terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

A importância do método psicanalítico hoje


Todo aquele que busca auxílio a um psicanalista o faz premido por uma necessidade incontornável — às vezes e com frequência como último recurso — para superação de sofrimentos interiores em face dos quais se sente impotente e muitas vezes devastado. Isso ocorre porque os conflitos internos de menor complexidade o indivíduo enfrenta por seus próprios meios, só se dando conta da urgência de ajuda especializada quando se convence, quase sempre de maneira tardia, de que não recuperará seu equilíbrio emocional sem essa ajuda.

Porém, o psicanalista, consciente de seu próprio limite, dado pelo ponto de análise em que ele mesmo se encontra junto a outro psicanalista, é livre par aceitar a demanda, ou orientar o paciente a outro colega em melhores condições, uma vez que o processo de transferência analisando-analisado é posto em risco se o analista se depara com conflitos situados além de seu próprio ponto de análise.

Isso ocorre porque o método psicanalista, ao buscar a busca pela palavra, põe um sujeito em interação franca com outro, um com uma demanda, outro com uma técnica, ambos envolvidos num mesmo processo cujo fim é a resolução dos conflitos internos do demandante, mas cujo meio é propiciado pelo demandado, que pode se sentir inteiramente apto para liderar o processo de análise, mas que também está livre para, em dado momento, reencaminhar o demandante a outro profissional.

A entrevista preliminar, sob esse ponto de vista, é essencial, pois permite ao analista tanto realizar um diagnóstico tão preciso quanto possível, quanto avaliar seu próprio papel em face da demanda solicitada e do próprio demandante.

Uma vez aceita a demanda, o processo psicanalítico põe em movimento não apenas os elementos apresentados pelo demandante, os quais inevitavelmente são apenas resíduos, vestígios, fragmentos dos conflitos que atormentam sua psique.

Se o elemento aparentemente detonador do sofrimento que levou o demandante ao consultório se afigura a ele claro e inequívoco — tal como uma perda de ente querido, uma separação dolorosa e inexorável, uma frustração avassaladora —, a partir dessa declaração voluntária e livre, estimulando a livre associação do próprio paciente, o analista trabalha com esse elemento no mesmo nível de importância que os demais que forem surgindo a partir da fala do próprio analisando, pois o demandante pode estar certo, parcialmente certo ou simplesmente equivocado com relação à causa de seu sofrimento.

Num processo contínuo de transferência e contratransferência, analista e analisando, ajustando sempre o idioma comum, aprofundam a busca na psique das causas do sofrimento — que sempre são mais complexas do que se afiguram na superfície da consciência. E, ainda que a intuição do analista esteja correta, a técnica psicanalítica exige que ele ajude o analisando a construir por si mesmo o caminho de sua cura, porque, nesse sentido, a cura é exatamente essa construção íntima, essa estrutura psíquica que jamais poderá ser alcançada do exterior, sendo, antes, fruto da elaboração do próprio analisando.

A reconquista do equilíbrio emocional, da saúde psíquica, assim, não é resultado de uma ação exclusiva, dirigida a um único ponto da psique em que por ventura, aparentemente, um trauma se apresente, mas é um processo integral de transformação do sujeito, em que as causas dos sofrimento são buscadas ao mesmo tempo em que mecanismos de autoconhecimento são ativados e estimulados para a reconfiguração da psique, reconfiguração que, caso bem-sucedida, dá ensejo a uma psique saudável não porque uma “cicatriz” simbólica passa a ocupar o lugar de um trauma, mas porque o trauma, descoberto, analisado, elaborado e superado pelo próprio indivíduo, por mecanismo internos desenvolvidos por ele mesmo, deixa de produzir seus efeitos perturbadores na psique.

Em certo sentido, talvez um dos principais objetivos do método psicanalítico seja auxiliar o analisando a reconstituir seu Ego, que, por alguma razão que o método busca elucidar, perdeu força em face do Id, do Superego — ou de ambos.

Forçado a servir a dois senhores — Id e Superego —, o Ego, tendo de se haver ainda com as demandas do mundo real, pode se fragilizar em algum momento da vida — e, inevitavelmente, em algum momento se fragilizará, mesmo, uma vez que, como a vida externa, a vida psíquica é dinâmica e está sujeita a impactos imprevisíveis, muitos deles negativos e alguns, mesmo, devastadores.

