terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Todos precisam de todos, o tempo todo

 

A busca pela saúde psíquica e mental é seguramente uma das maiores preocupações dos tempos atuais. Em face da complexidade e dos conflitos do mundo contemporâneo, o indivíduo está a todo momento exposto a situações de estresse que, no curso do tempo, produzem ferimentos emocionais de variados graus de gravidade, dos mais amenos e inócuos aos mais severos e incapacitantes.

Em meio a situações-limite na família, no meio profissional e na vida cidadã, em algum momento de sua vida o indivíduo adoecerá emocionalmente e, a depender de seu histórico particular e da gravidade do transtorno, necessitará de ajuda especializada, por curto, médio ou longo prazo — e às vezes para o resto da vida.

No que tange ao psicanalista, sua especialidade tem assistido a um substancial crescimento de demanda, tanto mais quando se põe na balança os efeitos ocasionados pela pandemia de COVID-19, que resultou em perdas humanas insuperáveis, confinamento social por largo período, mudança de hábitos individuais e coletivos, e agravamento da crise econômica, cujo impacto gerado pela paralisia ou quebra de empresas, em função do longo período de interrupção de atividades, e pelo desemprego generalizado, ainda repercutem fortemente no seio da família, da comunidade e da sociedade em geral.

Seja no ambiente profissional ou urbano, seja nas escolas, seja na família, uma pressão enorme se acrescentou àquelas já normalizadas pelo quotidiano tenso, derivado de uma crise política prolongada que, no Brasil, beira uma década, em que polarizações por disputas ideológicas fizeram naufragar relações entre casais, pais e filhos, amigos, colegas de trabalho entre outras.

Como afirma Freud, todos somos algo neuróticos, no entanto, a intensidade dos conflitos sociais e políticos no Brasil dos anos mais recentes, e a gravidade da pandemia de COVID-19 potencializaram um clima social hostil que, sem solução satisfatória, gerou uma correspondente epidemia de transtornos psíquicos, que vão do mal-estar intermitente à depressão mais severa, em que o crescimento do número de suicídios se mostra apenas como face mais visível.

Com efeito, a título de exemplo, a partir de dados do Ministério da Saúde, a Fundação Oswaldo Cruz desenvolveu estudo sobre o suicídio no Brasil em 2020. O objetivo dessa pesquisa (Excesso de suicídios no Brasil: desigualdades segundo faixas etárias e regiões durante a pandemia de Covid-19) era investigar a elevação do número de suicídios no país por idade e por regiões. Ainda como exemplo, o estudo revelou que na região Norte houve um acréscimo de 26% de suicídios em homens com 60 anos ou mais. (FONTE: Fundação Oswaldo Cruz. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/fiocruz-avalia-excesso-de-suicidios-no-brasil-na-primeira-onda-de-covid-19. Acesso em 22 dez 22.)

Se nas empresas o ambiente de incerteza projeta sobre os indivíduos um véu de ansiedade, em razão da pressão por resultados em face de um mercado contraído; nas escolas, professores e demais profissionais buscam instaurar um clima de normalidade, porém é visível que crianças e adolescentes apresentam dificuldades para restabelecer vínculos com os colegas nos termos pré-pandemia; e em nível “macro”, o estudo da Fundação Oswaldo Cruz demonstra que os efeitos colaterais da pandemia vão muito além das mortes diretamente ligadas ao coronavírus, abrangendo uma dimensão que vai se tornando mais visível à medida que os diagnósticos de transtornos psíquicos vão alimentando estatísticas oficiais do período.

Se por um lado a melhoria da situação geral depende de políticas de saúde amplas, que impliquem em controlar e, idealmente, debelar a pandemia, por outro, os danos psíquicos resultantes desse período aziago de nossa história recente só serão satisfatoriamente mitigados ou sanados a partir do auxílio especializado aos indivíduos diretamente impactados.

Noutras palavras, as empresas superarão suas dificuldades se buscarem propiciar a seus colaboradores um clima saudável, que não se alcança na insegurança ou na pressão psicológica por resultados que, nesse caso, quando vêm, vêm mesclado com atestados médicos de toda natureza — e cada vez mais de natureza psíquica.

Do mesmo modo, o ambiente escolar não superará satisfatoriamente e no prazo mais breve possível o mal-estar remanescente do período de confinamento se não observar o estado emocional de estudantes, de seus familiares e dos profissionais da unidade escolar.

No âmbito da família e da comunidade, infelizmente, muitas situações são irreversíveis. Assim como os casos de suicídio se tornaram mais frequentes, também o número de divórcios apresentou significativa alta no período.

