedades que desenvolveram a escrita, porém seu estudo se justifica também por muitas outras razões exteriores a ela. Trato aqui apenas de uma dessas razões exteriores, qual seja: a literatura enquanto fonte de outras ciências.

As narrativas literárias nos permitem aferir o clima cultural de uma época, suas características dominantes e contra-hegemônicas, suas temáticas mais frequentes, sua sensibilidade, sua religiosidade, suas relações sociais, políticas, econômicas e de poder, suas classes e ideologias em conflito etc. Isso também poderia, e é, alcançado por outras ciências, porém de forma sempre parcial, porque cada qual realiza seu recorte específico da realidade, segmentando-a e enfocando-a a partir de seu exclusivo e estrito ponto de vista. 

A literatura, diferentemente, reconstitui simbolicamente a vida e as experiências humanas de forma mais integral, e oferece a oportunidade de imersão  no coração de simulações as mais amplas, complexas, ricas e profundas possíveis, a depender do engenho do artista.

Karl Marx, considerado hoje um dos pais da sociologia,  afirmava que A Comédia Humana, conjunto da obra de Honoré de Balzac (1799-1950) fora para ele mais importante em sua análise da sociedade francesa do que os muitos estudos de economia, história e filosofia por ele visitados. Seu companheiro de jornada, Friedrich Engels, afirmou em carta a Margareth Harkness (1888) ter aprendido com Balzac "mais do com todos os historiadores, economistas e estatísticos profissionais do período". Noutras palavras, dois dos mais importantes estudiosos das relações sociais, econômicas e de poder do século XIX encontraram na literatura fonte legítima para suas pesquisas, reflexões e formulações, que repercutiriam ao longo do século XX na forma de revoluções socialistas pelo mundo todo.

Razões externas ao estudo da literatura são abundantes, porque não há campo da atividade humana que não tenha sido visitado por escritores, dramaturgos e poetas. História, geografia, sociologia, filosofia, religião, mas também matemática, física, química, astronomia, entre outras, têm lugar na escrita ficcional, na poesia e no teatro desde que o código escrito foi inventado, seja porque os autores houveram por bem tratar dessas dimensões da vida, seja porque os próprios autores muitas vezes eram matemáticos, físicos, médicos, astrônomos etc., evento bastante comum tanto na história da literatura quanto na história das ciências.

Fiquemos no exemplo de Galileu Galilei, que, para expor seu ponto de vista científico, em Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundo (1632), empregou o artifício da narrativa ficcional. Nesse livro, o diálogo acontece entre três personagens: Salviati, defensor do modelo de Copérnico; Simplício, defensor do modelo geocêntrico adotado pela Igreja, e Sagredo, no papel de mediador imparcial. O livro foi divido em jornadas (quatro) , como o Decamerão (1348-53), de Giovanni Boccaccio , e o Pentamerão (1778), de Giambattista Basile.

Sobre Freud, deixo que fale Luiz Zanin Oricchio: 

Ao longo de sua carreira, Freud escreve múltiplos artigos que tomam obras literárias como pontos de partida para reflexões psicanalíticas. Basta lembrar do famoso Complexo de Édipo, inspirado na tragédia de Sófocles. Ou do tema do parricídio, que toma como ponto de partida a leitura de Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski. Há textos sobre autores hoje menos famosos, como Delírios de Sonhos na Gradiva de Jensen. E ensaios até hoje estimulantes sobre a arte, em diversos aspectos, como O Estranho (Das Unheimliche) e O Poeta e a Fantasia.

 Por que Freud cita mais autores literários que autoridades científicas em sua vasta obra (reunida em 24 volumes)? Bem, há motivos para afirmar que ele não procurava nas literatura a confirmação de suas teorias, mas, pelo contrário, eram as obras literárias que lhe davam "dicas" preciosas de como prosseguir por caminhos obscuros.

Em algumas ocasiões, chegou a escrever que os artistas chegavam antes, e de maneira mais profunda, à realidade psíquica a que ele, trabalhosamente, tentava aceder por seu trabalho clínico e de reflexão. Era como se o artista "antecipasse" realidades que apenas depois, e de outra maneira, o cientista iria alcançar. (In "Análise: Literatura era a arte que mais tocava Sigmund Freud") .

