quarta-feira, 17 de agosto de 2016

CRÔNICA — Então eu morri, bola pra frente

Zé do Caixão: Morrer pode não ser o pior a acontecer a um cidadão.

A primeira vez deve ter sido difícil e extremamente doloroso, afinal convencer-se de que você foi para o beleléu por conta própria, por mão de terceiros ou  por forças superiores ou inferiores  não é coisa a ser mitigada. Mas depois devo ter me acostumado, porque nas vezes seguintes, nem sei quantas mais, acho que nem doeu  se doeu, foi na hora, mas passou.

Quando morrer se torna fato trivial, a gente perde um pouco aquela ilusão, aquela fantasia, aquela dramaticidade. Ok, você diz, morri, bola pra frente. Então ocorre um lance engraçado, pois as pessoas que o empurram para a cova se sentem traídas, putas da vida mesmo, pelo fato de você não estar nem aí nem com elas, nem com suas traições, nem com sua própria morte. Sim, porque essas facadas simbólicas ou reais que lhe deram era para que você nunca mais se esquecesse de quem as deu. Mas qual era mesmo o nome de fulano ou fulana? E o de beltrano ou beltrana? Ixe, memória de morto é uma lástima, né não?

Você esticadão lá no velório, é divertido sacar a cara decepcionada de quem fuxicou sobre sua vida, lhe passou rasteira, lhe deu um empurrãozinho, ou vários, ou um belo tombo para o caixão. Aquela ali, contando piada e escondendo, como pode?, a frustração de não poder mais o sacanear, se rói de nervos só de olhar para sua cara de não tô nem aí com os ´pra lá de vivos de que o mundo está cheio.

Ela se aproxima, olha enviesado, dá a volta entre as velas, encara seu rosto azulado frente a frente  frente a frente não, de cima para baixo  em busca de um sinal que lhe dê o gostinho da vitória final, uma vez você está morto e embalado e ela, viva, mais viva do que nunca: vivíssima; mas... nada.

Ela vê mesmo, ou imagina, um começo de riso no canto da sua boca, enfia a mão na bolsa, tira um antiácido e corre para o bebedouro para, improvisando um copo com as mãos, engolir o pozinho que a salvará da queimação no estômago que você lhe proporcionou.

Morrer a primeira vez é a pior experiência pela qual se possa passar, mas vão por mim, depois que a gente se acostuma, se torna um vício, e já se espera mesmo ser esfaqueado pelas costas com certa ansiedade. O mais divertido é ver a cara de certos vivos (vivos até demais) nas nossas primeiras aparições post-mortem. Em suas caras a gente literalmente lê aquela enorme decepção e vontade de morrer. Porém, fica o aviso: morrer mais de uma vez não é para qualquer um, ou uma, se caso for. Nana nina nana. Requer compostura, discrição, profissionalismo  e não admite improvisos ou amadores.


Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).

sábado, 13 de agosto de 2016

Professor às vezes dá uma dentro

Psiquiatra Nise da Silveira, que nos ensinou a mergulhar no poço cego de nossas emoções para transformá-las em linguagem.

Depois de trombadas, confrontos, provocações, advertências, "duras" e outros atritos com alunos, decidi pôr em prática um pouco de psicologia da educação que andei deixando de lado para entrar “de sola” os conteúdos da apostila, objeto de tédio dos alunos e de grandes reflexões filosófica da minha parte.

 Abrindo rodas de conversa sobre seus medos, pesadelos, inseguranças, conflitos pessoais etc., decidimos atacar furiosamente as páginas de nossos cadernos (sim, pois quem entra na roda tem que sambar) para desenhar esses pavorosos fantasmas que nos atormentam e dos quais temos mais medo do que o conde Drácula de uma estaca de pau.

 Até os comportamentos se ajustarem à ideia de compartilhamento da intimidade por meio da conversa, deu um certo trabalho, pois certas regras de privacidade e civilidade são essenciais, mas em tempo bastante curto todos já queriam pôr para fora seus fantasmas, empregando linguagem a mais significativa e analítica  possível.

A partir das conversas, todos produziriam desenhos e os comentariam na roda de conversa. Desenhos e mais desenhos apareceram, explicados em grande círculo ou em pequenas rodas por quem os viu e por quem os fez –  que muitas vezes não percebe o alcance dos símbolos que empregou para representar ora sonhos e pesadelos, ora lembranças angustiantes, ora simplesmente medo de fracassar.

(E aqui abro parênteses. Eesse medo surgiu muito forte, o fracasso do pessoal – o que é uma carga bastante pesada e precoce para adolescentes suportarem, reflexo da instabilidade que o Brasil e o Mundo têm vivido. Fecho parênteses).

O grito (1893). Edvar Munch.
As aulas a partir desses encontros prenhes de carga emocional se tornaram mais leves, e os alunos desejaram continuar essa forma de produzir textos a partir dessas conversas coletivas. Os desenhos, acompanhados de mensagens verbais ainda "irracionais" no verso da página, logo se transformam em poemas, redações e textos reflexivos.

Observei que grande parte da bagunça, da indisciplina, das provocações e conflitos entre os adolescentes nascem da insegurança em relação ao futuro, o que os deixa instáveis e explosivos.

O que nós adultos estamos prometendo a eles mesmo?

A julgar pelos desenhos, o fim do mundo, o Apocalipse. Isso não é justo! Até porque é mentira, o mundo vai continuar, a despeito de parte das atuais gerações adultas preferirem o ódio, o preconceito e a violência.