Segundo a Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais: “Estudos demonstram que, durante o segundo ano de isolamento social decorrente da pandemia, o número de divórcios feitos em cartórios de notas do país subiu 26,9% de janeiro a maio só em 2021, em relação ao mesmo período de 2020. Se comparado a igual período de 2020, o crescimento foi de 36,35% em 12 meses.” (FONTE: Anafe. Disponível em: https://anafenacional.org.br/divorcios-na-pandemia-que-dizem-os-dados. Acesso em: 22 dez 22).

No artigo da Anafe que trata do assunto, a panela de pressão em que se tornou o lar, saturado pelo home office do casal, por tarefas domésticas e por aulas virtuais dos filhos, que tornaram a sala de casa extensão da sala de aula, levaram a um colapso emocional a família:  “Dentro de casa, as pessoas viram-se forçadas a tentar equilibrar as atividades profissionais com o cuidado das crianças, tarefas domésticas, sem se desocupar das finanças, saúde corporal e mental e até dos relacionamentos interpessoais com parceiros/cônjuges, família e amigos. A dinâmica de equilíbrio desses “pratinhos” é delicada e, dependendo do grau de stress, é inevitável que um deles caia.” (Anafe. Idem, ibidem)

Submetido a pressões insuportáveis, tanto sociedades, quanto grupos sociais, família ou indivíduos sucumbem. Sob esse aspecto, a pandemia deixa como lição a necessidade de dar maior atenção à saúde mental, psíquica e emocional não apenas quando doenças, transtornos ou distúrbios se apresentam, muitas vezes de forma dramática, mas enquanto forma preventiva e mesmo cotidiana de busca de equilíbrio e bem-estar.

Se maus momentos políticos e econômicos de uma sociedade são caldo de cultura para adoecimento da população, inclusive na dimensão psíquica, também é verdade que indivíduos mais conscientes de sua dimensão emocional — e que cuidam dela — enfrentam melhor esses períodos, quer expondo-se menos a situações traumáticas, quer as enfrentando de forma mais adequada e racional.

O ser humano é falível, tem limites, fragilidades e disfunções características. Ter consciência dessa falibilidade, desses limites, fragilidades e disfunções não os elimina, mas propicia meios para enfrentá-los cotidianamente e vencê-los, quer por conta própria do indivíduo, quer com ajuda especializada, o que não é demérito nenhum — antes pelo contrário, revelando uma sabedoria profunda: a de reconhecer que, no âmbito da humanidade, ninguém é autossuficiente, pois todos precisam de todos, nos piores momentos principalmente, mas, a rigor, o tempo todo.


Sexo e poder

 

O século XX foi atravessado por duas grandes ondas revolucionárias, cujo epicentro ocorre na Europa de fins do século XIX e cujos reflexos se espalharam pelo mundo e repercutem até os dias de hoje.

A primeira delas, não necessariamente em ordem de importância, diz respeito ao campo da política, e está ligada diretamente à obra de Karl Marx, para quem as crises capitalistas levariam o mundo inexoravelmente ao socialismo. Não houve processo de independência nacional ou de revolução social de fins do século XIX e de todo o século XX que não esteve de alguma forma associada ao pensamento marxista.

A segunda onda que se ergue no fim do século XIX, atravessa todo o XX e segue com força neste início de XXI, é da revolução sexual, diretamente relacionada à obra de Sigmund Freud. Não houve e não há movimento feminista ou contra discriminação de gênero ou identidade sexual desde Freud que não se remeta de alguma forma à sua obra, seja para apoiar-se nela, seja para buscar novos caminhos, criticando-a.

A influência desses dois pensadores é tão avassaladora sobre a produção científica e intelectual, que se tornou comum explicar os processos sociais e políticos do mundo contemporâneo pelo binômio “sexo e poder”, noutras palavras, Freud e Marx.

No entanto, as revoluções sociais não são objeto deste artigo — embora seja instigante buscar as aproximações e distanciamentos entre Freud e Marx. O objetivo, aqui, é realizar uma reflexão não extensa sobre a importância de Freud na pesquisa da psique humana.

Diferentemente de Marx, que buscou nas relações e nas classes sociais as razões da infelicidade coletiva, Freud voltou suas atenções para os mecanismos psíquicos internos do indivíduo, responsáveis por sua saúde ou por sua insanidade emocional.

Seu modelo topográfico, em que consciente, pré-consciente e inconsciente se articularam para descrever a vida psíquica humana foi um passo decisivo para que as ciências da mente se afastassem de explicações mistificadoras ou de ordem religiosa. Seu modelo estrutural, posterior, em que Id, Ego e Superego descrevem o mecanismo estruturante do indivíduo foi outro passo de gigante para as ciências da mente.

