segunda-feira, 12 de abril de 2010

O Pagador de Promessas, de Dias Gomes


Escrita em 1959, O Pagador de Promessas, tão logo encenada, recebeu ampla acolhida do público e da crítica teatral, que identificou nela uma obra-prima de Dias Gomes e do teatro brasileiro.

No texto dessa peça, personagens, enredo, cenas e diálogos articulam-se de forma enxuta, como se fossem engrenagens de um preciso relógio que, impulsionado pela linguagem popular, tratada com plasticidade e sem concessões ao populismo, empurra Zé do Burro para seu destino trágico.
O próprio dramaturgo, na “Nota do Autor”, constante desta edição, afirma:

“O homem, no sistema capitalista, é um ser em luta contra uma engrenagem social que promove a sua desintegração, ao mesmo tempo que aparenta e declara agir em defesa de sua liberdade individual. Para adaptar-se a essa engrenagem, o indivíduo concede levianamente, ou abdica por completo de si mesmo. O Pagador de Promessas é a estória de um homem que não quis conceder – e foi destruído.”

Ambientada na Bahia, o enredo da peça flagra, já na primeira cena, Zé do Burro e Rosa, sua mulher, diante da igreja em Salvador, na qual pretende pagar a promessa feita a Santa Bárbara em intenção de seu burro Nicolau, que se livrou da morte quando da queda de uma árvore.

O conflito colocará em campos opostos a forma ingênua, popular e sincrética da religiosidade de Zé do Burro e uma forma de religião institucionalizada, comprometida com as elites até as entranhas e eivada de preconceitos:

: Seu vigário me desculpe, mas eu tentei de tudo. Preto Zeferino é rezador afamado na minha zona: sarna de cachorro, bicheira de animal, peste de gado, tudo isso ele cura com duas rezas e três rabiscos no chão. Todo mundo diz. E eu mesmo, uma vez, estava com uma dor de cabeça danada, que não havia meio de passar. Chamei Preto Zeferino, ele disse que eu estava com o Sol dentro da cabeça. Botou uma toalha na minha testa, derramou uma garrafa d’água, rezou uma oração, o Sol saiu e eu fiquei bom.
: Do demo, não senhor.

Padre: Você fez mal, meu filho. Essas rezas são orações do demo.

Padre: Do demo, sim. Você não soube distinguir o bem do mal. Todo homem é assim. Vive atrás do milagre em vez de viver atrás de Deus. E não sabe se caminha para o céu ou para o inferno.

: Para o Inferno? Como pode ser, padre, se a oração fala em Deus? (Recita) “Deus fez o sol, Deus fez a Luz, Deus fez toda a claridade do Universo grandioso. Com sua Graça eu te benzo, te curo. Vai-te, Sol, da cabeça desta criatura para as ondas do Mar Sagrado, com os santos poderes do Padre, do Filho e do Espírito Santo”. Depois rezou um padre-nosso e a dor de cabeça sumiu no mesmo instante.






Padre: Não é para curar, é para tentar. E você caiu em tentação.”

A adaptação da peça para o cinema, realizada por Anselmo Duarte e estrelada por Leonardo Villar e Glória Menezes, teve estrondoso sucesso junto ao público no Brasil e ampla repercussão internacional após a conquista da Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1962.

Um desafio encantador para a escola seria, após ler o texto e assistir ao filme, encenar essa peça, integralmente ou na forma de adaptações, nas quais os alunos, a partir de sua própria experiência e criatividade, poderiam participar ativamente.

Com certeza, um professor, uma turma e uma escola que se envolvessem num trabalho como esse nunca mais seriam os mesmos.

FONTE: Gomes, Dias. O Pagador de Promessas. 50 ed. Rio de Janeiro, Ed. Bertrand Brasil, 2009.
: Como feiticeiro, se a reza é pra curar?
Padre: Meu filho, esse homem era um feiticeiro.
Sacristão: Incrível!

