quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Professor tem que ter nervos de aço e coração de pedra - só que não

Acordar às quatro e meia da matina, tomar um café rápido, dar vistas no material didático e no planejamento do dia, fazer o check list na bolsa (apostilas ok, lapiseira ok, borracha ok, canetões de lousa branca ok, canetas ok, etc. ok), pôr o lixo na rua, ir para o ponto de ônibus ainda noite escura, encarar a linha Morro Doce - Praça Ramos sempre superlotada, mesmo às 5 a manhã, obrigado prefeito, depois a do trem da CPTM nas mesmas condições, obrigado governador, depois o Metrô, percurso Barra Funda - Tatuapé nas mesmas condições, obrigado novamente governador, mais vinte minutos a pé subindo a rua Tuiuti, ufa!

No caso de hoje - que dormi mal, depois de ter dormido mal ontem -, mal me equilibrei no ônibus, fui praticamente de quatro dele à estação de trem Domingos de Moraes, me arrastei dela pela conexão à estação do Metrô e estava em tal estado de sonambulismo que me cederam o lugar dos idosos para que eu desabasse sobre o assento azul da composição.

E nunca a estação Tatuapé do Metrô ficara tão distante da portaria da escola.

Sete e meia em sala de aula é a lei para o que desse e viesse, às vezes numa boa, às vezes no maior stress. No caso de hoje, o pior estava por vir, palpitava meu coração. Acho que você não chega ao fim do dia, cochichava meu pessimismo nos meus tímpanos sensíveis pela noite de insônia.

Eis que uma turma do Ensino Fundamental, que tinha tudo para me moer feito carne de segunda, resolve patrocinar sua melhor aula do ano. Que estranho, pensava meus neurônios esbugalhados, enquanto os grupos discutiam objetividade e subjetividade na linguagem, ansiosos por saber o que são pulsões, impulsos e compulsões, e como eles se manifestam nos sonhos e quando estamos acordados, na fala como na escrita, no poema como na canção.

Eis que depois, no meio da manhã, do nada, um aluno, este do Ensino Médio, abre a porta da classe em que a aula corria às maravilhas e me põe nas mãos um catatau de páginas e páginas manuscritas com seus poemas raivosos contra a injustiça, cheios de vontade de viver, de paixões e das coisas mais verdadeiras que um coração de jovem pode inventar.

A manhã se encerra com a última aula encontrando alunos de um sexto ano Fundamental curtindo com surpresa cheia de curiosidade as origens históricas da palavra paixão, entre fósseis do latim incrustados nas palavras pateta, apático, simpático, antipático, patologia - e ecos deles nas palavras psicopataapaixonar, passional, entre outras.

O dia estava salvo, pensei ao cruzar o portão de saída da escola.

Porém, rumo ao Metrô, com uma leve dor de cabeça por causa do sono persistente, dois alunos do Ensino Médio me encontram pelo caminho e me acompanham pela rua abaixo. Ela, contente com as notas de redação do bimestre, pura simpatia, ele, com quem já troquei conversas sobre seus ótimos textos, interessado em saber o que eu achara de sua narrativa sobre uma utopia por ele inventada, aliás, excelente, o que não me desobrigou de corrigir um erros de coesão e outros de uso dos tempos verbais.

Quando a moça se despediu e seguiu seu caminho, continuamos conversando até a estação Tatuapé do Metrô sobre nada menos do que... Scott Fitzgerald, de O grande Gatsby, J. D. Salinger, de O apanhador no campo de centeio, e Marcel Proust, de No caminho de Swann (Um dos sete livros de Em busca do tempo perdido), que ele lera durante as férias.

Enquanto ele falava sobre Fitzgerald, Salinger e Proust, com a empolgação de que só um coração de estudante é capaz, eu o ouvia atento, chocado mesmo com a fraqueza em que me via flagrado, de coração batendo nos tímpanos, e pensava comigo: "Deus, piedade, como é dura a vida do professor, quando a gente acha que vai ter o direito de desabar e ser esmagado, vem socorro de todo lado".
Tem que se ter nervos de aço e coração de pedra, não é mesmo?

Quando me despedi do aluno, que atravessou a passarela enquanto eu me dirigia aos bloqueios, um maldito verso do Drummond atacou minhas coronárias (que segundo meus cardiologistas deveriam bater pum-pum, pum-pum; mas batem puf-pum, puf-pum):

Meu coração cresce dez metros e explode.

Se eu não me lembrasse do verso seguinte, último do poema Mundo Grande, era agora que meu coração explodiria, mesmo - porque eu estava num daqueles dias piegas, autocomiserativos, bom de entregar os pontos. Mas... eu me lembrei:

- Ó vida futura! Nós te criaremos.

Me lembrei e me salvei. Melhor, fui salvo. E um dia que não ia valer de nada, acabei desejando que não terminasse.


Jeosafá é escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria),  em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora, e no mesmo ano A lenda do belo Pecopin da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela Mercuryo Jovem. Leciona para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados de São Paulo.

domingo, 31 de julho de 2016

Andrea, eu e o Grande Arrasador de Mundos

Andrea, eu e O grande arrasador de mundos.
No fim do ano passado, acho que em dezembro, visitando o amigo jornalista, presenteei-lhe com alguns livros infantis que publiquei por algumas boas editoras paulistas. Ele reservou um ou dois para seus netos e um, voltado a meninas, para uma de que gosta muito: O Grande Arrasador de Mundos - a história de uma mocinha que enfrenta em sonho um cruel alienígena de cabeça de lata.

