segunda-feira, 12 de setembro de 2016

ENEM: Mais uma péssima notícia do "governo" Temer golpista

Matéria do dia 8 de setembro de (2016) do Jornal O Globo (G1) informa o que pretende fazer a nova presidente do INEP, Maria Inês Fini, com o ENEM: destruí-lo enquanto porta de acesso ao Ensino Superior para 8.500.000 estudantes.

Equipe de Língua Portuguesa do 1o. ENEM, maio de 1998. Eu, de touca.
Em 1998, quando realizava meu doutorado em Letras na USP, fui convidado pela prof.a Maria Inês Fini, com outros colegas da própria USP, da UNESP e UNICAMP, a participar da equipe de elaboração do 1o. ENEM. ainda no governo Fernando Henrique Cardoso.

(De 2008 a 2011, voltei a trabalhar com a prof.a Maria Inês, agora na SEED-SP, como cunsultor da Fundação Carlos Vanzonlini da USP, na área de Currículo e também nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor.)

Já tinha integrado as câmaras de discussão da Reforma do Ensino (1996-1998), de maneira que foi com alegria que reencontrei os e as colegas para elaborar as questões objetivas da área Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, particularmente as de Português. 

O exame constituía uma grande novidade, pois era a primeira experiência de avaliação nacional a partir dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (depois vieram os do Ensino Fundamental e as Diretrizes Curriculares da Educação Infantil). Como tudo era novo, desde o formato até o desenho estratégico do Exame, não foram poucas as discussões para que os Parâmetros Curriculares fossem refletidos com maior rigor possível nas questões objetivas e na redação (nos anos seguintes, além da FUVEST, integrei também as bancas de correção de redação do ENEM).

O ENEM surgiu como um sistema de avalização de competências e habilidades dos estudantes do Ensino Médio ao final do curso. Tinha função, assim, de diagnosticar a qualidade do ensino e servir de base para políticas voltadas à melhoria dessa qualidade. Na prática o que ocorria, porém, era que as escolas privadas empregavam o desempenho obtido por seus alunos para "ranquear" sua posição frente a outras instituições. Como se tratava de um instrumento avaliativo exterior à escola a partir de parâmetros comuns, era possível compará-las.

Logicamente isso favorecia grandes instituições de ensino que, por meio de seus sistemas, promoviam ajustes em suas grades curriculares e em suas práticas, ministravam cursos intensivos internos para alunos dos 3os. anos e, com isso, conquistavam melhor desempenho no ENEM, a partir do que passavam a empregar esse resultado como merchandising para atrair novos alunos e, logicamente, justificar a elevação do preço das mensalidades. Assim, ainda que custeado pelo governo, o ENEM tinha mais utilidade para as escolas privadas  principalmente as de ponta, caríssimas, e para aquelas que integravam grandes sistemas de ensino.

Com a eleição de Lula e depois de Dilma, o ENEM manteve as matrizes baseadas nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, que receberam aperfeiçoamentos (os PCNs+), mas que não mudaram em essência. Ficaram assim mantidas a organização por Áreas (mais Matemática), a perspectiva das Competências e Habilidades e o caráter facultativo (não obrigatório, o que já era desde a primeira edição, em 1998).

As diferenças essencias foram duas: 1) o ENEM deixa de ser um exame apenas diagnóstico do Ensino Médio para tornar-se porta de acesso para o Ensino Superior público e privado; 2) o ENEM torna-se um exame de escala realmente nacional, geograficamente, e nos números: a primeira edição teve 157.000 inscritos; a de 2015, mais de 8.478.000.

Esse interesse pelo exame, refletido no número gigantesco de inscritos, se deve, é claro, à possibilidade de ter acesso a excelentes universidades públicas e privadas sem a necessidade dos famigerados vestibulares, que sempre favorecem as elites das elites econômicas, que pagam colégios caríssimos a seus filhos para não pagarem uma universidade de ponta, pois o custo é muito mais elevado. Os favorecidos com o formato do ENEM nos governos Lula e Dilma, independente de se gostar ou não desses dois governantes, foram os filhos dos trabalhadores e das classes médias, pois uma boa pontuação no ENEM permite nesse modelo que eles escolham a instituição que, por essa pontuação, lhes faculta o ingresso. O estudante não tem que se deslocar de estado para disputar uma vaga: ele indica as instituições de seu interesse e, sua pontuação permitindo, matricula-se nela e ponto final.