Eles Não Usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri


Para falar sobre a peça, no “Prefácio” ao texto de Eles Não Usam Black-Tie, Delmiro Gonçalves dá voz ao próprio Gianfrancesco Garnieri :

“Aliás, habituado ao teatro, desde criança, quando acompanhava meus pais, não perdendo uma ópera das temporadas líricas, acostumei-me a tratá-lo como coisa doméstica, sem muita cerimônia. O gosto pelo teatro existia. Podia fazer ou não fazer teatro, pouco importava. Parecia-me que quando quisesse eu poderia fazer teatro, assim, à toa, como coisa natural.
Escrever peças de teatro foi a mesma coisa, assim à toa, sem querer. Escrevi Eles Não Usam Black-Tie rapidamente. Levantava-me à noite para escrever. E divertia-me muito com os personagens que surgiam, principalmente com Chiquinho. Fui o primeiro a chorar com o final do terceiro ato. E minha admiração por Romana foi sempre imensa.”


Escrita em 1955, quando o autor tinha apenas vinte e um anos de idade, essa peça, saudada desde o início como um marco do nosso teatro, põe frente a frente os valores gestados no interior de uma família proletária.

Impulsionados por uma greve operária num momento de ascensão de lutas populares, pai e filho se veem em campos opostos em razão da perspectiva de cada um. Porém, o papel conservador no conflito é desempenhado, como seria de se esperar, não pelo pai, mas pelo filho, cuja índole individualista o associa a uma perspectiva ideológica e política contrária à de sua família e de seus companheiros de trabalho.

Décio de Almeida Prado, ao abordar a peça – o texto também consta do Prefácio desta edição – chama a atenção para o humanismo idealista do pai e para a fantasia de ascensão social do filho, ambos, ao fim das contas, mergulhados em graus variados de ilusão. Mas alerta também para o papel central da mãe, Romana, cujo realismo lhe dá força, e à família, para enfrentar e vencer diariamente as provações da dura vida proletária.

Enquanto o pai, em seu engajamento político, encara a greve de um ponto de vista idealizado e moral (como deveriam ser as coisa e como não são), o filho, envolvido em indecisões pessoais – que no ambiente social se apresentam como vacilações de caráter –, considera o conflito na fábrica um risco em potencial a seus projetos.

Em meio às duas posturas, Romana, a mãe, fala – e age, pois se trata de teatro – com realismo ao marido:

Romana – Saiu o aumento?

Otávio – Que aumento! Sem greve não sai aumento!

Romana (reprendendo-o) – Otávio!...”

E fala com ironia ao filho, iludido por uma ilusória chance no cinema:

Romana – Minha filha, deixa esse Tirone Pover aí e me ajuda a levar esses pratos lá pra fora. O pessoal está chegando.

Otávio – Caçoa, caçoa que não te dou entrada de graça!”

A adaptação dessa peça para o cinema, realizada por Leon Hirszman, tornou-se um grande sucesso. Aproveitando as experiências de ascensão da luta por liberdades políticas no Brasil ao final da ditadura militar, o cineasta transpôs o conflito para a segunda metade década de 1970.

O elenco repleto de talentosos atores, do qual participa inclusive o próprio Gianfrancesco Guarnieri, no papel do pai, Otávio, conta com Fernanda Montenegro (Romana, a mãe), Bete Mendes (Maria, a noiva de Tião), Carlos Alberto Riccelli (Tião), Milton Gonçalves (Bráuli) entre outros.

No longa-metragem, com canções de Chico Buarque de Hollanda e Adoniran Barbosa, Tião e sua namorada, grávida, decidem casar-se, em meio a uma greve metalúrgica em São Paulo. Tião, a pretexto do casamento, fura a greve e entra em confronto com o pai, um velho militante que enfrentou a cadeia durante o regime militar.

Nesta feliz adaptação, o conflito representado na peça de Guarnieri ganha as telas e atinge o grande público. Embora as referências históricas tenham sido alteradas, as qualidades que conferiram ao drama teatral perenidade se preservam no filme. E com isso estabeleceu-se em relação à obra um paradoxo típico dos nossos tempos audiovisuais: toda uma nova geração passou a conhecer a obra pela adaptação cinematográfica, sem jamais ter tido acesso ao drama teatral.