Ao abordar transtornos psíquicos como resultantes de traumas relacionados ao desenvolvimento sexual, do nascimento à idade adulta, Freud jogou luzes sobre problemas muitas vezes representados na literatura e nas artes, porém de forma poética.

Nas relações conturbadas entre homens e mulheres, mãe-filho/a, pai-filho/a, tão frequentes na literatura, Freud enxergou não retratos de anomalias morais, mas representação artística de uma constante mais profunda, relacionada ao próprio desenvolvimento da sexualidade humana.

Fugindo aos limites da moral de época, que tantas vezes penetrou os domínios da ciência e a impregnou de preconceitos — porém sem deixar de ser um homem de sua época, portanto, moldado pelos limites históricos do tempo em que viveu — Freud esforçou-se por desromantizar a relação homem-mulher e pais-filhos. Por essa razão, foi, e ainda é, alvo da ira de grupos e indivíduos que preferem sacralizar relações humanas, a encará-las como produto de relações sociais e políticas, mas também psicossexuais.

Ao propor que o indivíduo humano desenvolve sua sexualidade desde o momento em que reúne condições fisio e neurológicas para tanto, Freud deu a senha para que parte significativa da humanidade marchasse contra ele mesmo. Melhor não ficou sua situação no meio científico conservador de sua época, e menos aprovação teve ainda do senso comum, quando escreveu com todas as letras que a mãe e o pai são os primeiros responsáveis tanto pelo desenvolvimento saudável da sexualidade de seus filhos, quanto por seus traumas na idade adulta.

A visão científica de Freud era incompatível com representações ideológicas prevalentes ao longo dos séculos que se, por um lado, colocavam a mãe em um altar e o pai em um trono, por outro, fechava os olhos para as razões dos transtornos psíquicos, destinando os “anormais” e  “loucos” para casas de alienados, para os hospícios, para as cadeias, ou para a fogueira, junto com bruxas, perversos, criminosos ou descontentes com a ordem vigente.

Ao buscar explicações científicas para transtornos psíquicos, Freud foi forçado a esmiuçar as entranhas da mais antiga instituição humana, a família, que se reveste dos véus simbólicos da religião, mas cuja base concreta é o sexo.

Ao voltar sua lupa para os mecanismos psíquicos do indivíduo, o que Freud descobriu foram associações complexas entre biologia, fisiologia e introjeção de representações simbólicas de relações sociais: mãe, pai, família, comunidade, Estado.

Descartadas razões de ordem física, em que se incluem lesões, malformações e genética, que origem poderiam ter as neuroses e psicopatologias, a não ser em mecanismos psíquicos afetados por relações ou eventos traumáticos, introjetados em momentos decisivos da vida do indivíduo, o principal deles a infância?

Dedicando sua vida de cientista humanista à luta contra o sofrimento do indivíduo, Freud desenvolveu métodos de pesquisa e terapêuticos que o levaram a creditar grande parte da origem dos traumas psíquicos da vida adulta a eventos relacionados a perturbações do desenvolvimento sexual na infância.

Durante o século XX, muitos estudiosos, estes com conhecimento de causa, questionaram a ênfase de Freud na sexualidade como dimensão central da saúde psíquica — ou de transtornos, neuroses e patologias psíquicas —, e Jung não é, aqui, figura solitária.

No entanto, cabe a pergunta: não tivesse Freud chamado a atenção a esse aspecto que, hoje, passa por obviedade, teriam as ciências da mente alcançado o estágio em que se encontram?

A importância do método psicanalítico hoje


Todo aquele que busca auxílio a um psicanalista o faz premido por uma necessidade incontornável — às vezes e com frequência como último recurso — para superação de sofrimentos interiores em face dos quais se sente impotente e muitas vezes devastado. Isso ocorre porque os conflitos internos de menor complexidade o indivíduo enfrenta por seus próprios meios, só se dando conta da urgência de ajuda especializada quando se convence, quase sempre de maneira tardia, de que não recuperará seu equilíbrio emocional sem essa ajuda.

Porém, o psicanalista, consciente de seu próprio limite, dado pelo ponto de análise em que ele mesmo se encontra junto a outro psicanalista, é livre par aceitar a demanda, ou orientar o paciente a outro colega em melhores condições, uma vez que o processo de transferência analisando-analisado é posto em risco se o analista se depara com conflitos situados além de seu próprio ponto de análise.

