quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

CRÔNICAS CARIOCAS — Tudo está bem quando acaba bem

Meu amigo, orgulho da vila Ede, foi convidado a palestrar na cidade maravilhosa, tudo pago, incluso o cachê, que se não fez jus a seu enorme merecimento, ficou dignamente dentro dos valores praticados pelo mercado.

Artista plástico, professor e curador requisitado por museus, galerias e instituições congêneres, sua atuação foi como relatou Júlio César num outro tempo, num outro lugar, em relação a outras batalhas: foi, viu, venceu.

Fazendo o famoso bate-volta São Paulo - Rio de Janeiro, foi de  Uber até Congonhas, embarcou pela ponte aérea direto ao Santos Dumont, onde um carro da promotora do evento o aguardava e, chegando a seu destino, proferiu palavras cheias de calor e verdade a uma plateia atenta e feliz com a proximidade do Natal.

Desincumbido de sua tarefa, sobrou-lhe tempo para dar suas pernadas pelo centro do Rio. Pelo que depreendi de sua fala, passou ao lado da Colombo e nem se deu conta, tendo ido dar por distração em uma casa de chá gurmê, onde degustou uma infusão divina de pitanga que lhe custou os tubos  — o que repercutiu mal em seu digno pró-labore ainda por vir.

Agarrado à sua valise, com medo de ser assaltado na Uruguaiana, ajeitando os óculos sobre o nariz, como todo curador de museu que se preza, quebrou à esquerda, deu uns passos rápidos e ingressou, pingando de suor, no Real Gabinete Português de Leitura, no interior do qual enxugou a face negra de profusas barbas brancas com um refrescante lencinho de papel fragrância limão que sacou do bolso — primeiro tirou o lenço da embalagem, fique bem entendido.

Depois, bateu várias fotos das estantes de livros com seu celular — mas também fique bem entendido que antes descartou o lencinho numa lixeira próxima, porque constatou que fotografar com o lenço úmido em uma das mãos estava enchendo saco. Por fim, usou o mesmo celular para chamar um Uber de volta ao aeroporto.

Chegou ao Santos Dumont com antecedência e, maravilha das maravilhas, conseguiu embarcar e partir antes do previsto, de sorte — se é que o que sobrevirá pode  assim ser chamado — que chegou a São Paulo ainda mal terminara a tarde, matutando, durante o voo rápido da ponte aérea, que seu estado de alerta pelas ruas do Rio não fazia sentido, tendo mais a ver com as notícias sensacionalistas da TV do que com a realidade carioca, em que o único assalto presenciado ficou sendo o preço do chá.

No aeroporto de Congonhas, tomou um táxi para a estação Santa Cruz do Metrô, onde desceu e, antes que alcançasse a entrada, foi inapelavelmente assaltado. Por sorte —  essa palavra que pela segunda vez comparece ambiguamente nesta crônica —, disse ele, não levaram documentos, só uns trocados em espécie, a carteira e o cartão do banco, inócuo para os bandidos pois seu saldo estava estourado e o cachê ainda não fora depositado.

Apressados, os bandidos esqueceram-se de levar o celular, pelo qual ele prontamente acionou o banco, que bloqueou o cartão roubado e emitiu um novo —  que ele inaugurou, aliás, pagando sua metade da conta no bar, em que fizemos troca de presentes de nossos sessenta anos de idade e de amigo secreto de Natal.

E fica explicado com este final feliz o título shakespeariano desta crônica — Melhor Shakespeare da comédia do que do drama, ao menos neste caso — disse ele, duplamente vítima: do episódio infausto e desta crônica.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).


sábado, 16 de dezembro de 2023

CRÔNICA — Cena urbana


A caminho do trabalho, logo pela manhã, fui atraído por uma altercação. Do outro lado da avenida, homem e mulher, ambos na casa dos cinquenta anos de idade, do um metro e cinquenta de altura e da compleição rechonchuda, trocavam cobras e lagarto à vista e aos ouvidos de todos.

Separados de mim e da restante plateia deste lado da via pelo fluxo intenso do trânsito, só chegavam a nós, seccionadas pelo ruído dos automóveis, fragmentos de palavras, cujos pedaços faltantes poderiam ser deduzidos sem esforço, graças aos gestos inequívocos e um tanto teatrais do casal  eram um casal, como se verá ao fim.

Entrei no bar, pedi o de sempre para aquela hora da manhã e tomei um lugar estratégico para acompanhar o bate-boca, que se degenerasse em agressão física exigiria a minha pronta intervenção, bem como a de meus vizinhos de balcão, uns apreensivos, outros curiosos, a maioria divertindo-se à beça com a situação.