As justificativas para o estudo da literatura exteriores a ela são certamente infinitas, porém não me causa espanto o desinteresse pela leitura ficcional, pela poesia e pelo teatro que observo em profissionais especializados, do nível mais modesto ao mais elevado. A visão integral e humanista que a literatura oferece choca-se com o projeto de ser humano vigente, cuja essência é a fragmentação social ao extremo, a alienação total e o ultra-individualismo narcísico.

Fico por aqui. Se convenci — o que não era a intenção —, muito bem. Se não convenci: amém.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Pulsão de vida, o outro nome da Esperança

 

As razões para que uma pessoa busque auxílio de um psicanalista são as mais variadas, porém, todas envolvendo sofrimentos em relação aos quais ela se sente fragilizada, insuficiente ou mesmo impotente. No entanto, convém considerar com atenção a particularidade de que essa procura, quando voluntária — e somente quando voluntária —, reflete um movimento interior de pulsão de vida, em que ela busca organizar-se psíquica e emocionalmente para enfrentar suas próprias dores, identificando no profissional a figura mais adequada para ajudá-la.

Em si, essa iniciativa voluntária de buscar o apoio de um profissional especializado já é um passo importante do paciente em sua luta pelo restabelecimento da saúde emocional e de seu equilíbrio psíquico. E por quê?

Aqui, cabem inúmeras razões, mas convém destacar algumas das principais.

A primeira delas envolve considerações de ordem social. Não consiste novidade que as doenças ou transtornos psíquicos, mentais e emocionais são alvo de preconceito às vezes explícitos, às vezes velados. Esses preconceitos nos apanham ainda na infância e, por repetição dos outros e falta de estudo e reflexão de nós mesmos, repousam em nossa estrutura afetiva e moral como um pó pegajoso que se acumula ao longo dos anos.

Desta forma, quando uma pessoa busca voluntariamente um psicanalista, com certeza empreendeu enormes energias emocionais e intelectuais para remover de seu espírito esse pó pegajoso do preconceito — esforço que só se completará, de verdade, se ela vir no processo de análise resultados efetivos, ainda que parciais e demorados.

Ocorre que, para vencer o preconceito — esse ovo de serpente depositado em sua psique e em sua estrutura moral —, a pessoa teve que desenvolver em si mecanismos intelectuais internos bastante sofisticados e poderosos, uma vez que a pressão do preconceito, crônica, constante e extremamente opressora, ocorre não apenas de fora para dentro (dos outros contra mim), mas principalmente, uma vez que ele se encontra alojado e arraigado, de dentro para dentro (ou seja, de mim contra mim mesmo). Quando uma pessoa liga para um psicanalista e agenda uma entrevista, embora ainda residual e perigos, o preconceito internalizado está com os dias contados — depois de ter feito essa pessoa retardar em demasia a busca por um direito básico: o direito à saúde, no caso, psíquica, emocional, mental.

Essa busca voluntária de ajuda de um profissional especializado tem outra razão auspiciosa, a saber.

Na luta por enfrentar seus sofrimentos psíquicos, emocionais, mentais, a pessoa se bombardeia com perguntas, algumas das quais responde com facilidade, mas em relação à maioria das quais ou não encontra resposta adequada, ou simplesmente não encontra resposta. Nessa atividade introspectiva, nesse esforço intelectual por alívio, a pessoa desenvolve um certo autoconhecimento. Nesse caso, a busca pelo psicanalista reflete um alto grau de consciência: a de que, sozinho, não logrará sucesso em sua luta — noutras palavras, reconhece os limites de suas ações, sua própria insuficiência e a importância do outro em sua jornada de luta pela vida, porque, a final de contas, é disso que se trata.

Esse simples ato de ligar para um psicanalista e agendar uma entrevista tem também outro significado auspicioso.

Seguramente, antes de realizar essa ligação telefônica ou esse contato por WhatsApp, a pessoa que busca recuperar a paz de espírito, o equilíbrio emocional, refletiu muito sobre as muitas alternativas.

A conveniência de abrir seus problemas a uma pessoa de confiança terá sido considerada. Porém, qual pessoa de confiança em seu círculo de amizades estaria em condições de ajudar? Que riscos haveria nessa alternativa? Qual a possibilidade de essa ajuda não especializada resultar em conflitos internos e externos ainda maiores?

