Susana
Ventura, o mais recente heterônimo de Fernando Pessoa descoberto
Era novembro
de 1935, fazia frio e o céu de Lisboa insistia no gris e no chuvisco, que são a
placenta de tudo que é aziago, informe e desconhecido. Era manhã e a recomendação médica estabelecia
internação irrevogável.
Então ela
ajeitou carinhosamente os volumes inéditos em uma arca, conferindo a ordem para
que não dessem trabalho a quem por Ventura os visitasse, em futuro próximo ou
não. Estava tudo lá, linha a linha, página por página, tudo devidamente
apontado e corrigido. Assim deveriam ser todos os espólios. Baixou a tampa,
apertou-a e impulsionou a arca para o mar de penumbra do quarto mal amanhecido.
Dobrou e
acondicionou na pequena valise as poucas roupas necessárias para a estada digna
no Hospital. Fechou-a. Ajeitou os óculos de aros redondos na face, calçou os
sapatos, vestiu o impermeável, trouxe a valise pela alça, apagou a lâmpada
pálida, abriu a porta, passou por ela, puxou-a até que encostasse no batente sem produzir palavra, que pensam? coisas também falam, olhando para a chave e depois
para o chão. O chuvisco na rua Coelho da Rocha era uma eloquência de pontos
finais, não os visse quem não quisesse, não esta, que sendo Ventura, nunca para a desventura fechou os olhos.
Os poemas e
outros escritos que ficaram na arca se salvariam, fossem quais fossem as
posteriores notícias, afinal, para tanto servem as arcas. Porém os que ficaram
na cabeça, os que se esvaíram durante o trajeto de pedras, os que penetraram a
neblina da agonia, esses se perderam para sempre, pois uma coisa é ter o coração para aventuras, outra, para adivinhações.
Mas ficaram
os rastros que, colhidos por Guazelli, comprovam a existência de mais uma
pessoa em Fernando: Susana Ventura. Esta, ciente dos riscos de Alice através do
espelho, não hesitou em colher dele um caco em que se mirar e, em forma de ensalmo evocatório,
proferir as palavras mágicas: Eu, Fernando Pessoa. Passe um anjo, diga amém, e viva para sempre esse novo caco agora não mais indescoberto.