segunda-feira, 12 de abril de 2010

Os Passos Perdidos, de Alejo Carpentier

Este surpreendente romance do escritor cubano Alejo Carpentier conta a história de um jovem intelectual que é levado a percorrer as entranhas da selva em busca de um instrumento musical aborígene, que poderia estar no princípio de toda a música erudita desenvolvida pelo homem. Tudo isso urdido por uma elaborada linguagem poética a imitar o emaranhado de troncos, galhos e raízes da floresta amazônica.

Nessa busca, o amor, a amizade e a compreensão mais alargada sobre as várias formas de humanidade se vão interpondo no caminho da personagem, que terá de optar pela selva ou pela civilização a cada passo de sua jornada.

Interrompendo sua vida estável de profissional bem sucedido, esse intelectual é instado por seu ex-orientador da época de faculdade a retomar sua pesquisa interrompida. Aproveitando-se de oportunas férias, o intelectual decide atender o pedido, e lança-se a uma aventura que transformara sua forma de encarar o mundo, sua sensibilidade e sua vida.

No percurso de sua expedição, somando-se a outros personagens que se embrenham por paisagens surpreendentes, o intelectual descobre formas de viver muito diferentes daquelas encontradas na urbe civilizada. O mundo, enfim, é muito maior do que as ruas da cidade em que se mora, vive, trabalha e morre:

“Ao cabo de duas horas de navegação entre pedras, ilhas de pedras, promontórios de pedras, montes de pedras, que conjugam suas geometrias com uma diversidade de invenção que já deixou de nos assombrar, uma vegetação mediana, tremendamente cerrada – rigidez de gramíneas, dominada pela constante, em ondulação de dança, do macio dos bambus – substitui a presença da pedra pela interminável monotonia do verde fechado. Divirto-me com um jogo pueril tirado das maravilhosas histórias narradas, junto ao fogo, por Montsalvatje: somos Conquistadores que vamos em busca do Reino de Manoa.”

Essa feliz tradução de Marcelo Tápia preserva o estilo barroco de Alejo Carpentier que, nesse livro, desenvolve longos parágrafos como se fossem ramagens de vegetação cheia de volutas, de emaranhados e de exuberante folhagem. Por vezes, a linguagem se torna intrincada como nós de madeira, após o que uma sucessão de frases cheias de beleza lembra uma espetacular floração sintática e vocabular.

Quando o barco desce um curso d’água ignoto em meio à selva, a sensação de desorientação em face da profusão de braços de rios se instaura, com a ajuda de um abundante e rico vocabulário que, imitando a elevação das águas, faz desaparecer as referências e obriga o leitor, um tanto aturdido, a retomar a leitura a partir de um ponto anterior, no qual encontrará um personagem desorientado na selva a suplicar por socorro para retomar sua jornada.

Neste livro, o enredo é surpreendente e cheio de imprevistos, porém não em menor grau do que a linguagem, a converter o texto em verdadeiro poema – operação melhor percebida quando a leitura encadeia-se às vezes imitando-se um fluido igarapé, às vezes uma tumultuada corredeira.

FONTE: Carpentier, Alejo. Os Passos Perdidos. Trad. Marcelo Tápia. São Paulo. Ed. Martins Fontes, 2008.

O Quinze, de Rachel de Queiroz

O Quinze é o romance mais popular de Rachel de Queiroz, que o escreveu e publicou em 1930, portanto com apenas 20 anos de idade. Sem ser autobiográfico, o romance se apoia no êxodo provocado pela seca de 1915 na região de Quixadá, no Ceará, e se organiza em torno da personagem Conceição, que, normalista como Rachel, tem idéias feministas e encara a luta pela vida com desassombro e iniciativa.

Em meio à seca que devasta o sertão, Conceição reflete sobre a vida, o papel da mulher numa sociedade extremante patriarcal, sobre a solidariedade humana e sobre as decepções amorosas.

