segunda-feira, 25 de agosto de 2008

O desenho infantil: um ensaio




O deslocamento nos salvará

Frequentemente os desenhos das crianças são tomados como manifestações de menor importância, mercê muitas vezes de sua gratuidade e de seu caráter assumidamente lúdico, aparentado dos jogos, das brincadeiras, das expressões verbais inusitadas e das narrativas surpreendentes que elas, as crianças, não se cansam de produzir.

Com efeito, acompanhar uma criança a garatujar papéis com grande empenho e em seguida vê-la descartar sem maiores sentimentos a produção com todos os rabiscos induz à ideia de que não se deve atribuir maior valor a essa atividade, vez que a própria criança aparenta não estabelecer com sua realização maiores laços afetivos.

Associar a atividade gráfica da criança àquelas anteriormente mencionadas não constitui erro, já que em todos os casos o que ela faz é exercitar seu corpo e mente extraindo o máximo prazer de cada ato e de cada conjunto de ações, cujas motivações repousam na busca do prazer e da expressão de idéias e emoções, e cuja existência se esgota muitas vezes na própria ação praticada.

O engano reside talvez em se considerar essas atividades – jogos, brincadeiras, experiências com as palavras, produção gráfica etc. – por mais efêmeras que sejam, como desprovidas de significados e valores.

Do momento em que toma contato pela primeira vez com utensílios, suportes, meios e tudo mais que propicia a atividade gráfica, até a adolescência, quando a produção do desenho se aproxima dos procedimentos dos adultos, todo o corpo, mente e espírito mergulham num mar de símbolos que, de um lado, se apresentam como veículos de aquisição de um mundo exterior complexo e desconhecido, e, de outro, como alfabeto de uma subjetividade que se constrói, aprofunda, organiza e expressa em processos contraditórios, plenos de possibilidades e igualmente de riscos.

Tomado individualmente, um exemplar de desenho infantil pode parecer inexpressivo e caótico, já que sua lógica particular desafia a do adulto, que o observa a partir de suas próprias experiências, de seu próprio ponto de vista, de suas próprias convicções, conceitos e preconceitos.

Tanto quanto a criança, o adulto está mergulhado em contextos históricos e culturais que, para o bem e para o mal, influenciam não apenas seu entendimento como ainda mais sua percepção, seus sentimentos e seu gosto. Quem observa, o faz da única condição de que não pode abrir mão: seu corpo e sua própria subjetividade, lentes poderosíssimas, impossíveis de serem anuladas.

Toda criança nasce no âmbito de uma cultura, é evidente, porém, também é seguro que os primeiros anos de vida humana constituem ponto de partida de um progressivo roteiro de imersão cultural, de modo que, comparativamente, uma criança pequena está muito menos penetrada por uma cultura específica de que uma outra de mais idade, e a comparação oferece ainda maior contraste quando é estabelecida com a um adulto.

Para um sujeito posicionado fixamente no quadro estabilizado de uma cultura cientificista que, no Ocidente, enfatiza o racionalismo, a hierarquização social e intelectual, e que subordina a existência emocional à cognitiva, uma produção artística adulta que fuja a lógicas analíticas cartesianas está condenada à paranoia – já que se espera do adulto um comportamento compatível com os modelos da razão, que só se manifestaria completa no indivíduo maduro –, tanto quanto está condenada ao erro a produção gráfica infantil – segundo a mesma perspectiva, impossibilitada de se expressar coerentemente porque privada dos mecanismos da razão.

Não obstante, estudos e pesquisas durante todo o século XX foram demonstrando o quão relativo é o conceito de razão e quão parcial se torna o entendimento do que seja o indivíduo quando sua dimensão cognitiva é apartada de suas dimensões afetiva e biopsíquica.