A busca por sacerdotes de diversas religiões também terá sido considerada, em primeiro lugar, a da própria, mas é comum, em esta não “funcionando”, outras serem procuradas. Quanto tempo será despendido entre essa busca por solução religiosa a sofrimentos emocionais, psíquicos e mentais, à busca de um profissional especializado nesses transtornos? Tanto mais quando não há contradição entre ser religioso e buscar um psicanalista, ou um psicólogo — ou um cardiologista, um endócrino etc.

Assim, numa metáfora, ao agendar uma primeira entrevista com um psicanalista, a pessoa, um tanto pelo método de tentativa e erro, cogitou e tentou uma montanha de alternativas anteriores, de sorte que essa iniciativa é fruto de uma decantação prolongada — às vezes prolongada demais, com os prejuízos que essa demora implica.

Há outras razões muito auspiciosas implicadas na simples inciativa de buscar um psicanalista, porém a principal, entre todas é, sem dúvida, a de que o ato de buscar ajuda especializada para superar um tormento emocional, psíquico ou mental reflete uma pulsão de vida muito forte, que se contrapõe à pulsão de morte suscitada pelo sofrimento de que quer livrar-se.

Em certo sentido, é uma espécie de manifesto da pessoa em favor da vida, da própria vida — um “automanifesto”, cuja principal deliberação é mover-se energicamente contra os mecanismos de morte que operam sem controle dentro de si, e que precisam ser neutralizados e desmontados — mas não sem ajuda.

Essa deliberação consciente em favor da vida, da própria vida, resulta dessa pulsão mais profunda e inconsciente, que é uma energia mais poderosa do que o que Vinicius de Moraes, em Mensagem à Poesia, chamou “forças do abismo que pesam sobre mim”.

Com a devida licença do poeta, poderíamos chamar essa pulsão de vida que move a pessoa a cuidar-se com ajuda de um psicanalista, daquilo que ele faz ressoar em seus versos no mesmo poema: esperança.

Assim, uma pessoa que busca um psicanalista voluntariamente está cheia de dor, mas, também, ainda em maior proporção, de ESPERANÇA!

Freud demolidor

 

Os sonhos acompanham a humanidade desde que ela existe enquanto tal. Ou, por outra, adotada a perspectiva científica decorrente da teoria da evolução das espécie de Darwin, antes mesmo de a humanidade ser esta que hoje conhecemos, uma vez que os estudos comprovam a atividade onírica em todos os mamíferos.

Em 1994, uma equipe de espeleólogos amadores descobriu por acaso no sul da França, no interior de uma caverna, um acervo maravilhoso de inscrições rupestres, nas quais animais e seres humanos são representados com uma técnica altamente sofisticada, em perfeito estado de conservação — o que ocorreu em razão de um terremoto, estimado em 20 mil anos atrás, ter fechado a entrada da caverna.

 A descoberta da caverna de Chauvet impactou o mundo científico, pois as inscrições datam entre 30 e 40 mil anos atrás, tornando-se, portanto, as mais antigas até hoje conhecidas. Foram tomadas medidas drásticas para preservação desse patrimônio e, assim, as visitas foram proibidas, a caverna foi blindada com uma porta de aço e seu interior foi dotado de sistemas de câmeras e climático para garantir a integridade do acervo pintado em parede de rocha e em estalactites. O acesso a ela é regido por severas normas, e restringe-se ao meio científico e àqueles relacionados à divulgação cultural.

E o que isso tem a ver com os sonhos?

Tem a ver que o premiado cineasta e documentarista Werner Herzog, autorizado a produzir um documentário para registrar a descoberta, não encontrou melhor título para ele do que “A caverna dos sonhos esquecidos”. Assistir ao documentário explica porque esse título se impôs ao cineasta: o impacto não apenas do conjunto de mais de 420 pinturas e desenhos animais, de seres humanos e partes de seus corpos, mas do próprio interior da belíssima caverna — remete diretamente a paisagens de sonhos: o próprio clima no interior dessa espécie de útero simbólico é intensamente onírico.

A relação da humanidade com os sonhos tem sofrido alterações ao logo do tempo. Estudos de história, arqueologia, antropologia, sociologia, psicologia, psicanálise e ciências afins, ou em suas fronteiras, registram essas mudanças significativas.