Nesse romance, a crítica social vem acompanhada de um sutil lirismo que procura situar os sentimentos da mulher em relação ao homem amado, a partir do confronto entre o idealismo romântico dos primeiros impulsos e o juízo um tanto amargo da reflexão crítica:

“A verdade é que ela era sempre uma tola muito romântica para lhe emprestar essa auréola de herói de novela (...).

Foi então que se lembrou que, provavelmente, Vicente nunca lera Machado [de Assis]... Nem nada do que ela lia.

Ele dizia sempre que, de livros, só o da nota do gado...

Num relevo mais forte, tão forte quanto nunca o sentira, foi-lhe aparecendo a diferença que havia entre ambos, de gosto, de tendências, de vida.

O seu pensamento, que até há pouco se dirigia ao primo como a um fim natural e feliz, esbarrou nessa encruzilhada difícil e não soube ir adiante.”

Essa abordagem, que articula à temática regional certa demanda psicológica sob um ponto de vista feminista, atraiu sobremaneira a atenção dos literatos da época e dos leitores que, ainda hoje, passados 80 anos da publicação da primeira edição, continuam a ler nesse romance uma crítica social bastante atual, pertinente e elaborada artisticamente com primor.

FONTE: Queiroz, Rachel de. O Quinze. 86 ed. Rio de Janeiro, Ed. José Olympio, 2009.

Histórias Extraordinárias, de Allan Poe



Trad. e Adapt. Clarice Lispector

Esta exclente tradução de Clarice Lispector para as Histórias Extraordinárias, de Edgard Allan Poe, oferece ao leitor 18 dos mais importantes contos da obra desse decisivo autor da literatura de língua inglesa. A qualidade da edição, por outro lado, é um estímulo ao leitor, que recebe em mãos num só volume um clássico da literatura fantástica e uma tradução de altíssima qualidade de uma das mais importantes escritoras da literatura brasileira, cujo domínio de ambos os idiomas é indiscutível.

O mesmo rigor no tratamento da linguagem de Clarice Lispector em seus romances aqui revela-se na forma de uma tradução requintada, na qual o suspense, marca registrada do importante escritor norte-americano, surge na forma de um vocabulário que, simulando objetividade, reserva para o leitor muitos alçapões cheios de ambiguidades, supresas e sustos:

“Amanhã morrerei e hoje quero aliviar minha alma. Por essa razão vou lhes contar tudo. Na verdade, tudo não passou de uma série de simples acontecimentos domésticos. Mas, pelas suas consequências, estes acontecimentos me aterrorizaram, me torturaram e me aniquilaram. Espero que para outros não pareçam terrívies. Para mim foram. Tanto que, até agora, penso que sonhei. Ou que enlouqueci. Não, louco não devo estar. É que foi demais, horrível demais. Inacreditável que tudo isso tenha acontecido. E assim como aconteceu. E logo comigo que, desde menino, fui sempre dócil, humano”.

A sensação provocada pelo vocabulário convocado pela tradutora é a de que o narrador está abrindo seu coração e contando tudo ao leitor, mas, até onde o parágrafo está desenvolvido, esse narrador não contou absolutamente nada.

Esse narrador do conto “O gato preto” que inicia o volume, na versão de Clarice, vai, isso sim, fermentando o espírito do leitor com dúvidas, cismas, indícios e expectativas.

Nessa estratégia de prestidigitação, palavras aparentemente inequívocas vão constuindo cenários sombrios e idéias ambíguas. Afinal, aquilo que virá a encontro do leitor, é sonhado ou não, é loucura ou não, corresponde ao menino dócil e humano que o narrador foi ou não?

Mistério...

Que a tradutora soube respeitar – e segredo, que ela soube guardar até o último momento, com requinte e em reverência ao autor.

FONTE: Lispector, Clarice. História Extraordinárias/Edgard Allan Poe. Trad. e adapt. Clarice Lispector. Rio de Janeiro, Ediouro, 2005.