Isso ocorre porque o método psicanalista, ao buscar a busca pela palavra, põe um sujeito em interação franca com outro, um com uma demanda, outro com uma técnica, ambos envolvidos num mesmo processo cujo fim é a resolução dos conflitos internos do demandante, mas cujo meio é propiciado pelo demandado, que pode se sentir inteiramente apto para liderar o processo de análise, mas que também está livre para, em dado momento, reencaminhar o demandante a outro profissional.

A entrevista preliminar, sob esse ponto de vista, é essencial, pois permite ao analista tanto realizar um diagnóstico tão preciso quanto possível, quanto avaliar seu próprio papel em face da demanda solicitada e do próprio demandante.

Uma vez aceita a demanda, o processo psicanalítico põe em movimento não apenas os elementos apresentados pelo demandante, os quais inevitavelmente são apenas resíduos, vestígios, fragmentos dos conflitos que atormentam sua psique.

Se o elemento aparentemente detonador do sofrimento que levou o demandante ao consultório se afigura a ele claro e inequívoco — tal como uma perda de ente querido, uma separação dolorosa e inexorável, uma frustração avassaladora —, a partir dessa declaração voluntária e livre, estimulando a livre associação do próprio paciente, o analista trabalha com esse elemento no mesmo nível de importância que os demais que forem surgindo a partir da fala do próprio analisando, pois o demandante pode estar certo, parcialmente certo ou simplesmente equivocado com relação à causa de seu sofrimento.

Num processo contínuo de transferência e contratransferência, analista e analisando, ajustando sempre o idioma comum, aprofundam a busca na psique das causas do sofrimento — que sempre são mais complexas do que se afiguram na superfície da consciência. E, ainda que a intuição do analista esteja correta, a técnica psicanalítica exige que ele ajude o analisando a construir por si mesmo o caminho de sua cura, porque, nesse sentido, a cura é exatamente essa construção íntima, essa estrutura psíquica que jamais poderá ser alcançada do exterior, sendo, antes, fruto da elaboração do próprio analisando.

A reconquista do equilíbrio emocional, da saúde psíquica, assim, não é resultado de uma ação exclusiva, dirigida a um único ponto da psique em que por ventura, aparentemente, um trauma se apresente, mas é um processo integral de transformação do sujeito, em que as causas dos sofrimento são buscadas ao mesmo tempo em que mecanismos de autoconhecimento são ativados e estimulados para a reconfiguração da psique, reconfiguração que, caso bem-sucedida, dá ensejo a uma psique saudável não porque uma “cicatriz” simbólica passa a ocupar o lugar de um trauma, mas porque o trauma, descoberto, analisado, elaborado e superado pelo próprio indivíduo, por mecanismo internos desenvolvidos por ele mesmo, deixa de produzir seus efeitos perturbadores na psique.

Em certo sentido, talvez um dos principais objetivos do método psicanalítico seja auxiliar o analisando a reconstituir seu Ego, que, por alguma razão que o método busca elucidar, perdeu força em face do Id, do Superego — ou de ambos.

Forçado a servir a dois senhores — Id e Superego —, o Ego, tendo de se haver ainda com as demandas do mundo real, pode se fragilizar em algum momento da vida — e, inevitavelmente, em algum momento se fragilizará, mesmo, uma vez que, como a vida externa, a vida psíquica é dinâmica e está sujeita a impactos imprevisíveis, muitos deles negativos e alguns, mesmo, devastadores.

Ao longo de seu tempo de vida, o indivíduo está sujeito a frustrações e perdas extremamente dolorosas — e quanto mais tempo viver, mais estará exposto a essas experiências. Será inevitável que em algum momento sua saúde psíquica seja afetada, particularmente nos tempos conturbados em que vivemos, de conflitos de toda espécie e dimensões, que envolvem o conjunto da sociedade e têm impacto direto no indivíduo, o tempo todo pressionado pelas instabilidades econômicas e políticas, pelo fantasma do desemprego ou do insucesso profissional, pela insegurança em relação ao amanhã ou ainda pelas crises conjugais e familiares.

Desse modo, manter a saúde psíquica, mais do que uma preocupação ocasional, assume relevância cotidiana. Fazer psicanálise, sob esse ponto de vista, não é apenas uma necessidade para demandas específicas, em que crises agudas se manifestam, mas uma prática relacionada à prevenção de situações-limite, ao autoconhecimento e ao bem-estar do indivíduo contemporâneo que, exposto a conflitos e à fadiga mental diariamente, só os enfrenta com sucesso se estiver interiormente firme e forte — em poucas palavras: se estiver reforçando sua psique o tempo todo.