quinta-feira, 3 de abril de 2014
Cláudio: um amigo, poeta e samurai
Esta manhã eu tive um sonho maravilhoso, em preto e branco. O preto, em suaves nuanças foscas, o branco, em desvanecentes laivos de água. O preto e o branco desse sonho eram uma onda graciosa, cuja linha de contorno ameaçava partir-se no topo, mas que, em movimento ágil, na queda, recuperava, sem desfazer, a forma de circunferência e, num looping perfeito, após recompor-se em meio à brancura esfumaçada central nebulosa, na extremidade inferior reassumia a forma perfeita de circunferência, retornando com leveza ao topo da figura geométrica, ponto em que se projetava para frente, originando, espiraladamente, uma nova circunferência.
Com certeza, só me recordo desse sonho porque estava prestes a acordar. Por sorte, no momento em que o sonho terminou, eu despertei - pois às vezes despertamos e perdemos o final do sonho para sempre. Para não esquecê-lo, fui até a saca respirar o ar da manhã que se iniciava, ainda a tempo de me despedir de minha companheira e meu filho, que partiam para a escola, ela para dar aulas, ele para recebê-las de outros professores. Na verdade, meu despertar coincidiu com ela beijando-me a testa em despedida para o trabalho, como faz todas as manhãs. Da sacada acenando, com o sonho impresso nos olhos e no espírito, decidi que precisava registrá-lo em uma crônica, antes que ele se desfizesse inteiramente no curso dos dias e no reino da desmemória.
Não é a primeira vez que algo assim me ocorre. Quando me dediquei mais intensamente à poesia, não era raro sonhar com palavras ou mesmo pequenos poemas inteiros, escritos no papel já em sonho. Quando me doutorei, sonhei com parágrafos frequentemente. Isso sem falar em soluções exatas de problemas literários levantados durante a produção da tese.
Em meu romance Zona Sul, após longa pesquisa e finalizada a fase de planejamento, tive uma certa dificuldade de iniciar a escrita. Como tinha outros afazeres profissionais, posterguei o início da redação, mas fiquei incomodado com essa dificuldade. Certa manhã, mais ou menos no mesmo horário do que ocorreu hoje, tive um sonho estranho. Despertei-me em seguida. Minha companheira se preparava para sair ao trabalho, então contei-lhe o sonho, enquanto ela tomava seu café. Ao final da narrativa deu-me um estalo: era o capítulo inicial do romance, que inclui um cenário cujo pano de fundo é o atormentado Jardim das Delícias, de Hieronymus Bosh. Redigi o rascunho e fiquei uma semana a registrar com minúcia o sonho que tinha início, meio e fim.
Hoje, um mestre japonês da poesia - cuja presença no sonho é apenas uma voz e duas mãos que seguram uma gravura - me explica a íntima ligação entre a poesia e a arte samurai. Essas mãos são brancas e os punhos de seu quimono são preto-fosco.
Ele me diz que a concentração de linguagem da arte da poesia só encontra comparação na concentração necessária à arte samurai. Ele está ao meu lado, por isso no sonho só lhe são visíveis as mãos que seguram a gravura e os punhos largos de seu quimono escuro.
A descrição no parágrafo inicial desta crônica é a do desenho impresso nessa gravura. Para explicar-me o significado dela, ele solicita que outro mestre nas duas artes execute movimentos de arte samurai com sua espada. O mestre solicitado tem a parte de cima do quimono, branca, amarrada com um largo cordão preto; a parte debaixo, preta e esvoaçante. O mestre samurai nos cumprimenta como a tradição manda, afasta-se um tanto. Agora, o cenário é de neblina, tal como o da gravura. Ele, estático, ergue sua espada, executa três giros com ela, para-a em movimento de ataque. Súbito, usando a ponta da espada como eixo central, dá um impulso vertiginoso para a frente e para cima, atira ambas as pernas par o alto, gira no eixo da ponta da espada, o que resulta em uma circunferência perfeita. Ao tocar o chão, mal se-lhe veem os pés: novo impulso, nova circunferência; e ainda outro e outra.
Ao final dessa sequência impressionante de três circunferências sucessivas articuladas por sucessivos loopings, o que resulta é o mesmo desenho impresso na gravura. O mestre solicitado acolhe a espada em ambos os braços formando um ninho e, como estivesse com uma criança no colo, cumprimenta-nos cerimonialmente, e desaparece na neblina branca, primeiro a parte inferior de seu corpo, depois, o busto. Essa imagem desvanecente de busto é uma belíssima fotografia preto e branco em sfumato de um jovem samurai.