Numa era em que as ciências sequer sonhavam em se estruturar, realidade, imaginação, fantasia, magia e sonho compunham um único tecido indiscernível. O que ocorria entre o dormir ao pôr-do-sol e o despertar com o sol nascente era tão vida e tão legítimo quando o que ocorria durante o dia claro, em que caça, pesca, coleta, fuga de predadores, cuidados com crianças, entre outros, se davam. Não havendo “muralha da china” entre sono e estado de vigília, o que ocorria em ambos era igualmente considerado pelo indivíduo como verdade: afinal, era extremamente angustiante ser atacado por uma fera tanto na vida real, quanto em sonho — com a diferença de que, como a fera do sonho não matava o homem real, este via naquele um aviso, uma premonição a ser tratada com seriedade.

Ao longo dos séculos, os sonhos foram assumidos com tal respeito que passaram a ser objetos de intepretação e atribuição de personagens especializados nas sociedades, de oráculos a sacerdotes, de adivinhos a sábios — e, com o desenvolvimento do pensamento científico, de filósofos a psicanalistas, passando por psicólogos, antropólogos, sociólogos, neurologistas, neurocientistas etc.

As abordagens não científicas do sonho são legítimas. Cada qual em sua esfera procura vislumbrar o humano por meio de sua perspectiva específica.

Por que rejeitar a leitura mística de um sonho, quando esta se apresenta muitas vezes como a única em que, em algum momento da vida, o indivíduo pode apoiar-se para seguir em frente, em face de perturbações incontornáveis? Por que desprezar uma interpretação religiosa ou mágica de um pesadelo, quando apenas uma fração muito pequena da humanidade se declara ateia ou agnóstica? Tanto mais quando tanto as perspectivas místicas, quanto as religiosas e mágicas legaram à humanidade um acervo de obras de arte e culturais de valor imensurável.

Porém, se essas perspectivas são legítimas, a científica também o é, e talvez mais, pois incorpora todas as demais: as ciências estudam o sonho na esfera material, mas também no âmbito do misticismo, das religiões e do pensamento mágico.

Coube a Freud dar um passo decisivo para compreender de um modo científico o papel dos sonhos na vida humana, levando em conta fatores biológicos, históricos, sociais e, principalmente, psíquicos.

Sua obra A intepretação dos sonhos (1900), tornou-se um marco, a partir do qual uma clivagem radical produziu uma decantação definitiva nas abordagens desse tema, que, de “pária” nos meios científicos,  passa a ser tópico de prestígio nas ciências da mente. A partir dessa obra fundante, as relações entre os sonhos e o bem-estar mental e físico do indivíduo começam a ser investigadas de maneira sistemática ao longo do século XX e adentram o XXI com abundantes pesquisas e publicações pelo mundo todo.

O racionalismo, base do progresso capitalista, que desde o século XIV se desenvolveu na Europa, no interior do que se convencionou chamar Humanismo, ergueu, aqui sim, uma “muralha da China” entre a vida psíquica durante o sono e a em estado de vigília.

Disso decorre que uma parte substancial da existência humana — aquela que vivemos dormindo — passou a ser ajuizada como “inútil”, afinal, não se produz nada, do ponto de vista capitalista, durante o sono.

Freud enxerga a arbitrariedade, a fragilidade, a limitação e o artificialismo dessa “construção” típica do modo capitalista de produção, que ao reduzir o ser humano a uma unidade de produção econômica, concebe o sono como uma pequena morte diária, um tempo desperdiçado, e os sonhos, como bizarrices inúteis dentro de um tempo de produção desperdiçado.

Essa muralha não há para os pensamentos místicos, mágicos ou religiosos — os quais Freud descarta já no início de seus estudos. Não há porque, malgrado as particularidades desses pensamentos não científicos, eles se esforçam por buscar uma compreensão integral (corpo e alma) do ser humano — não apenas sua dimensão física, fisiológica, econômica.

Coube a Freud, no campo científico, com A Intepretação dos sonhos, por abaixo essa muralha.

Transtorno de Ansiedade Generalizada


O Transtorno de Ansiedade Generalizada é considerado uma das principais afecções psíquicas de nossos conturbados tempos atuais, muitas vezes associado a formas depressão e fobias, o que dificulta em alguma medida o diagnóstico.

Os estudos demonstram que esse transtorno está relacionado diretamente às enormes pressões a que o indivíduo está sujeito desde os mais tenros anos de idade. A socialização das crianças já na primeira infância, o que em si é um fator positivo, as implicam desde cedo a relações de massa que, se por um lado implicam em ganhos em termos de escolarização e desenvolvimento de habilidades cognitivas, sociais e afetivas, por outro, as expõem ao estresse cotidiano — e por longas horas. A gritaria ensurdecedora no horário do intervalo reflete bem esse ambiente que em algumas oportunidades torna-se verdadeiramente tóxico.