O que se pretende fazer agora é retornar ao modelo antigo: quem quiser prestar vestibular para Direito, por exemplo, terá de se inscrever (e pagar) nos vestibulares de cada faculdade. Para tanto, se elas forem afastadas no espaço, terá de se deslocar para se inscrever e para prestar os exames e  O PIOR  terá de torcer para que os exames não ocorram em datas próximas, caso contrário, não conseguirá se deslocar de uma a outra para prestar os exames. O detalhe é que as instituições marcam os exames em datas COINCIDENTES exatamente para impedir que o candidato dispute vários vestibulares.

Logicamente, esse modelo que se quer reinstaurar é uma MAIORES MARCHAS-À-RÉ da história da educação brasileira. Significa o retorno ao velho sistema de vestibulares e um tiro no coração do ENEM, pois ninguém mais terá interesse em prestar um exame que não serve para nada, a não ser enquanto vitrine para grandes sistemas de ensino e instituições escolares voltadas para as elites das elites econômicas. Na prática, é reinstaurar um sistema de cotas para as elites garantirem o lugar de seus filhos nas melhores universidades públicas e gratuitas  pois essas elas não querem pagar, embora tenham dinheiro para tanto.

Pelo amor de Deus, prof.a Maria Inês Fini, você que é mãe do ENEM, e de quem eu gosto pessoalmente, entenda que ele cresceu e não pode mais voltar à infância nem ao útero materno. Se fizer o que diz na matéria d'O Globo, o estará matando. Aí, nós vamos brigar pra valer. Por mais que eu respeite sua imensa competência intelectual, não aceitarei, não aceitaremos NENHUM DIREITO A MENOS relativo ao que já foi conquistado por nossos educadores, estudantes e pais de alunos deste imenso Brasil. Pense que quase 8.500.000 estudantes, com seus professores, entre os quais me incluo, e pais não são um pequeno exército de descontentes.


Jeosafá, professor, foi da equipe do 1o, ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo na gestão José Serra. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria);  em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora; no mesmo ano publicou A lenda do belo Pecopin da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.



















quarta-feira, 17 de agosto de 2016

CRÔNICA — Então eu morri, bola pra frente

Zé do Caixão: Morrer pode não ser o pior a acontecer a um cidadão.

A primeira vez deve ter sido difícil e extremamente doloroso, afinal convencer-se de que você foi para o beleléu por conta própria, por mão de terceiros ou  por forças superiores ou inferiores  não é coisa a ser mitigada. Mas depois devo ter me acostumado, porque nas vezes seguintes, nem sei quantas mais, acho que nem doeu  se doeu, foi na hora, mas passou.

Quando morrer se torna fato trivial, a gente perde um pouco aquela ilusão, aquela fantasia, aquela dramaticidade. Ok, você diz, morri, bola pra frente. Então ocorre um lance engraçado, pois as pessoas que o empurram para a cova se sentem traídas, putas da vida mesmo, pelo fato de você não estar nem aí nem com elas, nem com suas traições, nem com sua própria morte. Sim, porque essas facadas simbólicas ou reais que lhe deram era para que você nunca mais se esquecesse de quem as deu. Mas qual era mesmo o nome de fulano ou fulana? E o de beltrano ou beltrana? Ixe, memória de morto é uma lástima, né não?

Você esticadão lá no velório, é divertido sacar a cara decepcionada de quem fuxicou sobre sua vida, lhe passou rasteira, lhe deu um empurrãozinho, ou vários, ou um belo tombo para o caixão. Aquela ali, contando piada e escondendo, como pode?, a frustração de não poder mais o sacanear, se rói de nervos só de olhar para sua cara de não tô nem aí com os ´pra lá de vivos de que o mundo está cheio.

Ela se aproxima, olha enviesado, dá a volta entre as velas, encara seu rosto azulado frente a frente  frente a frente não, de cima para baixo  em busca de um sinal que lhe dê o gostinho da vitória final, uma vez você está morto e embalado e ela, viva, mais viva do que nunca: vivíssima; mas... nada.

Ela vê mesmo, ou imagina, um começo de riso no canto da sua boca, enfia a mão na bolsa, tira um antiácido e corre para o bebedouro para, improvisando um copo com as mãos, engolir o pozinho que a salvará da queimação no estômago que você lhe proporcionou.

Morrer a primeira vez é a pior experiência pela qual se possa passar, mas vão por mim, depois que a gente se acostuma, se torna um vício, e já se espera mesmo ser esfaqueado pelas costas com certa ansiedade. O mais divertido é ver a cara de certos vivos (vivos até demais) nas nossas primeiras aparições post-mortem. Em suas caras a gente literalmente lê aquela enorme decepção e vontade de morrer. Porém, fica o aviso: morrer mais de uma vez não é para qualquer um, ou uma, se caso for. Nana nina nana. Requer compostura, discrição, profissionalismo  e não admite improvisos ou amadores.


Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).

sábado, 13 de agosto de 2016

Professor às vezes dá uma dentro

Psiquiatra Nise da Silveira, que nos ensinou a mergulhar no poço cego de nossas emoções para transformá-las em linguagem.

Depois de trombadas, confrontos, provocações, advertências, "duras" e outros atritos com alunos, decidi pôr em prática um pouco de psicologia da educação que andei deixando de lado para entrar “de sola” os conteúdos da apostila, objeto de tédio dos alunos e de grandes reflexões filosófica da minha parte.

 Abrindo rodas de conversa sobre seus medos, pesadelos, inseguranças, conflitos pessoais etc., decidimos atacar furiosamente as páginas de nossos cadernos (sim, pois quem entra na roda tem que sambar) para desenhar esses pavorosos fantasmas que nos atormentam e dos quais temos mais medo do que o conde Drácula de uma estaca de pau.

 Até os comportamentos se ajustarem à ideia de compartilhamento da intimidade por meio da conversa, deu um certo trabalho, pois certas regras de privacidade e civilidade são essenciais, mas em tempo bastante curto todos já queriam pôr para fora seus fantasmas, empregando linguagem a mais significativa e analítica  possível.

A partir das conversas, todos produziriam desenhos e os comentariam na roda de conversa. Desenhos e mais desenhos apareceram, explicados em grande círculo ou em pequenas rodas por quem os viu e por quem os fez –  que muitas vezes não percebe o alcance dos símbolos que empregou para representar ora sonhos e pesadelos, ora lembranças angustiantes, ora simplesmente medo de fracassar.

(E aqui abro parênteses. Eesse medo surgiu muito forte, o fracasso do pessoal – o que é uma carga bastante pesada e precoce para adolescentes suportarem, reflexo da instabilidade que o Brasil e o Mundo têm vivido. Fecho parênteses).

O grito (1893). Edvar Munch.
As aulas a partir desses encontros prenhes de carga emocional se tornaram mais leves, e os alunos desejaram continuar essa forma de produzir textos a partir dessas conversas coletivas. Os desenhos, acompanhados de mensagens verbais ainda "irracionais" no verso da página, logo se transformam em poemas, redações e textos reflexivos.

Observei que grande parte da bagunça, da indisciplina, das provocações e conflitos entre os adolescentes nascem da insegurança em relação ao futuro, o que os deixa instáveis e explosivos.

O que nós adultos estamos prometendo a eles mesmo?

A julgar pelos desenhos, o fim do mundo, o Apocalipse. Isso não é justo! Até porque é mentira, o mundo vai continuar, a despeito de parte das atuais gerações adultas preferirem o ódio, o preconceito e a violência.

Alguns rejeitam a aula com pressa de se haverem logo com os problemas adultos que os angustiam fora de hora: o mercado de trabalho, a faculdade, a sobrevivência família. Porém, como a idade ainda não permite que eles encarem esses ossos duros, eles se angustiam e introjetam problemas cujas soluções ainda não lhes dizem respeito.

 Sem ter como interferir nessa carga que indevidamente as gerações adultas atuais jogam sobre seus ombros, e sem ter como e com que se expressar, explodem na sala de aula atirando estojos, trocando empurrões e às vezes socos com os colegas, “infernizando” a vida do professor ou dos pais, ou simplesmente dormindo sobre a carteira, desistindo das lições de casa, enterrando-se no celular em busca de bonequinhos que os façam sorrir – ou acordando de madrugada aos prantos.

É preciso ensiná-los a expressar seus medos e sonhos, a devolver aos adultos a carga indevida, e acenar a eles a possibilidade de um mundo melhor, pois não é justo que as gerações adultas atuais consintam em entregar a seus filhos e netos, e antes do tempo!, um mundo pior do que encontraram. Precisamos agir imediatamente e tirar esse peso das costas de crianças, adolescentes  e jovens.

E se os alunos pedirem que a conversa e produção de imagens de seus medos continuem? Como ficará a apostila do bimestre?

Como os gregos e romanos que tinham o Destino acima dos demais deuses, sugiro entregar a ele esse mister, esse enigma crucial para a educação estrangulada pela lógica do consumo.



Jeosafá é escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria),  em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora, e no mesmo ano A lenda do belo Pecopin da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela Mercuryo Jovem. Leciona para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados de São Paulo.