sábado, 16 de dezembro de 2023

CRÔNICA — Grosseria nossa de cada dia

Na estação Brás é um pouco pior.

Outro dia, embarcando em um trem da CPTM rumo à estação Estudantes, não pude deixar de me surpreender com a educação dos usuários. Eu estava à frente da fila, não, melhoremos isso, do amontoado de gente apinhada no ponto de abertura da porta que me dizia respeito da plataforma. Ilusão minha, achei que os primeiros seriam os primeiros.

Tão logo o trem parou e abriu as portas, nós, os primeiros, fomos atropelados pela educação de quem vinha atrás, todos alucinados por tomar um lugar em um dos assentos, todos vazios, pois a composição vinha do pátio de manobras direto para primeira estação da linha, a da Luz — confesso que na estação Brás é um pouco pior, pois ali, mesmo no primeiro horário, ainda da madrugada, os assentos minguam.

Havia tantos lugares disponíveis que nós, os primeiros, agora os últimos, encontramos bons lugares para nos sentarmos. De pé, cada qual em seu vagão, com ares perplexos, escolhemos ao lado de quem estaríamos dispostos a dividir nosso tempo de viagem, conscientes de que, qualquer que fosse a escolha, ela recairia sobre alguém suficientemente grosseiro a ponto de passar por cima de quem quer que estivesse à sua frente para alcançar um assento vazio.

Busquei um lugar ao lado de uma senhora magra, pois a experiência de viajar ao lado de pessoas grandes e gordas não me deixou boas lembranças, eu, que, pequeno por princípio, mirrado por ruindade e esmagável — e atropelável — por educação, sofro horrores antes de reclamar com gente grosseira e folgada.

Sentei-me, saquei um livro do Luís Fernando Veríssimo da mochila e mergulhei na leitura, que logo foi perturbada por um camelô que se esgoelava no pregão de seu produto. Até a última estação, um exército deles se revezou aos berros à minha frente, sim, porque eu me acomodara em um banco votado para o corredor do vagão.

Minha leitura, assim, ficou picotada, espremida entre os pregões dos venderes ambulantes, que intercalavam sua propaganda com queixumes contra os seguranças, que insistiram em persegui-los, e pedidos para que Deus tocasse no coração dos usuários e os fizesse comprar seus produtos. Até que a senhora magra que me coube sacou da bolsa o telefone celular e desandou a falar, não discutir, não vociferar com outra dona do outro lado da ligação em volume que faria os pregões dos camelôs parecerem suaves noturnos de Chopin.

Até desistir por completo da leitura, estraga, pisoteada, vilipendiada, fiquei sabendo do resultado de todos os exames médicos dela, e ainda dos desgostos que a filha lhe proporcionava e da falta de caráter dos homens, que não valem nada e só querem saber de sexo.

Desisti, guardei o livro, alcancei meu celular na mochila, escolhi um aplicativo de música, selecionei em modo repetição a Lacrimosa, de Mozart, acionei os fones de ouvido no volume máximo, recostei no encosto do banco e só abri os olhos, despertado de meu transe, na estação final, onde as pessoas se atropelaram para atravessar na frente das demais a porta da composição mais próxima da saída, com todas as demais relativamente vazias.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).

Ouvir e falar: a fronteira final para o aprendiz de um novo idioma


Para quem busca adquirir um segundo idioma, sem se estar em terras em que ele vigora, ler e escrever não chega a ser um grande problema, desde que se domine bem a própria língua materna e, de meu estrito ponto de vista, esse segundo idioma seja uma das línguas neolatinas ou o inglês. Pena-se para se compreender a morfologia, o vocabulário e a sintaxe, porém sente-se o progresso ao longo do estudo e, ao cabo de um ano de empenho, alguma segurança e independência na leitura e na escrita já se observa.

Porém, no que tange à audição e à conversação, o cenário muda substancialmente. O progresso aí é lento e as conquistas, mínimas. A articulação audição-fala, no mais das vezes, se mostra escorregadia e, nesse binômio, a audição é que se mostra mais desafiadora. Identificar no continuum sonoro os signos linguísticos encadeados num fluxo e cadência típicos do idioma enche o coração do aprendiz da mais profunda sensação de fracasso.

Se o registro escrito permite o acesso ao dicionário para compor o sentido de um discurso ou texto em língua estrangeira, a natureza imediata da fala ergue-se como obstáculo intransponível para o iniciante — e mesmo para estudantes de nível intermediário , que se perdem ao ouvir uma ou outra palavra familiar em meio a um fluxo avassalador de sons incompreensíveis.

Por essa razão, tenho comigo que, em se tratando de aquisição de um novo idioma, ouvir clara e falar fluentemente é a fronteira final.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).


sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

O coletivo assaltado pelo indivíduo

Narciso (1594-96). Michelangelo Caravaggio.

Há uma tendência de se personificar na figura de um indivíduo o sucesso coletivo. Mesmo quando não há um indivíduo que se destaque significativamente do grupo, impera a cultura do individualismo. Por trás dessa prática reside uma ideologia ultraindividualista que visa não reconhecer os méritos do indivíduo com desempenho indiscutivelmente superior, mas, antes, legitimar a si própria.

Essa ideologia elege não exatamente o indivíduo vencedor como seu símbolo, mas, sim, o indivíduo que se apropria dos melhores resultados individuais e coletivos. Ao reputar a um único indivíduo o sucesso de todos, essa ideologia legitima na verdade uma forma escandalosa de roubo. E de tal modo encontra-se naturalizada e institucionalizada essa ideologia, que causa espanto um atleta, artista ou líder remeter ao coletivo os méritos de seu sucesso individual — e mesmo quando isso ocorre, o entorno apressa-se a enfatizar o papel desse indivíduo, acrescentando-lhe além de todos os méritos do sucesso coletivo, o predicado da modéstia.

Muito antes do triunfo do individualismo, o humanidade conviveu com indivíduos "fora de série". Sábios, sacerdotes, guerreiros, aventureiros, líderes, artistas — de ambos os sexos — permeiam as histórias dos povos desde suas eras mais remotas. Alguns tornaram-se lendas; outros, heróis ou mártires; outros, ainda, deuses, mitos ou santos.

Assim, ao personificar em um indivíduo um sucesso coletivo, essa ideologia rouba do indivíduo sua real participação no triunfo, rouba do coletivo seus imensos esforços — e rouba de ambos o bem mais precioso: a verdade.

Em todos as esferas da vida sob o império do capitalismo, essa ideologia promove uma verdadeira caça ao símbolo da superioridade e primazia do indivíduo que sabe "aproveitar a oportunidade" e se apropriar dos esforços alheios, seja para enriquecimento próprio, seja para autopromoção. Porém, é nos meios de comunicação de massa que ela encontra seu templo sagrado e seu altar de glória, incluídos aqui a Internet e as redes sociais.

Nos meios de comunicação de massa o narcisismo atingiu um ponto cuja superação é difícil sequer imaginar. Neles, o culto do eu, da autoimagem, das fantasias narcísicas tornaram-se uma verdadeira pandemia que, como toda patologia coletiva, transmissível e fora do controle, enche hospitais, clínicas e consultórios de saúde mental— e faz a fortuna astronômica dos bilionários das novas tecnologias de informação e da indústria de fármacos.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).