Principalmente nas redes públicas, berçários, creches e pré-escolas superlotados, a falta de pessoal, a rotina esvaziada de sentido e o improviso compõem um ambiente de conflitos em que fatalmente algumas crianças desenvolverão sintomas de ansiedade — ou ainda outras afecções ainda mais preocupantes.

Porém, esse meio “carregado de eletricidade” não é privilégio de crianças em início da fase de escolarização. A Educação Básica, até o final do Ensino Médio, seja em escolas públicas, seja em escolas privadas, funcionam como receptáculos de uma grande quantidade de crianças, adolescente e jovens que carregam para esse ambiente as tensões geradas no interior da família, no âmbito de seus grupos, nos veículos do transporte público, nas ruas e avenidas em que o tráfego e os congestionamentos são enlouquecedores. Sob esse aspecto, a escola, desavisada, prepara uma geração de indivíduos ansiosos por ingressar o quanto antes no mundo ansioso, turbulento e conflituoso dos adultos.

Com relação à população adulta, homens e mulheres, já tendo realizado seu estágio de ansiedade na escola básica, encaram a luta pelo emprego, pelo Ensino Superior, pela qualificação profissional — junto com o medo do desemprego, do fracasso profissional, das desventura do amor, de constituir uma família (ou de perdê-la em processos dolorosos de separação).

Além da legítima carga emocional e de responsabilidades que cada um carrega em seu coração, ou sua alma, ou sua psique, derivada da condição de cada qual neste mundo hipercompetitivo, há inda uma outra, ainda mais intensa, fruto da revolução tecnológica. Na palma da mão de praticamente todo habitante de grandes e pequenas cidades, o celular sequestra toda a vida emocional de seu usuário, subordinando seus interesses aos dos veiculadores de conteúdo, que usam e abusam das mais elaboradas estratégias para intensificar ao extremo esse sequestro.

Sequestrado por perfis famosos das redes sociais (os assim chamados “influencers”), no Instagram, YouTube, Facebook, Tik Tok, Whatsapp, Telegram e outros, o indivíduo passa a ser bombardeado com assuntos que não lhe dizem respeito, posts e anúncios hiperssexualizados, questões graves da política, da economia, da saúde, dos costumes etc. cuja solução estão completamente fora de seu alcance — acrescidos daquelas de sua estrita competência cuja solução , tantas vezes, também lhes escapa.

É desse modo que nossa sociedade atual adoece em massa, mas cujos sintomas comparecem de forma mais visível no nível micro, do indivíduo, tornado uma verdadeira pilha de nervos — para empregar uma expressão já fora de uso —, que sofre agudamente seja dentro de seu carro, em face do semáforo vermelho que demora 2 minutos para abrir; seja à frente da porta de seu apartamento, vasculhando a bolsa ou os bolsos em busca da chave que insiste em se esconder; seja  digitando uma mensagem no celular, com o corretor automático corrigindo errado seu texto.

A pressão por todos os lados faz com que haja dificuldade em se admitir que a fronteira da normalidade já foi cruzada há tempo, uma vez que todos alteram a voz ao mínimo conflito, empregam palavras descorteses a qualquer propósito, invadem o espaço alheio sem cerimônia, atropelam “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”, “com licença”, “por gentileza”, “obrigado”, “como está?” para ir direto ao assunto, esgotá-lo com o máximo de rapidez para voltar ao celular.

A prevalência no tempo dessa conduta hiperacelerada confunde-se também com traço de personalidade ou caráter. Assim, os sintomas se agravam ao longo do tempo, convertendo-se em aparente norma, quando na realidade é manifestação de descontrole emocional e psíquico, que só será notado e, talvez, levado a sério, quando danos graves ou irreparáveis tenham vitimado casamentos, afetos entre pais e filhos, relações de amizade e carreiras profissionais tão desejadas e promissoras.

Na fase aguda, os riscos físicos são iminentes: tensão muscular, palpitação, sudorese, cefaleia frequente, disfunções sexuais, disfunção gastrointestinal. Porém, particularmente a população masculina, tradicionalmente avessa à medicina preventiva, só busca ajuda em face de outros sintomas: perda de memória, insônia, dificuldade de concentração, irritabilidade, inquietação.