O mestre poeta então explica, apontando com o dedo a gravura: no início da sequência espiral da gravura, há um ideograma japonês. Suas partes se desfazem da esquerda para a direita, assumem forma de linha. A linha forma três circunferências a partir de três sucessivos loopings. A a linha, ao formar a terceira circunferência, a partir do topo, se desfaz e se transforma no mesmo ideograma inicial. O mestre diz que eu não vejo, nem ele, mas no centro de cada circunferência, está o ideograma girando vertiginosamente, tão vertiginosamente que nem se pode saber quantos giros deu para se tornar invisível aos olhos - tal como fizera o mestre samurai ao realizar a demonstração com sua espada inicialmente reluzente, depois, também invisível.
Do mestre a explicar a gravura não vi mais que as mão e os punhos do quimono, mas sua voz era serena e entorpecente. Se a face de quem me deu essa lição de poesia ficou oculta, o mesmo não ocorre com a do outro, o mestre samurai. Vi nitidamente o busto que se esfumaçou: era nada menos que o do poeta e meu amigo Cláudio Daniel. Cláudio, esta crônica eu fiz para você, porque o sonho se fez sozinho - e não me coube mais do que o pálido registro escrito, que recolheu muito menos do que sonhei.
É nessa hora que invejo meus amigos Claudinei Roberto, Mazé Leite e João Pinheiro - artistas plásticos os primeiros, ilustrador e quadrinhista o último. Eles podem, ao acordar, converter em imagens visuais as imagens de seus sonhos. Eu, afundado em letras, não.
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014
O jovem Mandela: entrevista à Galileu
Entrevista a Murilo Roncolato, da revista Galileu, em 26 de junho de 2013.
1) Você fez um livro romance baseado na juventude de Nelson
Mandela. Fale mais sobre ele, você se baseou em pesquisa histórica para
fazê-lo?
O Jovem Mandela tem aspectos biográficos,
históricos e literários, uma vez que é uma biografia na forma de romance.
Durante minha pesquisa de doutorado em Letras, defendido em 2002, na USP, e
concentrado em literaturas africanas em língua portuguesa, fiz uma ampla e
profunda pesquisa sobre os processos revolucionários e de independência na
África, que estão ligados complexamente. Na ocasião estudei, não só por força
da pesquisa, mas também por opção pessoal, o papel de muitos líderes africanos,
entre os quais Léopold Senghor, Patrice Lumumba, Agostinho Neto, Amílcar
Cabral, Samora Machel e Nelson Mandela, que, na verdade, encantou minha
geração.
Defendido o doutorado, continuei minhas leituras sobre a
África pelo amor que dedico a nossas raízes de matrizes africanas e à
literatura que vem de lá (o recente prêmio Camões ao moçambicano Mia Couto é um
reconhecimento justo e até tardio).
A editora Nova Alexandria havia proposto o projeto de uma
biografia romanceada a outros autores. Felizmente para mim, a editora gostou
mais do meu, que envolve pesquisa bibliográfica nos campos da história e da
literatura, num texto em que ficção e realidade se articulam no corpo do
próprio texto literário, apoiado por hipertextos remissivos de natureza
histórica.

Para escrever, retomei anotações e arquivos da época de meu
doutorado, e mergulhei no que de mais atual se publicou no Brasil sobre Mandela
(o que é pouquíssimo!) e sobre a África. Em razão da escassez, pesquisei também
bibliografia em inglês e francês. O essencial empregado para a redação do
romance consta no capítulo Bibliografia, do volume.
Ao escrever o romance, convoquei, além de depoimentos do
próprio Nelson Mandela, testemunhos de outros homens que enfrentaram situações
igualmente dramáticas. Assim, comparem no texto sombras de Graciano Ramos, de
Memórias do Cárcere, e laivos de Dostoiévski, de Recordações da Casa dos
Mortos, mas também, como uma espécie de marca d’água, de palimpsesto,
personagens literários tais como monsieur Mersault, o
condenado de O Estrangeiro, de Camus; o poeta triste da Garoa do Meu São Paulo,
de Mário de Andrade, o poeta lírico de Mensagem à Poesia, de Vinicius de Moraes
entre outros.
