sábado, 16 de dezembro de 2023

CRÔNICA — Ninguém atire a primeira pedra contra as asneiras

Quem é capaz de impedir alguém de cometer asneiras? Conheci poucos   se é mesmo que conheci algum. E e os que se lambuzaram nelas? Perdi a conta, na qual me incluo, sem orgulho, mas, confesso, lamentando as vezes em que não deram certo.

O perigo das asneiras é que, envolvendo alto risco, às vezes, funcionam. E quando funcionam, viciam mais do que qualquer viciado pode sequer imaginar.

As asneiras, quando dão com os burros n'água, são uma santa vacina contra impulsos avassaladores, porém, quando ocorre de colherem bons resultados, por meios sempre para lá de duvidosos, acionam na psique  para não dizer em nosso diabinho interior  um mecanismo pernicioso de repetição neurótica de busca, a qualquer custo, do prazer  pronto, mencionei a palavra que não deveria e que, pudesse, omitiria até o fim. 

A verdade é que toda asneira causa prazer, mesmo as que acabam mal. Aliás, acabar mal ou bem é contingência, provocar excitação e prazer, não: é batata! Os religiosos deram à asneira um nome ainda mais sugestivo: tentação. Quem mantém suas tentações à rédea curta sabe no que podem resultar, quando elas escapam: penitência, purgatório ou inferno  ou os três, um na sequência do outro. Perdão, pura e simplesmente, está fora de questão.

Ninguém em sã consciência quer o inferno. Porém, quanto à penitência e ao purgatório, avaliadas as circunstâncias ou a famigerada relação custo-benefício, não há quem não esteja disposto a entrar na fila   e muitas vezes sem avaliação nenhuma, apenas sob o impulso pernicioso e irresistível de sentir aquele de friozinho na barriga.

A verdade crua e nua, nessa ordem, é que, dessas três consequências aziagas das asneiras, duas valem a pena, compensam o risco, balançam nossa escala de valores porque, se estão a meio caminho da danação, também estão à meia distância da salvação. Noutras palavras, se o copo está meio vazio, está meio cheio também. E a relação custo-benefício no mínimo empata. E quem não arrisca não petisca. E ninguém segura quem quer pecar, principalmente se o pecado não levar direto ao inferno sem as duas escalas anteriores.

Antes que me acusem de cínico e partidário da prática indiscriminada de asneiras, ofereço ao leitor esta crônica como aquele outro    de quem sigo o exemplo na santa parábola   , que estendeu a mão e ofereceu a primeira pedra aos fanáticos em lapidação.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).



CRÔNICA — Grosseria nossa de cada dia

Na estação Brás é um pouco pior.

Outro dia, embarcando em um trem da CPTM rumo à estação Estudantes, não pude deixar de me surpreender com a educação dos usuários. Eu estava à frente da fila, não, melhoremos isso, do amontoado de gente apinhada no ponto de abertura da porta que me dizia respeito da plataforma. Ilusão minha, achei que os primeiros seriam os primeiros.

Tão logo o trem parou e abriu as portas, nós, os primeiros, fomos atropelados pela educação de quem vinha atrás, todos alucinados por tomar um lugar em um dos assentos, todos vazios, pois a composição vinha do pátio de manobras direto para primeira estação da linha, a da Luz — confesso que na estação Brás é um pouco pior, pois ali, mesmo no primeiro horário, ainda da madrugada, os assentos minguam.

Havia tantos lugares disponíveis que nós, os primeiros, agora os últimos, encontramos bons lugares para nos sentarmos. De pé, cada qual em seu vagão, com ares perplexos, escolhemos ao lado de quem estaríamos dispostos a dividir nosso tempo de viagem, conscientes de que, qualquer que fosse a escolha, ela recairia sobre alguém suficientemente grosseiro a ponto de passar por cima de quem quer que estivesse à sua frente para alcançar um assento vazio.

Busquei um lugar ao lado de uma senhora magra, pois a experiência de viajar ao lado de pessoas grandes e gordas não me deixou boas lembranças, eu, que, pequeno por princípio, mirrado por ruindade e esmagável — e atropelável — por educação, sofro horrores antes de reclamar com gente grosseira e folgada.

Sentei-me, saquei um livro do Luís Fernando Veríssimo da mochila e mergulhei na leitura, que logo foi perturbada por um camelô que se esgoelava no pregão de seu produto. Até a última estação, um exército deles se revezou aos berros à minha frente, sim, porque eu me acomodara em um banco votado para o corredor do vagão.

Minha leitura, assim, ficou picotada, espremida entre os pregões dos venderes ambulantes, que intercalavam sua propaganda com queixumes contra os seguranças, que insistiram em persegui-los, e pedidos para que Deus tocasse no coração dos usuários e os fizesse comprar seus produtos. Até que a senhora magra que me coube sacou da bolsa o telefone celular e desandou a falar, não discutir, não vociferar com outra dona do outro lado da ligação em volume que faria os pregões dos camelôs parecerem suaves noturnos de Chopin.

Até desistir por completo da leitura, estraga, pisoteada, vilipendiada, fiquei sabendo do resultado de todos os exames médicos dela, e ainda dos desgostos que a filha lhe proporcionava e da falta de caráter dos homens, que não valem nada e só querem saber de sexo.

Desisti, guardei o livro, alcancei meu celular na mochila, escolhi um aplicativo de música, selecionei em modo repetição a Lacrimosa, de Mozart, acionei os fones de ouvido no volume máximo, recostei no encosto do banco e só abri os olhos, despertado de meu transe, na estação final, onde as pessoas se atropelaram para atravessar na frente das demais a porta da composição mais próxima da saída, com todas as demais relativamente vazias.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).

Ouvir e falar: a fronteira final para o aprendiz de um novo idioma


Para quem busca adquirir um segundo idioma, sem se estar em terras em que ele vigora, ler e escrever não chega a ser um grande problema, desde que se domine bem a própria língua materna e, de meu estrito ponto de vista, esse segundo idioma seja uma das línguas neolatinas ou o inglês. Pena-se para se compreender a morfologia, o vocabulário e a sintaxe, porém sente-se o progresso ao longo do estudo e, ao cabo de um ano de empenho, alguma segurança e independência na leitura e na escrita já se observa.

Porém, no que tange à audição e à conversação, o cenário muda substancialmente. O progresso aí é lento e as conquistas, mínimas. A articulação audição-fala, no mais das vezes, se mostra escorregadia e, nesse binômio, a audição é que se mostra mais desafiadora. Identificar no continuum sonoro os signos linguísticos encadeados num fluxo e cadência típicos do idioma enche o coração do aprendiz da mais profunda sensação de fracasso.

Se o registro escrito permite o acesso ao dicionário para compor o sentido de um discurso ou texto em língua estrangeira, a natureza imediata da fala ergue-se como obstáculo intransponível para o iniciante — e mesmo para estudantes de nível intermediário , que se perdem ao ouvir uma ou outra palavra familiar em meio a um fluxo avassalador de sons incompreensíveis.

Por essa razão, tenho comigo que, em se tratando de aquisição de um novo idioma, ouvir clara e falar fluentemente é a fronteira final.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).