Para o nosso caso, isso importa em dizer que, sem penetrar na lógica, no afeto e no jeito como é realizado o desenho infantil, o adulto está interditado de compreender esse desenho, essa razão, esse sujeito e esse corpo que se expressa pelos meios de que dispõe, dos quais se apropria no próprio ato da produção, no âmbito desse meio em que está inserido e, no mais das vezes, contra esse meio.
Fixado rigidamente em lógicas e desprezando as da criança, o máximo que o adulto consegue fazer em relação ao desenho infantil é exarar regras e proferir juízos de valor hierarquizantes assumidos acriticamente, que outra coisa não são além de exercício de poder voltado para a incutição ideológica, cujo propósito termina por ser sempre a reprodução de modelos tendentes à esterilidade, à estereotipia e à confirmação de modelos.

O desenho da criança pode muitas vezes assumir naturezas efêmeras, mas qual o problema em ser efêmero? Também pode se apresentar, aos adultos, desprovido de uma lógica mais convencional. Porém, quem afirmaria peremptoriamente hoje que as lógicas a disposição no mercado das idéias correspondem à “verdade”?

A melhor compreensão da produção gráfica das crianças demanda um deslocamento do ponto de vista do adulto para o cerne mesmo do processo do qual se origina a mesma criação, processo artesanal, sim, porém com ainda mais ênfase de produção simbólica que, se tem num dos pólos a obra concreta finalizada, tem em outro uma subjetividade que se estrutura, desestrutura e reestrutura no ato da criação frente às dificuldades interpostas pelos objetos a serem representados, pelos meios e suportes empregados e pela própria subjetividade, que é viva e cede, mas que também resiste, busca, adapta-se e acomoda-se, mas que também se desequilibra, reequilibra e desenvolve incessantemente.

Ter olhos apenas para o desenho acabado é considerar apenas uma parte, a menor, a visível do processo; é abster-se de reconhecer a complexidade e a profundidade das interações que se vão estabelecendo durante o processo de criação entre o sujeito, os meios e os objetos a serem representados, interações que se concretizarão em diversas oportunidades, de diversas maneiras e com ainda mais diversos significados, cujos valores, antes de serem rejeitados como produto de erros, precisam ser acolhidos como discursos eloquentes, fecundados de significações, prenhes de projeções, penetrados de ansiedades, medos, frustrações, como também de alegrias, satisfação e prazer.

Por outro lado, realizar um deslocamento de ponto de vista no sentido de apanhar o processo de produção criativa da criança como um todo, acompanhando esse processo, do sujeito à obra realizada, ponderando-os à luz dos meios empregados e das motivações, torna possível não só que se mergulhe nos significados e sentidos emanados pela obra executada, como também permite que sejam realizadas interferências não coercitivas e dirigistas, mas emuladoras do processo criativo da criança em favor do desenvolvimento de seu pensamento gráfico autônomo.

A generosidade no olhar

Muitos autores dedicaram-se e têm-se dedicado a compreender como se dá o desenvolvimento da produção gráfica dos primeiros anos de vida humana até a idade adulta. Cada qual envolvido por sua cultura e por seu tempo procurou contribuir para a valorização da atividade gráfica e plástica desde a infância, seja observando a produção de crianças e adolescentes de diversas faixas etárias em diversos lugares, seja ensinando e retirando da docência as experiências passíveis de sistematização.

Da leitura de seus trabalhos muitas ilações podem ser feitas e, desde que nem sempre concordaram em seus pontos de vista, nem por isso estamos autorizados a descartar aquilo de apontaram como erro no outro, já que aquilo que rejeitamos no outro é freqüentemente o que não faríamos do nosso ponto de vista.

Porém, sendo o homem suas circunstâncias, seria cômodo demais versar sobre acertos e erros de quem quer que seja, descartadas as condicionantes culturais e temporais, desconsiderado o meio e o tempo, que muitas vezes pesam sobre o indivíduo como verdadeiras maldições.

Os autores que se debruçaram pioneiramente sobre a produção gráfica da criança realizaram uma opção arriscada e desconcertante, porque não sendo certo que suas convicções tinham apoio na realidade, menos ainda havia garantias de que suas pesquisas, estudos e práticas viessem a constituir algum proveito científico e pedagógico.