Na semana seguinte ele, jornalista das antigas, que acompanha o desenvolvimento dos fatos de perto e às vezes de dentro, me voltou com a notícia: Andrea, pois ela assim se chama, de sete anos, já tinha lido esse livro na biblioteca da escola e adorara. Ficou feliz da vida de ter ganho o livro.

Na semana passada, a mãe da linda leitora nos convidou para um rápido jantar cubano em sua casa, para que nos conhecêssemos. Ivete, pois assim a mãe se chama, além do jantar, nos recebeu com um afeto de antigos amigos, identidade que talvez só o mundo do livro propicie.

Ao abrir a porta do apartamento, Andrea, que já nos esperava, pegou minha mão e me conduziu diretamente à mesa em que o livro esperava: eu tinha que autografar e deixar uma dedicatória especial para ela. Ela me mostrou alguns livros autografados por autores a sua mãe, entre os quais um de Frei Beto.

Jornalista Vitor Ribeiro
Assim, fiz, mas não sem antes recortamos papéis, desenharmos personagens e contarmos histórias um ao outro. Ela tem um caderno cheio delas, escritas por ela mesma, algumas com desenhos. Lemos várias e ganhei uma, que não mostro aqui pois é segredo. Ser escritor e professor tem seus espinhos, mas também tem seus momentos de grande felicidade - que dinheiro nenhum no mundo paga.

À saída, ficamos, eu e meu amigo jornalista, gastando um pouco de tempo na calçada do prédio, ele fumando e filosofando sobre o mundo cão em que vivemos; eu, esperando o halo do que acabara de acontecer se dissipar para dirigir em segurança, sim, pois a delicadeza também embriaga, e eu não queria ser pego numa blitz desse mundo supracitado.

Vitor Riberio, pois assim se chama meu amigo jornalista, jogou a guimba do cigarro dele em local apropriado e nos despedimos com olhar otimista, daqueles a quem foi dado o sortilégio de vislumbrar por um instante que o pior mundo cão não resiste ao calor da mão e do olhar de uma criança.


Jeosafá é escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria) e  em maio deste ano, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora. Leciona para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Podemos transformar a nós mesmos?

Escrevi este texto para trabalhar com alunos de 8o. e 9o. anos do Ensino Fundamental.

Muitas vezes não nos damos conta, mas certas ações, hábitos, costumes e valores que praticamos diariamente sem pensar podem nos prejudicar mediata ou imediatamente (ao longo do tempo). Como vivemos em sociedade, recebemos dela hábitos e costumes sobre os quais nunca nos ocorreu refletir. Todavia, os objetivos de nossos pais, avós, amigos, colegas de escola, rua ou bairro, não são os nossos, pois cada um tem que ir estabelecendo os seus próprios objetivos, em meio aos objetivos de cada grupo, instituição ou organização de que faz parte.

O problema é que poucas vezes somos alertados para os objetivos desses grupos, instituições e organizações - e menos ainda para a necessidade de estabelecermos claramente os nossos próprios objetivos. O resultado disso é que acabamos praticando ações, desenvolvendo hábitos, assumindo costumes que, se no curto prazo nos dão prazer, no médio e no longo podem liquidar nossos sonhos.

Uma ação praticada com frequência, torna-se hábito e rapidamente em costume. Não prestamos muita atenção a nossas ações, mas elas podem, quando irrefletidas, resultar em conflitos de pequenas, médias ou grandes consequências. Se estamos habituados a falar alto em qualquer circunstância, ou a usar o som alto em nossos celulares, sem perceber podemos fazê-lo em um ambiente, como o ônibus, ou falar em um tom de voz que incomodará os que estiverem ao redor.

Entre os incomodados, haverá aqueles que evitarão conflitos, suportando a contragosto o que se-lhe dá como mera gafe de um usuário distraído. Porém, um dia haverá o que, por razões quaisquer, buscará o conflito, não se preocupando com as consequências, menos ou mais trágicas.

Conflitos nos transportes coletivos ou no trânsito, infelizmente, com certa frequência, terminam em violência e mesmo morte.  Isso ocorre porque um hábito particular, imposto aos outros por quem o pratica, ainda que involuntariamente, detona uma situação que foge ao controle dos que estão nela envolvidos. É assim que muitos sonhos ficam interrompidos definitivamente por ações, hábitos, costumes e valores que, a rigor, são contrários a esses mesmos sonhos.

Refletir sobre nossas ações, hábitos, costumes e valores, em face da coletividade de que fazemos parte, dos objetivos dessa coletividade e dos nossos próprios é uma forma de evitar todo conflito desnecessário. Sim, pois, para conquistarmos nossos sonhos e objetivos, é necessário enfrentar e superar os conflitos a eles inerentes.

No final das contas, ações, hábitos, costumes e conflitos que não nos aproximam, ou nos distanciam de nossos objetivos, ou põem em risco nossos sonhos ou a nós mesmos, é energia e tempo desperdiçados.

— Preciso discutir isso com os alunos.

— Ah, não vai fazer nada disso. Vai trabalhar a apostila que está bom demais — interpelou a diretora.