Foi então que notei ao pé da entrada do bar um simpático vira-lata branco com manchas pretas aleatórias pelo corpo, cabeça e patas, comodamente sentado de costas para nós, as orelhas em pé, inicialmente, a observar os briguentos. Ofereci a ele metade de meu pão com manteiga, que ele aceitou sem se fazer muito humilde e que comeu devagar, sem tirar os olhos da cena que também o atraíra àquele ponto da cidade.

Como o entrevero não piorasse nem melhorasse, entrando naquele platô de previsibilidade um tanto desinteressante, cuidei do meu café por instantes. Ao observar novamente o cão, notei que também nele o interesse no conflito decaíra. Suas orelhas estavam lassas e sua cabeça acompanhava distraída o ir e vir de dos autos.

Levantei-me, paguei a conta e caminhei, parando ao lado do pintado, que aliás tinha coleira, pelos limpos e excelente aspecto. Ele apontou o focinho para os briguentos do outro lado da via e voltou para mim seu olhar significativo, como quem diz "Não vai dar em nada". Então, levantou-se e foi-se, abanando a cauda, feliz talvez com o resultado do conflito.

Vi-o sumir na esquina mais próxima, entre pernas de gente e fumaça de escapamentos de carros.  Tive ocasião de observar no outro lado da via a dona dar o último pito no homem, que desta vez não retrucou e flexionou o braço, oferecendo-o a ela. Esta, aceitou, opiniosa mas satisfeita, e meteu o seu no dele. Os braços dados, os dois seguiram pela calçada apinhada de gente, apressados em alcançar a entrada do metrô.

Nesse momento, um pensamento entre poético e bizarro me ocorreu: tivera eu também cauda, ela estaria rindo como à do simpático vira-lata de há pouco, que, como eu, parou ali só para assistir ao desenrolar da cena urbana, cujo desfecho feliz cada qual aplaudiu a seu modo.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).

CRÔNICA — Ninguém atire a primeira pedra contra as asneiras

Quem é capaz de impedir alguém de cometer asneiras? Conheci poucos   se é mesmo que conheci algum. E e os que se lambuzaram nelas? Perdi a conta, na qual me incluo, sem orgulho, mas, confesso, lamentando as vezes em que não deram certo.

O perigo das asneiras é que, envolvendo alto risco, às vezes, funcionam. E quando funcionam, viciam mais do que qualquer viciado pode sequer imaginar.

As asneiras, quando dão com os burros n'água, são uma santa vacina contra impulsos avassaladores, porém, quando ocorre de colherem bons resultados, por meios sempre para lá de duvidosos, acionam na psique  para não dizer em nosso diabinho interior  um mecanismo pernicioso de repetição neurótica de busca, a qualquer custo, do prazer  pronto, mencionei a palavra que não deveria e que, pudesse, omitiria até o fim. 

A verdade é que toda asneira causa prazer, mesmo as que acabam mal. Aliás, acabar mal ou bem é contingência, provocar excitação e prazer, não: é batata! Os religiosos deram à asneira um nome ainda mais sugestivo: tentação. Quem mantém suas tentações à rédea curta sabe no que podem resultar, quando elas escapam: penitência, purgatório ou inferno  ou os três, um na sequência do outro. Perdão, pura e simplesmente, está fora de questão.

Ninguém em sã consciência quer o inferno. Porém, quanto à penitência e ao purgatório, avaliadas as circunstâncias ou a famigerada relação custo-benefício, não há quem não esteja disposto a entrar na fila   e muitas vezes sem avaliação nenhuma, apenas sob o impulso pernicioso e irresistível de sentir aquele de friozinho na barriga.

A verdade crua e nua, nessa ordem, é que, dessas três consequências aziagas das asneiras, duas valem a pena, compensam o risco, balançam nossa escala de valores porque, se estão a meio caminho da danação, também estão à meia distância da salvação. Noutras palavras, se o copo está meio vazio, está meio cheio também. E a relação custo-benefício no mínimo empata. E quem não arrisca não petisca. E ninguém segura quem quer pecar, principalmente se o pecado não levar direto ao inferno sem as duas escalas anteriores.

Antes que me acusem de cínico e partidário da prática indiscriminada de asneiras, ofereço ao leitor esta crônica como aquele outro    de quem sigo o exemplo na santa parábola   , que estendeu a mão e ofereceu a primeira pedra aos fanáticos em lapidação.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).