sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Clichê: um cuco parasita

 A ideia de não nutrir expectativas para se evitar frustrações é acentuadamente narcisista. Por detrás da atitude de não se esperar nada de bom de ninguém nem do futuro reside eloquente a megalomania. Quem assim encara a vida é como se dissesse: ninguém nem nada estaria a altura de meu ego. Aliado a essa megalomania está um pessimismo patológico em relação à própria vida, insuficiente para preencher o saco sem fundo dos desejos íntimos fortemente reprimidos.

Não é difícil entrever nessa postura frente ao mundo o seu exato oposto: desejo tanto que me amem e que o futuro me receba em um abraço cheio de afeto que não suporto sequer o risco de desejar, então reprimo e e rejeito o que na realidade desejo ao extremo.

Logicamente, quem age assim escolhe um clichê como mecanismo falho de defesa. Falho porque, obviamente, declarar falta de expectativas é já admitir não que elas sejam inócuas, mas que  o sofrimento que a frustração pode causar é, para um ego mal estruturado, insuportável. Bem observado, o clichê, aqui, mais do que uma declaração verdadeira, é um pedido envergonhado de ajuda — e ninguém pede ajuda se não está necessitando.

Na verdade, não nutrir expectativas em relação a nada e ninguém corresponde a se estar transido por impulsos autodestrutivos — numa perspectiva freudiana, pulsões de morte —, caso em que o desânimo reside não em uma realidade potencialmente pouco alvissareira, mas no próprio âmago do indivíduo, o que configura um sintoma neurótico.

Porém, um outro aspecto incide: o de que quem assim sente e assim pensa, embora grite por ajuda, ainda que por meio de um mal disfarçado clichê, busca aprovação externa de seu sentir e seu pensar, noutras palavras, busca, contraditoriamente, concordância e aprovação de outro sujeito para a neurose de que, lá no íntimo, na verdade, quer se ver livre.

Clichês como esse circulam em escala assombrosa pelas redes sociais, e quem os emprega não passa por uma peneira, mesmo grosa, de sinceridade. Por sob clichês peremptórios como esse, reside a mágoa, a ferida mal cicatrizada, ou às vezes ainda exposta, da frustração e da perda.

Não há chance para o indivíduo que assim age encontrar paz interior enquanto não deitar fora o clichê e assumir de uma vez seu sofrimento íntimo, só superável se encarado sem mecanismos de defesa, cuja função, ao fim e ao cabo, é preservar a própria ferida emocional, cuja dor oferece algum prazer, ainda que mórbido, como forma de compensação — e livrar-se dessa ferida e dessa dor implicaria em abrir mão também dessa compensação, sempre de natureza afetiva.

Como um filhote de cuco em ninho alheio, o problema do clichê, assumido pelo indivíduo como simulacro, é que ele toma lugar de manifestações verdadeiras, e atira para fora do ninho aquilo de que o indivíduo necessita para superar seu estado neurótico.

Nessa configuração, o cliché é — como o filhote de cuco atirando para fora do ninho e para a morte os filhotes verdadeiros — um parasita que, manifesto na linguagem, aloja-se na psique, alimentando-se da ferida emocional e da dor do indivíduo. Enquanto não se expulsar do ninho esse parasita, o ciclo neurótico não se rompe e, pelo contrário, se intensifica.


Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).




quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Literatura enquanto fonte

 O estudo da literatura se justifica por si só, uma vez que ela tem relevância e prestígio em todas as sociedades que desenvolveram a escrita, porém seu estudo se justifica também por muitas outras razões exteriores a ela. Trato aqui apenas de uma dessas razões exteriores, qual seja: a literatura enquanto fonte de outras ciências.

As narrativas literárias nos permitem aferir o clima cultural de uma época, suas características dominantes e contra-hegemônicas, suas temáticas mais frequentes, sua sensibilidade, sua religiosidade, suas relações sociais, políticas, econômicas e de poder, suas classes e ideologias em conflito etc. Isso também poderia, e é, alcançado por outras ciências, porém de forma sempre parcial, porque cada qual realiza seu recorte específico da realidade, segmentando-a e enfocando-a a partir de seu exclusivo e estrito ponto de vista. 

A literatura, diferentemente, reconstitui simbolicamente a vida e as experiências humanas de forma mais integral, e oferece a oportunidade de imersão  no coração de simulações as mais amplas, complexas, ricas e profundas possíveis, a depender do engenho do artista.

