terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Pulsão de vida, o outro nome da Esperança

 

As razões para que uma pessoa busque auxílio de um psicanalista são as mais variadas, porém, todas envolvendo sofrimentos em relação aos quais ela se sente fragilizada, insuficiente ou mesmo impotente. No entanto, convém considerar com atenção a particularidade de que essa procura, quando voluntária — e somente quando voluntária —, reflete um movimento interior de pulsão de vida, em que ela busca organizar-se psíquica e emocionalmente para enfrentar suas próprias dores, identificando no profissional a figura mais adequada para ajudá-la.

Em si, essa iniciativa voluntária de buscar o apoio de um profissional especializado já é um passo importante do paciente em sua luta pelo restabelecimento da saúde emocional e de seu equilíbrio psíquico. E por quê?

Aqui, cabem inúmeras razões, mas convém destacar algumas das principais.

A primeira delas envolve considerações de ordem social. Não consiste novidade que as doenças ou transtornos psíquicos, mentais e emocionais são alvo de preconceito às vezes explícitos, às vezes velados. Esses preconceitos nos apanham ainda na infância e, por repetição dos outros e falta de estudo e reflexão de nós mesmos, repousam em nossa estrutura afetiva e moral como um pó pegajoso que se acumula ao longo dos anos.

Desta forma, quando uma pessoa busca voluntariamente um psicanalista, com certeza empreendeu enormes energias emocionais e intelectuais para remover de seu espírito esse pó pegajoso do preconceito — esforço que só se completará, de verdade, se ela vir no processo de análise resultados efetivos, ainda que parciais e demorados.

Ocorre que, para vencer o preconceito — esse ovo de serpente depositado em sua psique e em sua estrutura moral —, a pessoa teve que desenvolver em si mecanismos intelectuais internos bastante sofisticados e poderosos, uma vez que a pressão do preconceito, crônica, constante e extremamente opressora, ocorre não apenas de fora para dentro (dos outros contra mim), mas principalmente, uma vez que ele se encontra alojado e arraigado, de dentro para dentro (ou seja, de mim contra mim mesmo). Quando uma pessoa liga para um psicanalista e agenda uma entrevista, embora ainda residual e perigos, o preconceito internalizado está com os dias contados — depois de ter feito essa pessoa retardar em demasia a busca por um direito básico: o direito à saúde, no caso, psíquica, emocional, mental.

Essa busca voluntária de ajuda de um profissional especializado tem outra razão auspiciosa, a saber.

Na luta por enfrentar seus sofrimentos psíquicos, emocionais, mentais, a pessoa se bombardeia com perguntas, algumas das quais responde com facilidade, mas em relação à maioria das quais ou não encontra resposta adequada, ou simplesmente não encontra resposta. Nessa atividade introspectiva, nesse esforço intelectual por alívio, a pessoa desenvolve um certo autoconhecimento. Nesse caso, a busca pelo psicanalista reflete um alto grau de consciência: a de que, sozinho, não logrará sucesso em sua luta — noutras palavras, reconhece os limites de suas ações, sua própria insuficiência e a importância do outro em sua jornada de luta pela vida, porque, a final de contas, é disso que se trata.

Esse simples ato de ligar para um psicanalista e agendar uma entrevista tem também outro significado auspicioso.

Seguramente, antes de realizar essa ligação telefônica ou esse contato por WhatsApp, a pessoa que busca recuperar a paz de espírito, o equilíbrio emocional, refletiu muito sobre as muitas alternativas.

A conveniência de abrir seus problemas a uma pessoa de confiança terá sido considerada. Porém, qual pessoa de confiança em seu círculo de amizades estaria em condições de ajudar? Que riscos haveria nessa alternativa? Qual a possibilidade de essa ajuda não especializada resultar em conflitos internos e externos ainda maiores?

A busca por sacerdotes de diversas religiões também terá sido considerada, em primeiro lugar, a da própria, mas é comum, em esta não “funcionando”, outras serem procuradas. Quanto tempo será despendido entre essa busca por solução religiosa a sofrimentos emocionais, psíquicos e mentais, à busca de um profissional especializado nesses transtornos? Tanto mais quando não há contradição entre ser religioso e buscar um psicanalista, ou um psicólogo — ou um cardiologista, um endócrino etc.

Assim, numa metáfora, ao agendar uma primeira entrevista com um psicanalista, a pessoa, um tanto pelo método de tentativa e erro, cogitou e tentou uma montanha de alternativas anteriores, de sorte que essa iniciativa é fruto de uma decantação prolongada — às vezes prolongada demais, com os prejuízos que essa demora implica.