Em sua autobiografia Longa Caminhada até a Liberdade Mandela
se diz, do ponto de vista emocional, romântico. Assim, os lapsos de sua
história não declarada, eu preenchi com as tintas da melhor literatura. Que tem
lido, tem gostado de enxergar Mandela pela lente de clássicos da literatura
mundial e brasileira. Acho que acertei a mão, porque, você sabe, ao aproximar
realidade e ficção, os riscos são sempre grandes.
2) Qual fato da vida de Mandela você julga mais importante?
Não há dúvida de que comandar as negociações delicadíssimas
pelo fim do apartheid de dentro da prisão é o momento mais dramático e, ao
mesmo tempo, mais sublime de sua vida. Costurar no ninho do inimigo o fim do
próprio ninho, tendo ainda que reconquistar a confiança da direção do CNA,
fazendo vazar homeopaticamente para os companheiros, de dentro da prisão, os
movimentos que vinha executando, foi algo realmente genial. É lógico que, após
ser libertado, o período que se seguiu foi também de ápices sucedendo ápices.
Neutralizar na ocasião a influência de Mangosuthu Buthelezi, do partido
zulu Inkhata, que comandava massacres contra manifestações pacíficas do CNA, e
derrotar as forças mais renitentes do regime do apartheid até a realização das
eleições livres, compreende um período dramático e glorioso, mas todo ele
iniciado pelas negociações secretas que Mandela comandou da prisão. Mas isso
sou eu quem digo. Quem sabe se o momento mais glorioso não tenha sido a saída
da prisão, cujas imagens históricas atravessarão os séculos? Ou quem sabe não é
de seu sorriso no dia 27 de abril de 1994, quando depositou o voto na urna e
declarou à imprensa mundial, ao 76 anos de idade: “Votei pela primeira vez na
vida”? Ou quem sabe não foi o nascimento de seus filhos, uma vez que ele sempre
foi muito apegado à família? Não sou ninguém para dizer qual terá sido o fato
mais importante de sua vida. Para nós, os que amamos a igualdade e a justiça
social, o fato mais importante é ele ter nascido, a 18 de julho, dia eleito
pela ONU como Dia Internacional Nelson Mandela pela Liberdade, Justiça e
Democracia.
3) Por que Mandela teve uma adolescência radical e adquiriu
um posicionamento mais pacífico depois de sair da prisão?
Na vida de Mandela passa a história da África do Sul e
do mundo do século XX. O CNA foi fundado em 1912 sob inspiração de Mahtama
Ghandi e seu princípio de não-violência. Porém, contraditoriamente, quando a
humanidade se livrava do nazismo, a África do Sul enveredou pelo apartheid, de
inspiração abertamente nazista. Como a solução final preconizada por Hitler não
tinha mais condições reais de ser implementada, a saída encontrada pelos
racistas do Partido Nacional Purificado, de Daniel Malan, guindado ao poder em
1948, foi o estabelecimento de uma enxurrada de leis para “convivência em
separado”, o chamado apatheid. Nesse cenário novo, assistido com um sorriso
condescendente de EUA, Inglaterra e França, principalmente, mesmo manifestações
pacíficas foram reprimidas com brutalidade. A deportação em massa de populações
negras, com o máximo de violência, a qualquer hora do dia dou da noite, para a
savana sem as mínimas infraestrutura urbana, o assassinato sob tortura de
comunistas, democratas, militantes políticos e até neutros, levaram o CNA a
mudar de postura. Nessa situação é que Nelson Mandela, fundador e líder da Liga
da Juventude do CNA, recebe autorização do mesmo CNA para criar o MK, sigla de Umkhonto
we Sizwe (Lança da Nação), nome criado pelo próprio Nelson Mandela para
designar o braço armado do Congresso, qual foi comandante até ser preso.
Assim, não se trata de ter sido radical antes e pacífico
depois, mas de, no curso da luta contra o apartheid, decidir a melhor
estratégia de alcançar o objetivo final assumido pelo CNA: conquistar uma nação
não pluri ou multirracial, mas uma nação NÃO RACIAL.
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Ouça a entrevista no Opera Mundi clicando aqui. |
O posicionamento pelas vias pacíficas foi combinado com o
não abandono das armas, ou seja, o abandono das armas esteve condicionado, nas
negociações por ele empreendidas, ao compromisso do regime de realizar eleições
livres. Uma vez isso feito, o apartheid estaria liquidado, pois a imensa
maioria negra indo às urnas tinha a arma de que o regime não dispunha: votos.
4) Por fim, a África do Sul e o mundo tem o que a aprender com Mandela e, sem
ele, o país sul-africano tende a manter sua situação equilibrada e liberal?