Por isso, mais do que ler o texto da peça e assistir ao filme para compará-los, encenar uma peça como Eles não usam Black-Tie na escola ou montar em classe cenas dela extraídas é muito importante, pois permite o contato do estudante com um clássico de nosso teatro, por meio do qual se pode empreender um mergulho em profundidade na história do Brasil e nos dilemas de uma sociedade que, oscilando entre longos períodos de ditaduras e breves soluços de vida democrática, vive seu mais longo período de estabilidade política.

FONTE: Guarnieri, Gianfrancesco. Eles Não Usam Black-Tie. 21 ed. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 2009.

Poesia Completa de Álvaro de Campos, Fernando Pessoa

Teresa Rita Lopes, edição

Álvaro de Campos é entre heterônimos de Fernando Pessoa aquele ao qual se tem atribuído a mais ampla liberdade de expressão poética e a adesão mais radical à modernidade. Mas esse é um dos Álvaro de Campos, já que a crítica observa nesse heterônimo ao menos três momentos bem marcantes: um inicial, mais ligado ao decadentismo de final do século XIX; um futurista, ou sensacionista, bastante ligado ao modernismo, a sua empolgação com as máquinas e a sua vertiginosidade; e um terceiro, pessimista, às voltas com o cansaço extremo e com a sensação de inutilidade de tudo.

Nesta edição de bolso muitíssimo bem produzida em papel Pólen, o leitor tem oportunidade de ler os textos de Fernando Pessoa, uma das personalidades literárias mais intrigantes e labirínticas da literatura em língua portuguesa, auxiliado por ensaios bastante elucidativos.
Além dos poemas, preparados e anotados com esmero por Teresa Rita Lopes, o volume oferece ao leitor:
  • No início, uma “Nota Prévia”, que informa sobre as particularidades da edição, inclusive com legenda de abreviaturas e sinais empregados para anotar a obra; um excelente prefácio “Este Campos”, assinado pela mesma Teresa Rita Lopes, na verdade um significativo ensaio de vinte e cinco páginas, verdadeira aula magna sobre Álvaro de Campos no âmbito da complexidade de Fernando Pessoa;

  • Ao final: um alentado corpo de Notas, frutos de longa pesquisa realizada para estabelecimento do texto; um importante Posfácio “Campos e a Tradição”, a rigor outro significativo ensaio da mesma Teresa Rita Lopes, em que são discutidos os critérios e as linhas de trabalho adotadas para o estabelecimento do texto integral; um “Índice dos Primeiros Versos”, para consulta rápida dos poemas e ainda uma brevíssima biografia de Fernando Pessoa, na verdade, aqui, mais uma cronologia de eventos principais.
Ao apresentar num só volume os poemas, cujos textos foram estabelecidos a partir de rigorosos critérios de pesquisa e edição, e os ensaios, a presente edição põe em mãos do leitor uma obra de consistente valor literário e teórico – garantidos pela representatividade do autor e por dois ensaios de grande relevância.

Assim o leitor, seja para fruição estética, seja para pesquisa literária, goza da confortável segurança de ter em mãos uma obra que respeita ao extremo a virtuosidade de linguagem impactante de Álvaro de Campos:

“Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.”

Ler os poemas coletiva ou individualmente, em voz alta ou silenciosamente, de forma dramatizada ou em recital, debater os ensaios à luz de outros trabalhos sobre o autor e comparar o que dizem os ensaios com “o que” e “como” dizem os poemas são atividades que, levadas à prática, prolongam o prazer da leitura, tornam mais aguda a fruição dos textos e aprofundam a compreensão acerca dos sentidos em jogo. Em se tratando de Fernando Pessoa, não se pode ficar aquém disso.

FONTE: Pessoa, Fernando. Poesia Completa de Álvaro de Campos. Edição Teresa Rita Lopes. São Paulo, Ed. Cia. Das Letras, 2007.