Ao longo de seu tempo de vida, o indivíduo está sujeito a frustrações e perdas extremamente dolorosas — e quanto mais tempo viver, mais estará exposto a essas experiências. Será inevitável que em algum momento sua saúde psíquica seja afetada, particularmente nos tempos conturbados em que vivemos, de conflitos de toda espécie e dimensões, que envolvem o conjunto da sociedade e têm impacto direto no indivíduo, o tempo todo pressionado pelas instabilidades econômicas e políticas, pelo fantasma do desemprego ou do insucesso profissional, pela insegurança em relação ao amanhã ou ainda pelas crises conjugais e familiares.

Desse modo, manter a saúde psíquica, mais do que uma preocupação ocasional, assume relevância cotidiana. Fazer psicanálise, sob esse ponto de vista, não é apenas uma necessidade para demandas específicas, em que crises agudas se manifestam, mas uma prática relacionada à prevenção de situações-limite, ao autoconhecimento e ao bem-estar do indivíduo contemporâneo que, exposto a conflitos e à fadiga mental diariamente, só os enfrenta com sucesso se estiver interiormente firme e forte — em poucas palavras: se estiver reforçando sua psique o tempo todo.

O desenvolvimento conflitivo da psique humana

Embora o desenvolvimento psíquico humano ocorra à medida que o próprio desenvolvimento físico ocorra, os estudos de Freud demonstraram que isso se dá de forma contraditória, não linear e sempre com avanços, recuos e acidentes de percurso de maior ou menor gravidade, dos quais derivam as neuroses e psicoses.

Num desenvolvimento absolutamente “normal”, Freud identificou cinco fases de desenvolvimento psíquico humano: ora, anal, fálica, latência e genial.

Na primeira fase, oral, entre 0 e 2 anos, a erotização da boca leva o indivíduo a buscar não apenas o alimento tão necessário à sua sobrevivência fora do útero materno, mas também o prazer. Esse prazer, a partir de um certo momento, descola-se da própria atividade de sugar o leite materno, o que explica o regurgito do bebê, que em busca do prazer, proporcionado pelo sugar, ingere mais do que o seu aparelho digestivo suporta — noutras palavras, ele continuou a sugar, por prazer, após sua necessidade fisiológica ter sido satisfeita. Também demostra a erotização dessa parte do corpo o uso da chupeta ou, tantas vezes, do próprio dedo.

A segunda fase do desenvolvimento psíquico para Freud é a anal, entre 2 e 3 anos, quando entra em jogo o controle da urina e das fezes. Naturalmente levado a esse exercício pelos próprios movimentos do organismo, e orientado e censurado pelos pais, a criança descobre o prazer de prender a urina e as fezes e de liberá-las. A sensação proporcionada por esse exercício de controle do próprio corpo erotiza essas regiões, mas o prazer ainda está associado exclusivamente à liberação de urina e fezes

A fase fálica, entre 3 e 6 anos, corresponde para Freud àquela em que o órgão genital é percebido enquanto tal pela criança, que passa a tocá-los em busca do prazer, mesmo quando a necessidade puramente fisiológica já foi satisfeita. O que ocorreu coma erotização da boca, ocorre com a erotização do órgão genital: o prazer se descola da função fisiológica da micção, e passa a ser buscado quando ela está em jogo.

Na fase de latência, de 6 anos à puberdade, Freud identifica um período em que as atenções do indivíduo se voltam para as relações sociais, para o exterior, em razão do que o desenvolvimento psíquico relacionado à sexualidade sofre uma repressão das sensações erógenas, em favor uma constituição mais definida do ego. Nesse período, as transformações físicas e psíquicas ocorrem gradualmente, muitas vezes de forma quase imperceptível, mas ao fim da qual, grandes e radicais transformações, em ambas as dimensões, ocorrem vertiginosa e definitivamente.

A fase genital, a partir da puberdade, para Freud, corresponde ao estágio em que o indivíduo, em condições normais, atinge em definitivo a maturidade psíquica e sexual. Mudanças significativas, deflagradas ao final da fase de latência, se impõem no início desta e, ao final dela, alcança-se a fase adulta.

Porém, os estudos de Freud verificaram que, em razão de traumas, fantasias ou idiossincrasias do próprio indivíduo, seu desenvolvimento psíquico pode sofrer recuos importantes e mesmo patológicos, caso em que afloram neuroses ou psicoses.

Para Freud, as neuroses são mecanismos defesa a que o indivíduo recorre para suportar um sofrimento excruciante. Assim, as manifestações emocionais ou psíquicas anormais não seriam a doença em si, mas uma reação do indivíduo para enfrentar uma dor interna sobre a qual não tem domínio e à qual não consegue sanar sem ajuda — aqui se justifica para Freud o papel do psicanalista, que é o de ajudar ao paciente afetado a descobrir a origem de seu sofrimento e a construir mecanismos psíquicos internos para restaurar sua saúde emocional.