Karl Marx, considerado hoje um dos pais da sociologia,  afirmava que A Comédia Humana, conjunto da obra de Honoré de Balzac (1799-1950) fora para ele mais importante em sua análise da sociedade francesa do que os muitos estudos de economia, história e filosofia por ele visitados. Seu companheiro de jornada, Friedrich Engels, afirmou em carta a Margareth Harkness (1888) ter aprendido com Balzac "mais do com todos os historiadores, economistas e estatísticos profissionais do período". Noutras palavras, dois dos mais importantes estudiosos das relações sociais, econômicas e de poder do século XIX encontraram na literatura fonte legítima para suas pesquisas, reflexões e formulações, que repercutiriam ao longo do século XX na forma de revoluções socialistas pelo mundo todo.

Razões externas ao estudo da literatura são abundantes, porque não há campo da atividade humana que não tenha sido visitado por escritores, dramaturgos e poetas. História, geografia, sociologia, filosofia, religião, mas também matemática, física, química, astronomia, entre outras, têm lugar na escrita ficcional, na poesia e no teatro desde que o código escrito foi inventado, seja porque os autores houveram por bem tratar dessas dimensões da vida, seja porque os próprios autores muitas vezes eram matemáticos, físicos, médicos, astrônomos etc., evento bastante comum tanto na história da literatura quanto na história das ciências.

Fiquemos no exemplo de Galileu Galilei, que, para expor seu ponto de vista científico, em Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundo (1632), empregou o artifício da narrativa ficcional. Nesse livro, o diálogo acontece entre três personagens: Salviati, defensor do modelo de Copérnico; Simplício, defensor do modelo geocêntrico adotado pela Igreja, e Sagredo, no papel de mediador imparcial. O livro foi divido em jornadas (quatro) , como o Decamerão (1348-53), de Giovanni Boccaccio , e o Pentamerão (1778), de Giambattista Basile.

Sobre Freud, deixo que fale Luiz Zanin Oricchio: 

Ao longo de sua carreira, Freud escreve múltiplos artigos que tomam obras literárias como pontos de partida para reflexões psicanalíticas. Basta lembrar do famoso Complexo de Édipo, inspirado na tragédia de Sófocles. Ou do tema do parricídio, que toma como ponto de partida a leitura de Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski. Há textos sobre autores hoje menos famosos, como Delírios de Sonhos na Gradiva de Jensen. E ensaios até hoje estimulantes sobre a arte, em diversos aspectos, como O Estranho (Das Unheimliche) e O Poeta e a Fantasia.

 Por que Freud cita mais autores literários que autoridades científicas em sua vasta obra (reunida em 24 volumes)? Bem, há motivos para afirmar que ele não procurava nas literatura a confirmação de suas teorias, mas, pelo contrário, eram as obras literárias que lhe davam "dicas" preciosas de como prosseguir por caminhos obscuros.

Em algumas ocasiões, chegou a escrever que os artistas chegavam antes, e de maneira mais profunda, à realidade psíquica a que ele, trabalhosamente, tentava aceder por seu trabalho clínico e de reflexão. Era como se o artista "antecipasse" realidades que apenas depois, e de outra maneira, o cientista iria alcançar. (In "Análise: Literatura era a arte que mais tocava Sigmund Freud") .

As justificativas para o estudo da literatura exteriores a ela são certamente infinitas, porém não me causa espanto o desinteresse pela leitura ficcional, pela poesia e pelo teatro que observo em profissionais especializados, do nível mais modesto ao mais elevado. A visão integral e humanista que a literatura oferece choca-se com o projeto de ser humano vigente, cuja essência é a fragmentação social ao extremo, a alienação total e o ultra-individualismo narcísico.

Fico por aqui. Se convenci — o que não era a intenção —, muito bem. Se não convenci: amém.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Pulsão de vida, o outro nome da Esperança

 

As razões para que uma pessoa busque auxílio de um psicanalista são as mais variadas, porém, todas envolvendo sofrimentos em relação aos quais ela se sente fragilizada, insuficiente ou mesmo impotente. No entanto, convém considerar com atenção a particularidade de que essa procura, quando voluntária — e somente quando voluntária —, reflete um movimento interior de pulsão de vida, em que ela busca organizar-se psíquica e emocionalmente para enfrentar suas próprias dores, identificando no profissional a figura mais adequada para ajudá-la.

Em si, essa iniciativa voluntária de buscar o apoio de um profissional especializado já é um passo importante do paciente em sua luta pelo restabelecimento da saúde emocional e de seu equilíbrio psíquico. E por quê?

Aqui, cabem inúmeras razões, mas convém destacar algumas das principais.

A primeira delas envolve considerações de ordem social. Não consiste novidade que as doenças ou transtornos psíquicos, mentais e emocionais são alvo de preconceito às vezes explícitos, às vezes velados. Esses preconceitos nos apanham ainda na infância e, por repetição dos outros e falta de estudo e reflexão de nós mesmos, repousam em nossa estrutura afetiva e moral como um pó pegajoso que se acumula ao longo dos anos.