Alguns rejeitam a aula com pressa de se haverem logo com os problemas adultos que os angustiam fora de hora: o mercado de trabalho, a faculdade, a sobrevivência família. Porém, como a idade ainda não permite que eles encarem esses ossos duros, eles se angustiam e introjetam problemas cujas soluções ainda não lhes dizem respeito.

 Sem ter como interferir nessa carga que indevidamente as gerações adultas atuais jogam sobre seus ombros, e sem ter como e com que se expressar, explodem na sala de aula atirando estojos, trocando empurrões e às vezes socos com os colegas, “infernizando” a vida do professor ou dos pais, ou simplesmente dormindo sobre a carteira, desistindo das lições de casa, enterrando-se no celular em busca de bonequinhos que os façam sorrir – ou acordando de madrugada aos prantos.

É preciso ensiná-los a expressar seus medos e sonhos, a devolver aos adultos a carga indevida, e acenar a eles a possibilidade de um mundo melhor, pois não é justo que as gerações adultas atuais consintam em entregar a seus filhos e netos, e antes do tempo!, um mundo pior do que encontraram. Precisamos agir imediatamente e tirar esse peso das costas de crianças, adolescentes  e jovens.

E se os alunos pedirem que a conversa e produção de imagens de seus medos continuem? Como ficará a apostila do bimestre?

Como os gregos e romanos que tinham o Destino acima dos demais deuses, sugiro entregar a ele esse mister, esse enigma crucial para a educação estrangulada pela lógica do consumo.



Jeosafá é escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria),  em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora, e no mesmo ano A lenda do belo Pecopin da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela Mercuryo Jovem. Leciona para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados de São Paulo.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

O poço cego do inconsciente, a vara, a linha, o anzol e a isca

Dor. Carvão. Claudindei Roberto, 1985.

Trato aqui um bocadinho, mas bem bocadinho mesmo, do mundo subjetivo, que pode ser representado das mais diversas maneiras, por todas as artes e linguagens. Raiva, paixão, medo, euforia, saudade, lembranças, sonhos, pesadelos entre outros são tornados conscientes por meio das linguagens, mas pertencem ao obscuro mundo do inconsciente individual humano, no qual a razão e as leis científicas têm pouco espaço.

Tornar consciente essa dimensão oculta de nós mesmos permite que aprendamos com ela, que conquistemos um mínimo de controle sobre emoções, sentimentos e pensamentos e, o principal, que criemos formas para viver melhor.  

Os textos verbais subjetivos (descrições, narrações, dissertações) são mecanismos para trazermos nossos fantasmas, medos, fantasias (boas ou más) para a luz. À luz da plena consciência, eles não nos assustam mais, nem hipnotizam e, símbolos que são, podem ser lidos, analisados, interpretados e compreendidos – passo decisivo para que assumamos domínio na construção e transformação de nossa integridade emocional e intelectual, e de nossa identidade individual e social. 

Enquanto nos textos objetivos, entre os quais os informativos, as regras da estruturação seguem modelos consagrados (a notícia tem um formato pré-estabelecido, assim como os textos dissertativos, por exemplo), nos textos subjetivos, embora haja gêneros canônicos (conto, crônica, poema, romance, teatro entre outros), o que conta é a total liberdade de criação. 

Isso ocorre porque não há a menor possibilidade de que a subjetividade aflore na ausência de liberdade de expressão. Em um texto subjetivo, em primeiro lugar está a adequação da forma à expressão da emoção, dos sentimentos, das sensações do autor. 

A coerência a que um texto subjetivo deve acorrer é a coerência interna a ele. A verdade desse gênero de texto é a verdade inventada em seu próprio interior. Nele, pedras podem voar, animais podem filosofar; seres humanos podem se converter em monstros e voltar à forma humana; de uma cena a outra, pode-se morrer e ressuscitar, se transmutar, levitar. 

Os textos subjetivos flertam com os sonhos, com os pesadelos, com o mágico, com o impossível, sob a ótica da razão chã. Acontece que o indivíduo humano enlouqueceria se não sonhasse (dormindo ou acordado) voar, viver aventuras de risco total, desvendar ou defender segredos vitais ou mortais. 

E enlouqueceria também se não conseguisse se livrar de seus pesadelos ou expressar suas fantasias e desejos por meio do teatro ou da pintura, do romance ou da música, da dança ou do cinema, da poesia ou da história em quadrinhos. 

Quanto sofremos perdas dolorosas, somos atirados num poço sem fundo de luto e tristeza. Se não pescarmos nas águas desse poço cego os símbolos por meio dos quais se possa converter essa dor, esse sofrimento, em uma nova narrativa, estaremos perdidos no labirinto de nossa própria subjetividade atormentada. 

Em situações como essas só a arte nos salva. Ainda que a arte pouco festejada: a de se aprender com a própria dor (não por acaso a psicanálise recorre à literatura desde seu surgimento). 

Por mais que resistamos, se desejamos seguir em frente, é preciso pescar no poço cego das perdas – e a linguagem em geral e as artísticas em particular são essa vara, essa linha, esse anzol e essa isca.



Jeosafá é escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria),  em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora, e no mesmo ano A lenda do belo Pecopin da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela Mercuryo Jovem. Leciona para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados de São Paulo.