Há outras razões muito auspiciosas implicadas na simples inciativa de buscar um psicanalista, porém a principal, entre todas é, sem dúvida, a de que o ato de buscar ajuda especializada para superar um tormento emocional, psíquico ou mental reflete uma pulsão de vida muito forte, que se contrapõe à pulsão de morte suscitada pelo sofrimento de que quer livrar-se.

Em certo sentido, é uma espécie de manifesto da pessoa em favor da vida, da própria vida — um “automanifesto”, cuja principal deliberação é mover-se energicamente contra os mecanismos de morte que operam sem controle dentro de si, e que precisam ser neutralizados e desmontados — mas não sem ajuda.

Essa deliberação consciente em favor da vida, da própria vida, resulta dessa pulsão mais profunda e inconsciente, que é uma energia mais poderosa do que o que Vinicius de Moraes, em Mensagem à Poesia, chamou “forças do abismo que pesam sobre mim”.

Com a devida licença do poeta, poderíamos chamar essa pulsão de vida que move a pessoa a cuidar-se com ajuda de um psicanalista, daquilo que ele faz ressoar em seus versos no mesmo poema: esperança.

Assim, uma pessoa que busca um psicanalista voluntariamente está cheia de dor, mas, também, ainda em maior proporção, de ESPERANÇA!

Freud demolidor

 

Os sonhos acompanham a humanidade desde que ela existe enquanto tal. Ou, por outra, adotada a perspectiva científica decorrente da teoria da evolução das espécie de Darwin, antes mesmo de a humanidade ser esta que hoje conhecemos, uma vez que os estudos comprovam a atividade onírica em todos os mamíferos.

Em 1994, uma equipe de espeleólogos amadores descobriu por acaso no sul da França, no interior de uma caverna, um acervo maravilhoso de inscrições rupestres, nas quais animais e seres humanos são representados com uma técnica altamente sofisticada, em perfeito estado de conservação — o que ocorreu em razão de um terremoto, estimado em 20 mil anos atrás, ter fechado a entrada da caverna.

 A descoberta da caverna de Chauvet impactou o mundo científico, pois as inscrições datam entre 30 e 40 mil anos atrás, tornando-se, portanto, as mais antigas até hoje conhecidas. Foram tomadas medidas drásticas para preservação desse patrimônio e, assim, as visitas foram proibidas, a caverna foi blindada com uma porta de aço e seu interior foi dotado de sistemas de câmeras e climático para garantir a integridade do acervo pintado em parede de rocha e em estalactites. O acesso a ela é regido por severas normas, e restringe-se ao meio científico e àqueles relacionados à divulgação cultural.

E o que isso tem a ver com os sonhos?

Tem a ver que o premiado cineasta e documentarista Werner Herzog, autorizado a produzir um documentário para registrar a descoberta, não encontrou melhor título para ele do que “A caverna dos sonhos esquecidos”. Assistir ao documentário explica porque esse título se impôs ao cineasta: o impacto não apenas do conjunto de mais de 420 pinturas e desenhos animais, de seres humanos e partes de seus corpos, mas do próprio interior da belíssima caverna — remete diretamente a paisagens de sonhos: o próprio clima no interior dessa espécie de útero simbólico é intensamente onírico.

A relação da humanidade com os sonhos tem sofrido alterações ao logo do tempo. Estudos de história, arqueologia, antropologia, sociologia, psicologia, psicanálise e ciências afins, ou em suas fronteiras, registram essas mudanças significativas.

Numa era em que as ciências sequer sonhavam em se estruturar, realidade, imaginação, fantasia, magia e sonho compunham um único tecido indiscernível. O que ocorria entre o dormir ao pôr-do-sol e o despertar com o sol nascente era tão vida e tão legítimo quando o que ocorria durante o dia claro, em que caça, pesca, coleta, fuga de predadores, cuidados com crianças, entre outros, se davam. Não havendo “muralha da china” entre sono e estado de vigília, o que ocorria em ambos era igualmente considerado pelo indivíduo como verdade: afinal, era extremamente angustiante ser atacado por uma fera tanto na vida real, quanto em sonho — com a diferença de que, como a fera do sonho não matava o homem real, este via naquele um aviso, uma premonição a ser tratada com seriedade.

Ao longo dos séculos, os sonhos foram assumidos com tal respeito que passaram a ser objetos de intepretação e atribuição de personagens especializados nas sociedades, de oráculos a sacerdotes, de adivinhos a sábios — e, com o desenvolvimento do pensamento científico, de filósofos a psicanalistas, passando por psicólogos, antropólogos, sociólogos, neurologistas, neurocientistas etc.

As abordagens não científicas do sonho são legítimas. Cada qual em sua esfera procura vislumbrar o humano por meio de sua perspectiva específica.