Desta forma, quando uma pessoa busca voluntariamente um psicanalista, com certeza empreendeu enormes energias emocionais e intelectuais para remover de seu espírito esse pó pegajoso do preconceito — esforço que só se completará, de verdade, se ela vir no processo de análise resultados efetivos, ainda que parciais e demorados.

Ocorre que, para vencer o preconceito — esse ovo de serpente depositado em sua psique e em sua estrutura moral —, a pessoa teve que desenvolver em si mecanismos intelectuais internos bastante sofisticados e poderosos, uma vez que a pressão do preconceito, crônica, constante e extremamente opressora, ocorre não apenas de fora para dentro (dos outros contra mim), mas principalmente, uma vez que ele se encontra alojado e arraigado, de dentro para dentro (ou seja, de mim contra mim mesmo). Quando uma pessoa liga para um psicanalista e agenda uma entrevista, embora ainda residual e perigos, o preconceito internalizado está com os dias contados — depois de ter feito essa pessoa retardar em demasia a busca por um direito básico: o direito à saúde, no caso, psíquica, emocional, mental.

Essa busca voluntária de ajuda de um profissional especializado tem outra razão auspiciosa, a saber.

Na luta por enfrentar seus sofrimentos psíquicos, emocionais, mentais, a pessoa se bombardeia com perguntas, algumas das quais responde com facilidade, mas em relação à maioria das quais ou não encontra resposta adequada, ou simplesmente não encontra resposta. Nessa atividade introspectiva, nesse esforço intelectual por alívio, a pessoa desenvolve um certo autoconhecimento. Nesse caso, a busca pelo psicanalista reflete um alto grau de consciência: a de que, sozinho, não logrará sucesso em sua luta — noutras palavras, reconhece os limites de suas ações, sua própria insuficiência e a importância do outro em sua jornada de luta pela vida, porque, a final de contas, é disso que se trata.

Esse simples ato de ligar para um psicanalista e agendar uma entrevista tem também outro significado auspicioso.

Seguramente, antes de realizar essa ligação telefônica ou esse contato por WhatsApp, a pessoa que busca recuperar a paz de espírito, o equilíbrio emocional, refletiu muito sobre as muitas alternativas.

A conveniência de abrir seus problemas a uma pessoa de confiança terá sido considerada. Porém, qual pessoa de confiança em seu círculo de amizades estaria em condições de ajudar? Que riscos haveria nessa alternativa? Qual a possibilidade de essa ajuda não especializada resultar em conflitos internos e externos ainda maiores?

A busca por sacerdotes de diversas religiões também terá sido considerada, em primeiro lugar, a da própria, mas é comum, em esta não “funcionando”, outras serem procuradas. Quanto tempo será despendido entre essa busca por solução religiosa a sofrimentos emocionais, psíquicos e mentais, à busca de um profissional especializado nesses transtornos? Tanto mais quando não há contradição entre ser religioso e buscar um psicanalista, ou um psicólogo — ou um cardiologista, um endócrino etc.

Assim, numa metáfora, ao agendar uma primeira entrevista com um psicanalista, a pessoa, um tanto pelo método de tentativa e erro, cogitou e tentou uma montanha de alternativas anteriores, de sorte que essa iniciativa é fruto de uma decantação prolongada — às vezes prolongada demais, com os prejuízos que essa demora implica.

Há outras razões muito auspiciosas implicadas na simples inciativa de buscar um psicanalista, porém a principal, entre todas é, sem dúvida, a de que o ato de buscar ajuda especializada para superar um tormento emocional, psíquico ou mental reflete uma pulsão de vida muito forte, que se contrapõe à pulsão de morte suscitada pelo sofrimento de que quer livrar-se.

Em certo sentido, é uma espécie de manifesto da pessoa em favor da vida, da própria vida — um “automanifesto”, cuja principal deliberação é mover-se energicamente contra os mecanismos de morte que operam sem controle dentro de si, e que precisam ser neutralizados e desmontados — mas não sem ajuda.

Essa deliberação consciente em favor da vida, da própria vida, resulta dessa pulsão mais profunda e inconsciente, que é uma energia mais poderosa do que o que Vinicius de Moraes, em Mensagem à Poesia, chamou “forças do abismo que pesam sobre mim”.

Com a devida licença do poeta, poderíamos chamar essa pulsão de vida que move a pessoa a cuidar-se com ajuda de um psicanalista, daquilo que ele faz ressoar em seus versos no mesmo poema: esperança.

Assim, uma pessoa que busca um psicanalista voluntariamente está cheia de dor, mas, também, ainda em maior proporção, de ESPERANÇA!