Na busca de se livrar do sofrimento causado pelo transtorno, o afetado por ele canaliza suas energias para alvos específicos, que pode ser o sexo, a bebida, as drogas ilícitas, os “rachas” de moto ou automóvel, o abuso de exercícios em academias etc.

Quando se dá conta ou é convencido de que necessita de tratamento, a difícil recuperação do indivíduo ocorre, pois é reversível, em meio a perdas muitas vezes irrecuperáveis, na esfera de relações afetivas e sociais caríssimas, entre as quais o casamento, a paternidade, o emprego, as amizades, o grupo social.

Em situações agudas, o tratamento psicanalítico convoca o auxílio do psiquiátrico, ao menos até o indivíduo recuperar-se o suficiente para retomar o controle de suas próprias emoções — a exemplo de casos de insônia prolongada, de sensação recorrente de vertigem ou de pensamentos obsessivos que abrem caminho ou já estão no âmbito da depressão severa.

Quantos relacionamentos tiveram fim, particularmente nos últimos três anos, com a pandemia de Covid-19, e o confinamento dela advindo, pelo estresse de um período em que a vida em comum converteu-se em uma panela de pressão? Quando dos atritos, conflitos e rompimentos de afetos se devem ao Transtorno de Ansiedade Geral, confundido com traço de caráter ou personalidade. Quantas das pessoas descartadas de relações profissionais, sociais ou amorosas o foram por terem se tornado “insuportáveis”, quando na verdade estavam apenas doentes?

Todos precisam de todos, o tempo todo

 

A busca pela saúde psíquica e mental é seguramente uma das maiores preocupações dos tempos atuais. Em face da complexidade e dos conflitos do mundo contemporâneo, o indivíduo está a todo momento exposto a situações de estresse que, no curso do tempo, produzem ferimentos emocionais de variados graus de gravidade, dos mais amenos e inócuos aos mais severos e incapacitantes.

Em meio a situações-limite na família, no meio profissional e na vida cidadã, em algum momento de sua vida o indivíduo adoecerá emocionalmente e, a depender de seu histórico particular e da gravidade do transtorno, necessitará de ajuda especializada, por curto, médio ou longo prazo — e às vezes para o resto da vida.

No que tange ao psicanalista, sua especialidade tem assistido a um substancial crescimento de demanda, tanto mais quando se põe na balança os efeitos ocasionados pela pandemia de COVID-19, que resultou em perdas humanas insuperáveis, confinamento social por largo período, mudança de hábitos individuais e coletivos, e agravamento da crise econômica, cujo impacto gerado pela paralisia ou quebra de empresas, em função do longo período de interrupção de atividades, e pelo desemprego generalizado, ainda repercutem fortemente no seio da família, da comunidade e da sociedade em geral.

Seja no ambiente profissional ou urbano, seja nas escolas, seja na família, uma pressão enorme se acrescentou àquelas já normalizadas pelo quotidiano tenso, derivado de uma crise política prolongada que, no Brasil, beira uma década, em que polarizações por disputas ideológicas fizeram naufragar relações entre casais, pais e filhos, amigos, colegas de trabalho entre outras.

Como afirma Freud, todos somos algo neuróticos, no entanto, a intensidade dos conflitos sociais e políticos no Brasil dos anos mais recentes, e a gravidade da pandemia de COVID-19 potencializaram um clima social hostil que, sem solução satisfatória, gerou uma correspondente epidemia de transtornos psíquicos, que vão do mal-estar intermitente à depressão mais severa, em que o crescimento do número de suicídios se mostra apenas como face mais visível.

Com efeito, a título de exemplo, a partir de dados do Ministério da Saúde, a Fundação Oswaldo Cruz desenvolveu estudo sobre o suicídio no Brasil em 2020. O objetivo dessa pesquisa (Excesso de suicídios no Brasil: desigualdades segundo faixas etárias e regiões durante a pandemia de Covid-19) era investigar a elevação do número de suicídios no país por idade e por regiões. Ainda como exemplo, o estudo revelou que na região Norte houve um acréscimo de 26% de suicídios em homens com 60 anos ou mais. (FONTE: Fundação Oswaldo Cruz. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/fiocruz-avalia-excesso-de-suicidios-no-brasil-na-primeira-onda-de-covid-19. Acesso em 22 dez 22.)

