segunda-feira, 12 de abril de 2010

Um Estudo em Vermelho, de Conan Doyle

Trad. Rosaura Eichenberg

Um Estudo em Vermelho
é a primeira aventura de Sherlock Holmes, o mais famoso detetive da literatura mundial, dado a conhecer ao público, ao final do século XIX, por seu fiel ajudante, o doutor Watson.

Nesse romance o doutor Watson, narrador-memorialista, retornado de sua traumática experiência como médico do exército britânico no Afeganistão, trava os primeiros contatos e estabelece amizade com seu imprevisível parceiro de hábitos estranhos, de comportamento destemido e de lógica infalível.

A dificuldade financeira de ambos os obriga a compartilhar um mesmo apartamento em Baker Street. Embora Watson manifeste uma resistência inicial à convivência com alguém mais jovem, passa a se interessar pelo homem alto, de nariz característico e um tanto autossuficiente, cujos métodos excêntricos de pesquisa articulam ao conhecimento científico a prática experimental amadora, que tantos dissabores trarão à Scotland Yard, sempre vários passos atrás dele nas investigações.

O pensamento analítico de Holmes e suas soluções aparentemente mágicas conquistam o leitor, ora colocado na perspectiva de Watson, ora posto na mais completa escuridão dos fatos, ora deslocado para o desconfortável ponto de vista do detetive Gregson, da mesma Scotland Yard, o qual julga simploriamente sempre estar próximo da solução do quebra-cabeça, quando na verdade está a quilômetros disso.

Nessa aventura inicial de Sherlock Holmes, o enredo todo é muito bem urdido e a construção das personagens segue um mandamento basilar da literatura realista: observar, observar, observar. Muitos trechos relevantes podem ser destacados nesse livro, porém, entre eles, sem dúvidas, o que inicia a segunda parte, cujo título é “Na Grande Planície Alcalina”:

“Na região central do grande continente norte-americano existe um deserto árido e repulsivo, que por muitos anos serviu de barreira contra o avanço da civilização. De Sierra Nevada ao Nebraska, e do rio Yellow-Stone no norte ao Colorado no Sul, toda a região é desolação e silêncio. Nem a natureza está sempre com o mesmo ânimo por todo esse distrito sombrio. Compreende montanhas elevadas cobertas de neve no topo, bem como vales escuros e lúgubres. Há rios de águas rápidas que se lançam por cânions recortados, e há enormes planícies, que no inverno ficam brancas de neve, e no verão são cinzentas por causa da poeira alcalina que contém sais. Tudo conserva, entretanto, as características comuns de aridez, inospitabilidade e penúria.


Não há habitantes nessa terra do desespero. Um bando de índios pawnees ou de blackfeet pode ocasionalmente atravessá-la para alcançar outros terrenos de caça, mas os mais corajosos dos bravos ficam contentes quando perdem de vista essas planícies terríveis, e se acham de novo nas suas pradarias. O coiote se esconde entre a vegetação enfezada, a ave de rapina bate as asas pesadas pelo ar, e o desajeitado urso pardo se arrasta pelas ravinas escuras e colhe todos os alimentos possíveis entre as rochas. Esses são os únicos moradores naqueles descampados.”


Na muito bem realizada tradução de Rosaura Eichenberg, esse capítulo bastante descritivo reveste-se de uma beleza surpreendente e de um tom de cataclisma bíblico:

“Nessa grande extensão de terra, não há sinal de vida. Não há pássaros no céu azul de aço, nem qualquer movimento sobre a terra cinzenta e monótona. Acima de tudo, reina um silêncio absoluto. Por mais que se escute, não há nem sombra de som em todo esse imenso descampado, nada a não ser o silêncio, um silêncio total que oprime o coração.”

O corte na narrativa que ele representa tem um efeito estranho e atordoante. O leitor, situado até esse capítulo no âmbito de uma narrativa aparentemente linear, vê todas as suas expectativas de desdobramento dos fatos desorientadas, como se um novo quebra-cabeça tivesse sido iniciado sem que o anterior se tivesse resolvido.

No entanto, o leitor verá mais adiante que as novas peças apresentadas a partir desse primeiro capítulo da segunda parte do romance encaixam-se à perfeição num mesmo quebra-cabeça, graças à lógica irrepreensível de Sherlock Holmes.

Esse livro é um ótimo caminho para se iniciar a leitura das histórias do mais famoso personagem de Conan Doyle, que, no cinema, tiveram abundantes adaptações, realizadas por muitos e vários diretores, em diferentes épocas, em diferentes países.

Na literatura brasileira, vários autores aventuraram-se no gênero “romance policial”. Seria um deleite comparar suas estratégias com as de Conan Doyle.

FONTE: Doyle, Conan. Um Estudo em Vermelho. Trad. Rosaura Eichenberg. Porto Alegre, Ed. L&PM, 2007.