Dizer o que a África do Sul virá a ser e um exercício de
futurologia ao qual não me arrisco. Porém, se esse país e o mundo se debruçarem
sobre os eventos que encontram na vida e na figura de Nelson Mandela ponto de
convergência, muitas lições serão extraídas. Uma delas, com certeza, é a de que
nenhum sistema econômico e político se mantêm com base na exclusão social de
muitos para benefícios de poucos.
O jovem Mandela. De líder rebelde e combatente do regime segregacionista a presidente da África do Sul, a trajetória de Nelson Mandela é em tudo fascinante. Condenado à prisão perpétua por sua luta em prol da igualdade racial, foi libertado em 1990 para, quatro anos depois, se tornar o primeiro presidente negro da história de seu país. O jovem Nelson Mandela revela passagens da infância e da juventude de um dos maiores líderes de nosso tempo.
terça-feira, 11 de fevereiro de 2014
Pouca história, pouca mensagem, pouca arte
O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam
é uma avalanche verborrágica e inverossímil em que o autor, a propósito da
procissão de moradores de rua que deambula pelo centro de São Paulo, extravasa
sua cultura intelectual e suas referências literárias. Além do verdadeiro TOC
em que consiste as citações obsessivas de Erasmo, somam-se verbalizações onomásticas (de
nomes próprios) que, a título de metonímia, poluem o texto como garrafas PET em
leito de rio lento e congestionado pela enxurrada recebida dos afluentes.
Há um momento na leitura em que não é mais possível ignorar
as citações onomásticas, cada vez mais reincidentes, por meio das quais os
sentidos minguam até se estagnarem:
Erasmo de Rotterdam, Lutero, Leibnitz, Thomar More, São João
Crisóstomo, Demóstenes, Van Gogh, Horácio, Terêncio, My funny Valentine, Billie Holiday, Platão, Kazantzakis, Tirésias,
Michelangelo, Édipo, Jocasta, Einstein, Modigliani, Guimarães Rosa (via
Diadorim), Biblia, Nelson Cavaquinho (via citação de verso de canção),
Cinemateca, Mizoguchi (cineasta japonês), Bruno Schulz, Santo Anselmo,
Cervantes (via citação de Dulcineia), Ariadne, John Ford (o cineasta),
Sherazade, Bessie Smith (jazzista), Villa Lobos, Chet Baker, Alberto
Nepomuceno, Johnny Merce, Tchaikovsky, Humphrey Bogard, Jesus Cristo, Otto
Maria Carpeaux, santa Teresa, papa Adriano, Santo Antônio, Homero (via Ulisses),
Caronte etc. etc. etc., com retornos exaustivos a vários deles.
Preso à frase do bilhete – pois este já desapareceu num
furto – deixado pela “amada”, que há exatos dez anos mandou às favas o namorado
chatonildo, o mendigo culto e abstêmio reporta ao interlocutor, que na prática
é o leitor, seu discurso transtornado, que retorna sempre a poucos pontos de
baliza, os quais comprem função de marcos limitadores a vedar o desenvolvimento
temático, a exemplo das expressões “trouxe-mouxe”, “in totum” ou daquelas representativas de situações que lembram a amada - ou da palavra “Miserável”.

As citações onomásticas dirigem-se a um leitor em condições
de desdobrar os sentidos embutidos nelas, porém a quantidade é tão grande que
se convertem em exibição gratuita de ilustração do autor, em artifício retórico,
em ornato barroco de eficácia discutível.
Se a evocação de Ulisses acrescenta à experiência do leitor
em face do namorado chatonildo algo, Leibnitz, Horácio, Terêncio, Platão,
Tirésias, Santo Anselmo, Tchaikovsky, Johnny Merce entre outros, só servem para
conferir pedigree ao texto, uma vez que caberá ao leitor ao qual escapam
algumas dessas referências o trabalho de descobrir do que se tratam – e uma vez
que assim o faça, ele, o leitor, é que terá de atribuir ao texto um sentido que
ele, o texto, não tem, pois esse conteúdo significativo é atinente à fonte de referência, não ao texto que
o incorporou tão amiúde e cifradamente.
Essa é uma desgraça da chamada literatura pós-moderna: a citação da citação da citação. Há
quem goste, porém, se excluirmos essas citações, miríades, que emprestam ao texto em que foram incorporadas seus sentidos, sejamos honestos, restará pouca história, pouca
mensagem, pouca arte.
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