Se nas empresas o ambiente de incerteza projeta sobre os indivíduos um véu de ansiedade, em razão da pressão por resultados em face de um mercado contraído; nas escolas, professores e demais profissionais buscam instaurar um clima de normalidade, porém é visível que crianças e adolescentes apresentam dificuldades para restabelecer vínculos com os colegas nos termos pré-pandemia; e em nível “macro”, o estudo da Fundação Oswaldo Cruz demonstra que os efeitos colaterais da pandemia vão muito além das mortes diretamente ligadas ao coronavírus, abrangendo uma dimensão que vai se tornando mais visível à medida que os diagnósticos de transtornos psíquicos vão alimentando estatísticas oficiais do período.

Se por um lado a melhoria da situação geral depende de políticas de saúde amplas, que impliquem em controlar e, idealmente, debelar a pandemia, por outro, os danos psíquicos resultantes desse período aziago de nossa história recente só serão satisfatoriamente mitigados ou sanados a partir do auxílio especializado aos indivíduos diretamente impactados.

Noutras palavras, as empresas superarão suas dificuldades se buscarem propiciar a seus colaboradores um clima saudável, que não se alcança na insegurança ou na pressão psicológica por resultados que, nesse caso, quando vêm, vêm mesclado com atestados médicos de toda natureza — e cada vez mais de natureza psíquica.

Do mesmo modo, o ambiente escolar não superará satisfatoriamente e no prazo mais breve possível o mal-estar remanescente do período de confinamento se não observar o estado emocional de estudantes, de seus familiares e dos profissionais da unidade escolar.

No âmbito da família e da comunidade, infelizmente, muitas situações são irreversíveis. Assim como os casos de suicídio se tornaram mais frequentes, também o número de divórcios apresentou significativa alta no período.

Segundo a Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais: “Estudos demonstram que, durante o segundo ano de isolamento social decorrente da pandemia, o número de divórcios feitos em cartórios de notas do país subiu 26,9% de janeiro a maio só em 2021, em relação ao mesmo período de 2020. Se comparado a igual período de 2020, o crescimento foi de 36,35% em 12 meses.” (FONTE: Anafe. Disponível em: https://anafenacional.org.br/divorcios-na-pandemia-que-dizem-os-dados. Acesso em: 22 dez 22).

No artigo da Anafe que trata do assunto, a panela de pressão em que se tornou o lar, saturado pelo home office do casal, por tarefas domésticas e por aulas virtuais dos filhos, que tornaram a sala de casa extensão da sala de aula, levaram a um colapso emocional a família:  “Dentro de casa, as pessoas viram-se forçadas a tentar equilibrar as atividades profissionais com o cuidado das crianças, tarefas domésticas, sem se desocupar das finanças, saúde corporal e mental e até dos relacionamentos interpessoais com parceiros/cônjuges, família e amigos. A dinâmica de equilíbrio desses “pratinhos” é delicada e, dependendo do grau de stress, é inevitável que um deles caia.” (Anafe. Idem, ibidem)

Submetido a pressões insuportáveis, tanto sociedades, quanto grupos sociais, família ou indivíduos sucumbem. Sob esse aspecto, a pandemia deixa como lição a necessidade de dar maior atenção à saúde mental, psíquica e emocional não apenas quando doenças, transtornos ou distúrbios se apresentam, muitas vezes de forma dramática, mas enquanto forma preventiva e mesmo cotidiana de busca de equilíbrio e bem-estar.

Se maus momentos políticos e econômicos de uma sociedade são caldo de cultura para adoecimento da população, inclusive na dimensão psíquica, também é verdade que indivíduos mais conscientes de sua dimensão emocional — e que cuidam dela — enfrentam melhor esses períodos, quer expondo-se menos a situações traumáticas, quer as enfrentando de forma mais adequada e racional.

O ser humano é falível, tem limites, fragilidades e disfunções características. Ter consciência dessa falibilidade, desses limites, fragilidades e disfunções não os elimina, mas propicia meios para enfrentá-los cotidianamente e vencê-los, quer por conta própria do indivíduo, quer com ajuda especializada, o que não é demérito nenhum — antes pelo contrário, revelando uma sabedoria profunda: a de reconhecer que, no âmbito da humanidade, ninguém é autossuficiente, pois todos precisam de todos, nos piores momentos principalmente, mas, a rigor, o tempo todo.