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| Zé do Caixão: Morrer pode não ser o pior a acontecer a um cidadão. |
A primeira vez deve ter sido difícil e extremamente doloroso, afinal convencer-se de que você foi para o
beleléu por conta própria, por mão de terceiros ou por forças superiores ou inferiores não é coisa a ser mitigada. Mas depois devo ter me acostumado, porque nas vezes seguintes, nem sei quantas mais, acho que nem doeu
— se doeu, foi na hora, mas passou.
Quando morrer se torna fato trivial, a gente perde um pouco aquela ilusão, aquela fantasia, aquela dramaticidade. Ok, você diz, morri, bola pra frente. Então ocorre um lance engraçado, pois as pessoas que o empurram para a cova se sentem traídas, putas da vida mesmo, pelo fato de você não estar nem aí nem com elas, nem com suas traições, nem com sua própria morte. Sim, porque essas facadas simbólicas ou reais que lhe deram era para que você nunca mais se esquecesse de quem as deu. Mas qual era mesmo o nome de fulano ou fulana? E o de beltrano ou beltrana? Ixe, memória de morto é uma lástima, né não?
Você esticadão lá no velório, é divertido sacar a cara decepcionada de quem fuxicou sobre sua vida, lhe passou rasteira, lhe deu um empurrãozinho, ou vários, ou um belo tombo para o caixão. Aquela ali, contando piada e escondendo, como pode?, a frustração de não poder mais o sacanear, se rói de nervos só de olhar para sua cara de não tô nem aí com os ´pra lá de vivos de que o mundo está cheio.
Ela se aproxima, olha enviesado, dá a volta entre as velas, encara seu rosto azulado frente a frente — frente a frente não, de cima para baixo — em busca de um sinal que lhe dê o gostinho da vitória final, uma vez você está morto e embalado e ela, viva, mais viva do que nunca: vivíssima; mas... nada.
Ela vê mesmo, ou imagina, um começo de riso no canto da sua boca, enfia a mão na bolsa, tira um antiácido e corre para o bebedouro para, improvisando um copo com as mãos, engolir o pozinho que a salvará da queimação no estômago que você lhe proporcionou.
Morrer a primeira vez é a pior experiência pela qual se possa passar, mas vão por mim, depois que a gente se acostuma, se torna um vício, e já se espera mesmo ser esfaqueado pelas costas com certa ansiedade. O mais divertido é ver a cara de certos vivos (vivos até demais) nas nossas primeiras aparições post-mortem. Em suas caras a gente literalmente lê aquela enorme decepção e vontade de morrer. Porém, fica o aviso: morrer mais de uma vez não é para qualquer um, ou uma, se caso for. Nana nina nana. Requer compostura, discrição, profissionalismo — e não admite improvisos ou amadores.