As origens dessas neuroses, Freud identificou, residem em fases remotas do desenvolvimento psicossexual. As fobias, por exemplo, teriam relação a uma fixação do indivíduo na fase fálica, em que a angústia de castração e a sensação de aniquilamento e desemparo se sobrelevam. Aqui, uma lembrança ou em face de um objeto ou situação específica, o indivíduo reage desproporcionalmente. Por seu turno, as obsessões e compulsões teriam origem na fase anal, quando a imposição de regras e censuras, com os primeiros conflitos entre ID e Superego. Nesse particular, para “evitar o erro” e a dor de ser censurado, o indivíduo repete inúmeras vezes o mesmo gesto, o mesmo processo, a mesma ação. A histeria teria como ponto de fixação a fase fálica. Suas manifestações seriam uma somatização de uma defesa que não pôde ser elaborada psiquicamente pelo indivíduo.

Os estudos de Freud demostraram também que em linhas gerais, todos os seres humanos são em certa medida neuróticos, pois durante o processo de desenvolvimento psicossexual, todos, todos recalcamos impulsos e desejos, alguns dos quais, mal elaborados em nossa psique, retorna na forma de sintoma.

Sob esse aspecto, Freud também inovou no que tange à saúde preventiva, pois, ao constatar que todos estamos expostos a traumas de maior ou menor monta, deixou implícita a necessidade de que a psicanálise se voltasse não somente para os indivíduos diagnosticados com patologias, mas também para os considerados em condição de normalidade, uma vez que mesmo estes não estão a salvo de processos estressantes que desencadeiem sintomas neuróticos mais acentuados — e a situação de confinamento durante a pandemia de Covid-19 bem o demonstrou, com os índices de atendimento de saúde mental do SUS saltando substancialmente entre os anos de 2020 e 2022.

Porém às neuroses, somam-se ainda as psicoses (esquizofrenia, paranoia e melancolia), cujas origens podem ser diversas, mas cujos danos psíquicos são ainda mais severos. Ambas, tanto neuroses quanto psicoses, demonstram que o desenvolvimento psíquico humano nem é linear, nem está livre de afecções, e que o conflito entre Id, Ego e Superego é inerente à própria condição humana.

Freud e o início da Psicanálise

 

As pesquisas e as práticas de Freud inserem-se no conjunto de revoluções científicas e técnicas do século XIX, que promoveram um progresso exponencial em todas as áreas do conhecimento humano. Porém essas revoluções não ocorreram como frutos do acaso, constituindo-se, antes, como um salto de qualidade de mais de quatro séculos de disputas entre os pontos de vista religiosos e os científicos — os quais ao mesmo tempo impulsionavam e eram impulsionados pelo capitalismo nascente.

Com efeito, das grandes navegações, com suas caravelas movidas pelo vento, em fins do século XV e início do XVI, à máquina à vapor, que pôs navios gigantescos nos oceanos e espalhou ferrovias por todos os continentes da Terra, no século XIX, praticamente todas as barreiras religiosas que se opunham ao progresso tecno-científico vieram abaixo.

Se a filosofia, com seus humanistas e iluministas, em sua guerra contra o predomínio da religião, imperou soberana nos meios cultos até o século XVIII, no século XIX o polo dinâmico se deslocou para as ciências da natureza, que já tinham em Copérnico, Newton, Galileu e Giordano Bruno um solo fértil, cultivado desde o século XVI. Porém não veio diretamente da física a influência predominante desse século XIX tão decisivo para as ciências, mas do que então se chamava história natural, hoje identificada com a biologia.

A pesquisa genética de Mendel e principalmente a da origem das espécies, de Darwin, ultrapassaram seus próprios limites, e tiveram suas perspectivas e seus métodos importados pelas demais ciências, naturais ou humanas — entre as quais as que se voltavam para o estudo dos transtornos mentais.

De uma maneira geral, pessoas com transtornos mentais mais severos eram, como continuam a ser até os dias de hoje em muitas partes do mundo, em manicômios e asilos para alienados, onde, a depender da situação econômica e da tradição local, eram compartilhavam espaço com crianças órfãs e idosos abandonados, surdos-mudos confundidos com pacientes psiquiátricos, tuberculosos, leprosos entre outros.