Por que rejeitar a leitura mística de um sonho, quando esta se apresenta muitas vezes como a única em que, em algum momento da vida, o indivíduo pode apoiar-se para seguir em frente, em face de perturbações incontornáveis? Por que desprezar uma interpretação religiosa ou mágica de um pesadelo, quando apenas uma fração muito pequena da humanidade se declara ateia ou agnóstica? Tanto mais quando tanto as perspectivas místicas, quanto as religiosas e mágicas legaram à humanidade um acervo de obras de arte e culturais de valor imensurável.

Porém, se essas perspectivas são legítimas, a científica também o é, e talvez mais, pois incorpora todas as demais: as ciências estudam o sonho na esfera material, mas também no âmbito do misticismo, das religiões e do pensamento mágico.

Coube a Freud dar um passo decisivo para compreender de um modo científico o papel dos sonhos na vida humana, levando em conta fatores biológicos, históricos, sociais e, principalmente, psíquicos.

Sua obra A intepretação dos sonhos (1900), tornou-se um marco, a partir do qual uma clivagem radical produziu uma decantação definitiva nas abordagens desse tema, que, de “pária” nos meios científicos,  passa a ser tópico de prestígio nas ciências da mente. A partir dessa obra fundante, as relações entre os sonhos e o bem-estar mental e físico do indivíduo começam a ser investigadas de maneira sistemática ao longo do século XX e adentram o XXI com abundantes pesquisas e publicações pelo mundo todo.

O racionalismo, base do progresso capitalista, que desde o século XIV se desenvolveu na Europa, no interior do que se convencionou chamar Humanismo, ergueu, aqui sim, uma “muralha da China” entre a vida psíquica durante o sono e a em estado de vigília.

Disso decorre que uma parte substancial da existência humana — aquela que vivemos dormindo — passou a ser ajuizada como “inútil”, afinal, não se produz nada, do ponto de vista capitalista, durante o sono.

Freud enxerga a arbitrariedade, a fragilidade, a limitação e o artificialismo dessa “construção” típica do modo capitalista de produção, que ao reduzir o ser humano a uma unidade de produção econômica, concebe o sono como uma pequena morte diária, um tempo desperdiçado, e os sonhos, como bizarrices inúteis dentro de um tempo de produção desperdiçado.

Essa muralha não há para os pensamentos místicos, mágicos ou religiosos — os quais Freud descarta já no início de seus estudos. Não há porque, malgrado as particularidades desses pensamentos não científicos, eles se esforçam por buscar uma compreensão integral (corpo e alma) do ser humano — não apenas sua dimensão física, fisiológica, econômica.

Coube a Freud, no campo científico, com A Intepretação dos sonhos, por abaixo essa muralha.

Transtorno de Ansiedade Generalizada


O Transtorno de Ansiedade Generalizada é considerado uma das principais afecções psíquicas de nossos conturbados tempos atuais, muitas vezes associado a formas depressão e fobias, o que dificulta em alguma medida o diagnóstico.

Os estudos demonstram que esse transtorno está relacionado diretamente às enormes pressões a que o indivíduo está sujeito desde os mais tenros anos de idade. A socialização das crianças já na primeira infância, o que em si é um fator positivo, as implicam desde cedo a relações de massa que, se por um lado implicam em ganhos em termos de escolarização e desenvolvimento de habilidades cognitivas, sociais e afetivas, por outro, as expõem ao estresse cotidiano — e por longas horas. A gritaria ensurdecedora no horário do intervalo reflete bem esse ambiente que em algumas oportunidades torna-se verdadeiramente tóxico.

Principalmente nas redes públicas, berçários, creches e pré-escolas superlotados, a falta de pessoal, a rotina esvaziada de sentido e o improviso compõem um ambiente de conflitos em que fatalmente algumas crianças desenvolverão sintomas de ansiedade — ou ainda outras afecções ainda mais preocupantes.

Porém, esse meio “carregado de eletricidade” não é privilégio de crianças em início da fase de escolarização. A Educação Básica, até o final do Ensino Médio, seja em escolas públicas, seja em escolas privadas, funcionam como receptáculos de uma grande quantidade de crianças, adolescente e jovens que carregam para esse ambiente as tensões geradas no interior da família, no âmbito de seus grupos, nos veículos do transporte público, nas ruas e avenidas em que o tráfego e os congestionamentos são enlouquecedores. Sob esse aspecto, a escola, desavisada, prepara uma geração de indivíduos ansiosos por ingressar o quanto antes no mundo ansioso, turbulento e conflituoso dos adultos.