Os Passos Perdidos, de Alejo Carpentier

Este surpreendente romance do escritor cubano Alejo Carpentier conta a história de um jovem intelectual que é levado a percorrer as entranhas da selva em busca de um instrumento musical aborígene, que poderia estar no princípio de toda a música erudita desenvolvida pelo homem. Tudo isso urdido por uma elaborada linguagem poética a imitar o emaranhado de troncos, galhos e raízes da floresta amazônica.

Nessa busca, o amor, a amizade e a compreensão mais alargada sobre as várias formas de humanidade se vão interpondo no caminho da personagem, que terá de optar pela selva ou pela civilização a cada passo de sua jornada.

Interrompendo sua vida estável de profissional bem sucedido, esse intelectual é instado por seu ex-orientador da época de faculdade a retomar sua pesquisa interrompida. Aproveitando-se de oportunas férias, o intelectual decide atender o pedido, e lança-se a uma aventura que transformara sua forma de encarar o mundo, sua sensibilidade e sua vida.

No percurso de sua expedição, somando-se a outros personagens que se embrenham por paisagens surpreendentes, o intelectual descobre formas de viver muito diferentes daquelas encontradas na urbe civilizada. O mundo, enfim, é muito maior do que as ruas da cidade em que se mora, vive, trabalha e morre:

“Ao cabo de duas horas de navegação entre pedras, ilhas de pedras, promontórios de pedras, montes de pedras, que conjugam suas geometrias com uma diversidade de invenção que já deixou de nos assombrar, uma vegetação mediana, tremendamente cerrada – rigidez de gramíneas, dominada pela constante, em ondulação de dança, do macio dos bambus – substitui a presença da pedra pela interminável monotonia do verde fechado. Divirto-me com um jogo pueril tirado das maravilhosas histórias narradas, junto ao fogo, por Montsalvatje: somos Conquistadores que vamos em busca do Reino de Manoa.”

Essa feliz tradução de Marcelo Tápia preserva o estilo barroco de Alejo Carpentier que, nesse livro, desenvolve longos parágrafos como se fossem ramagens de vegetação cheia de volutas, de emaranhados e de exuberante folhagem. Por vezes, a linguagem se torna intrincada como nós de madeira, após o que uma sucessão de frases cheias de beleza lembra uma espetacular floração sintática e vocabular.

Quando o barco desce um curso d’água ignoto em meio à selva, a sensação de desorientação em face da profusão de braços de rios se instaura, com a ajuda de um abundante e rico vocabulário que, imitando a elevação das águas, faz desaparecer as referências e obriga o leitor, um tanto aturdido, a retomar a leitura a partir de um ponto anterior, no qual encontrará um personagem desorientado na selva a suplicar por socorro para retomar sua jornada.

Neste livro, o enredo é surpreendente e cheio de imprevistos, porém não em menor grau do que a linguagem, a converter o texto em verdadeiro poema – operação melhor percebida quando a leitura encadeia-se às vezes imitando-se um fluido igarapé, às vezes uma tumultuada corredeira.

FONTE: Carpentier, Alejo. Os Passos Perdidos. Trad. Marcelo Tápia. São Paulo. Ed. Martins Fontes, 2008.

O Quinze, de Rachel de Queiroz

O Quinze é o romance mais popular de Rachel de Queiroz, que o escreveu e publicou em 1930, portanto com apenas 20 anos de idade. Sem ser autobiográfico, o romance se apoia no êxodo provocado pela seca de 1915 na região de Quixadá, no Ceará, e se organiza em torno da personagem Conceição, que, normalista como Rachel, tem idéias feministas e encara a luta pela vida com desassombro e iniciativa.

Em meio à seca que devasta o sertão, Conceição reflete sobre a vida, o papel da mulher numa sociedade extremante patriarcal, sobre a solidariedade humana e sobre as decepções amorosas.

Nesse romance, a crítica social vem acompanhada de um sutil lirismo que procura situar os sentimentos da mulher em relação ao homem amado, a partir do confronto entre o idealismo romântico dos primeiros impulsos e o juízo um tanto amargo da reflexão crítica:

“A verdade é que ela era sempre uma tola muito romântica para lhe emprestar essa auréola de herói de novela (...).

Foi então que se lembrou que, provavelmente, Vicente nunca lera Machado [de Assis]... Nem nada do que ela lia.

Ele dizia sempre que, de livros, só o da nota do gado...

Num relevo mais forte, tão forte quanto nunca o sentira, foi-lhe aparecendo a diferença que havia entre ambos, de gosto, de tendências, de vida.

O seu pensamento, que até há pouco se dirigia ao primo como a um fim natural e feliz, esbarrou nessa encruzilhada difícil e não soube ir adiante.”

Essa abordagem, que articula à temática regional certa demanda psicológica sob um ponto de vista feminista, atraiu sobremaneira a atenção dos literatos da época e dos leitores que, ainda hoje, passados 80 anos da publicação da primeira edição, continuam a ler nesse romance uma crítica social bastante atual, pertinente e elaborada artisticamente com primor.

FONTE: Queiroz, Rachel de. O Quinze. 86 ed. Rio de Janeiro, Ed. José Olympio, 2009.