Os trabalhos de Freud e de sua geração de pesquisadores da mente foi pioneiro, ao buscarem, orientados por critérios científicos, diagnosticar transtornos psíquicos e desenvolver métodos e práticas terapêuticas.

Afastando perspectivas metafísicas, religiosas, místicas e do senso comum, Freud logrou compreender a pisque de seus pacientes por meios inusitados para a época. Porém, para tanto, era necessário desenvolver conceitos eficazes tanto na diagnose quanto na terapêutica. De todos os conceitos desenvolvidos por Freud, talvez o mais emblemático seja o de “inconsciente”.

Ao propor que a psique humana é constituída de três dimensões — consciente, pré-consciente e inconsciente —, Freud põe por terra as ideias religiosas de unidade da alma, e as metafísicas, de identidade individual indivisível. Não fora o suficiente para abalar verdades até então consagradas, Freud ainda defende que a maior parte da psique humana é ocupada pelo inconsciente, no qual residem lembranças, memórias e pulsões recalcadas durante o processo que se inicia no útero materno e que acompanha o indivíduo até sua morte.

Se num primeiro momento Freud compreende a psique humana como tripartida entre consciente, pré-consciente e inconsciente, à medida que suas pesquisas avançam e suas sistematizações progridem ele chega à uma outra versão dessa mesma ideia. Agora, para ele, sem descartar a tríade consciente-pré-consciente-inconsciente, os conceitos de Id, Ego e Superego ganham lugar. Esse modelo promoverá um verdadeiro abalo nas ciências da mente e da psique humanas.

Ao considerar que o Ego é uma dimensão da psique humana que busca controlar as pulsões primitivas do Id (em relação às quais a moral, a ética e os limites sociais nenhum poder têm), e resistir às imposições do Superego (relacionadas às convenções sociais), Freud expõe a fragilidade do equilíbrio psíquico humano, que dependeria, assim, de um Ego bem estruturado e sadio, mediador de tensões entre Id e Superego.

A esses conceitos fundadores, Freud acrescenta e desenvolve o de “pulsões”, que seriam energias psíquicas originárias no Id, a alimentar tanto o Ego quanto o Superego. E para desconforto geral de uma ciência que considerava a morte como inimiga da vida, Freud propõe que a saúde psíquica depende do equilíbrio entre pulões de vida (Eros) e pulsões de morte (Tanatus), sendo as primeiras chamadas por ele de “Libido”.

A obra teórica de Freud se avoluma e se sofistica à medida que suas práticas terapêuticas e suas reflexões científicas apresentam novos desafios, que exigem ajustes em seus modelos. Se incialmente seu trabalho se voltou para pacientes às voltas com transtornos psíquicos sintomáticos, à medida que sua perspectiva passou a ser adotada mais largamente, suas reflexões se mostraram também válidas para psique humana em geral — não apenas para a compreensão das psiques abaladas por traumas significativos.

Ao observar que sintomas de seus pacientes estavam relacionados com seus inconscientes — portanto com seus Ids —, Freud buscou formas de acessá-los; primeiro, por meio da sugestão hipnótica; depois, descartando-a, por meio da livre associação, oriunda da fala sem censuras do próprio paciente: ao alcançar por meio da livre associação os eventos traumáticos recalcados nas profundezas do inconsciente, o paciente punha-se em condições de inseri-los em uma nova narrativa, esta consciente, e ressignficá-los, habilitando-se a, reforçando seu próprio Ego, reequilibrar toda sua psique, abalada sempre que o trauma aflorasse sem expressão na linguagem — sob esse aspecto, o sintoma seria uma manifestação fisiológica, oriunda de um trauma não equacionado pelo Ego.

Por entender a importância do inconsciente na psique humana, Freud envereda seus estudos para um campo em que ele, o inconsciente, age sem freios: o campo dos sonhos.

Freud será também pioneiro em investigar os sonhos de um ponto de vista estritamente científico — uma vez que os sonhos são alvo de interesses místicos, religiosos e metafísicos desde que o homem se entende enquanto tal. Sua obra A interpretação dos sonhos, publicada em 1900, se tornará um clássico para além das fronteiras da ciência em ele que pontou como fundador, a psicanálise.

Se Copérnico tirou o homem do centro do universo, e Darwin o tirou de seu pedestal sagrado, Freud demonstrou que ele não é senhor sequer de sua psique, cujo Ego luta para não ser esmagado pelo Superego, introjeção das convenções sociais, e pelo Id, dimensão primitiva e biológica de nossa humana condição.