Com relação à população adulta, homens e mulheres, já tendo realizado seu estágio de ansiedade na escola básica, encaram a luta pelo emprego, pelo Ensino Superior, pela qualificação profissional — junto com o medo do desemprego, do fracasso profissional, das desventura do amor, de constituir uma família (ou de perdê-la em processos dolorosos de separação).

Além da legítima carga emocional e de responsabilidades que cada um carrega em seu coração, ou sua alma, ou sua psique, derivada da condição de cada qual neste mundo hipercompetitivo, há inda uma outra, ainda mais intensa, fruto da revolução tecnológica. Na palma da mão de praticamente todo habitante de grandes e pequenas cidades, o celular sequestra toda a vida emocional de seu usuário, subordinando seus interesses aos dos veiculadores de conteúdo, que usam e abusam das mais elaboradas estratégias para intensificar ao extremo esse sequestro.

Sequestrado por perfis famosos das redes sociais (os assim chamados “influencers”), no Instagram, YouTube, Facebook, Tik Tok, Whatsapp, Telegram e outros, o indivíduo passa a ser bombardeado com assuntos que não lhe dizem respeito, posts e anúncios hiperssexualizados, questões graves da política, da economia, da saúde, dos costumes etc. cuja solução estão completamente fora de seu alcance — acrescidos daquelas de sua estrita competência cuja solução , tantas vezes, também lhes escapa.

É desse modo que nossa sociedade atual adoece em massa, mas cujos sintomas comparecem de forma mais visível no nível micro, do indivíduo, tornado uma verdadeira pilha de nervos — para empregar uma expressão já fora de uso —, que sofre agudamente seja dentro de seu carro, em face do semáforo vermelho que demora 2 minutos para abrir; seja à frente da porta de seu apartamento, vasculhando a bolsa ou os bolsos em busca da chave que insiste em se esconder; seja  digitando uma mensagem no celular, com o corretor automático corrigindo errado seu texto.

A pressão por todos os lados faz com que haja dificuldade em se admitir que a fronteira da normalidade já foi cruzada há tempo, uma vez que todos alteram a voz ao mínimo conflito, empregam palavras descorteses a qualquer propósito, invadem o espaço alheio sem cerimônia, atropelam “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”, “com licença”, “por gentileza”, “obrigado”, “como está?” para ir direto ao assunto, esgotá-lo com o máximo de rapidez para voltar ao celular.

A prevalência no tempo dessa conduta hiperacelerada confunde-se também com traço de personalidade ou caráter. Assim, os sintomas se agravam ao longo do tempo, convertendo-se em aparente norma, quando na realidade é manifestação de descontrole emocional e psíquico, que só será notado e, talvez, levado a sério, quando danos graves ou irreparáveis tenham vitimado casamentos, afetos entre pais e filhos, relações de amizade e carreiras profissionais tão desejadas e promissoras.

Na fase aguda, os riscos físicos são iminentes: tensão muscular, palpitação, sudorese, cefaleia frequente, disfunções sexuais, disfunção gastrointestinal. Porém, particularmente a população masculina, tradicionalmente avessa à medicina preventiva, só busca ajuda em face de outros sintomas: perda de memória, insônia, dificuldade de concentração, irritabilidade, inquietação.

Na busca de se livrar do sofrimento causado pelo transtorno, o afetado por ele canaliza suas energias para alvos específicos, que pode ser o sexo, a bebida, as drogas ilícitas, os “rachas” de moto ou automóvel, o abuso de exercícios em academias etc.

Quando se dá conta ou é convencido de que necessita de tratamento, a difícil recuperação do indivíduo ocorre, pois é reversível, em meio a perdas muitas vezes irrecuperáveis, na esfera de relações afetivas e sociais caríssimas, entre as quais o casamento, a paternidade, o emprego, as amizades, o grupo social.

Em situações agudas, o tratamento psicanalítico convoca o auxílio do psiquiátrico, ao menos até o indivíduo recuperar-se o suficiente para retomar o controle de suas próprias emoções — a exemplo de casos de insônia prolongada, de sensação recorrente de vertigem ou de pensamentos obsessivos que abrem caminho ou já estão no âmbito da depressão severa.

Quantos relacionamentos tiveram fim, particularmente nos últimos três anos, com a pandemia de Covid-19, e o confinamento dela advindo, pelo estresse de um período em que a vida em comum converteu-se em uma panela de pressão? Quando dos atritos, conflitos e rompimentos de afetos se devem ao Transtorno de Ansiedade Geral, confundido com traço de caráter ou personalidade. Quantas das pessoas descartadas de relações profissionais, sociais ou amorosas o foram por terem se tornado “insuportáveis”, quando na verdade estavam apenas doentes?