A tradição até fins do século XIX indicava que, antes de estar apta para reproduzir modelos gráficos e plásticos, a criança era incapaz de realizar algo significativo. Fixado um modelo como padrão a ser alcançado, ficava então estabelecida uma escala estética que objetivamente dava conta de auferir sucesso e fracasso em graus variados, bem como de selecionar aptos e ineptos.

De Luquet e Lowenfeld aos mais contemporâneos o que se observa, no entanto, é uma progressiva relativização do peso atribuído aos fatores externos, tais como a destreza e o treinamento – cujo horizonte é a perfeição técnica a partir de uma estética assumida como desejável – em favor de um olhar amplo que procura apanhar o processo de produção gráfica que abrange o desenhista e sua subjetividade, os meios e a obra finalizada, todos mergulhados num tempo e numa cultura específicos.

Noutras palavras, com suas limitações históricas e culturais, os pesquisadores do desenho infantil foram reconhecendo de um lado as competências e habilidades cognitivas passíveis de serem ensinadas e, de outro, as particularidades do desenvolvimento psíquico humano, que se não é uma rocha monolítica e imutável, tampouco é uma massa amorfa sem vontade própria, que se deixa moldar docilmente a partir do exterior sem oferecer resistência.

Se Luquet recebe hoje críticas por ter fixado o realismo como universal a ser considerado no estudo da produção infantil, por outro lado é reconhecido por sua classificação de estágios de desenvolvimento que tem em conta uma sucessão temporal repousada no desenvolvimento da subjetividade do desenhista.

Obviamente hoje se torna difícil a defesa dos conceitos de “realismo fortuito” e “realismo imperfeito” de Luquet, uma vez que, concordando-se com Piaget, reconhece-se que a produção simbólica da criança não pode ser comparada candidamente com a do adulto, seja por estarem um e outro em estágios diferenciados de maturação cognitiva, seja porque no primeiro caso a ênfase da criação recairia sobre a expressão comunicativa, enquanto que, no segundo, sobre a atividade simbólica assumidamente representativa.

Luquet, certamente, ao privilegiar o critério estético, consciente ou inconscientemente, não é esta a questão, ignorou as particularidades do desenvolvimento cognitivo inerentes às faixas etárias, de sorte que, nessa perspectiva, se uma criança não conseguisse realizar a contento uma consigna, ela só poderia estar em um estágio de desenvolvimento inferior, em relação ao modelo eleito como referência de escala de valor.

Muitas consequências daí decorrem: a normatização da atividade gráfica, a hierarquização das produções infantis pelo critério técnico, o dirigismo do processo pedagógico etc. Porém, se considerarmos sem preconceito as noções de Luquet de “realismo intelectual” e “realismo visual”, veremos nele surpreendente coerência e eficácia analítica, já que o primeiro procura explicar as produções esquemáticas – com variados graus de estereotipia – e o segundo uma maior felicidade do desenhista em criar algo a partir do que seus olhos, vêem, o que o vai distando da expressão comunicativa e aproximando da representação simbólica, tida como característica da produção adulta.

Além disso, três de seus conceitos, estes relativos ao “realismo intelectual”, são ainda hoje bastante considerado na leitura dos desenhos da crianças a saber: a exemplaridade, a transparência e o rebatimento.

A classificação de estágios de Luquet, em que pese a eleição do realismo e o estabelecimento de uma evolução linear do início ao fim da infância, traz implicitamente o reconhecimento de que o desenho enquanto obra concreta evoca uma subjetividade, que se expressa por meio de habilidades passíveis de serem desenvolvidas a partir de estímulos exteriores, porém sedimentadas nessa mesma subjetividade. O fortuito, o imperfeito, o intelectual e o visual mais não seriam de que manifestações dessa atividade de produção egocentrada, que resiste, se acomoda, se equilibra e desequilibra simultaneamente durante processo de criação, tornado também processo de aquisição de repertório e pensamento gráfico ou plástico.

A generosidade no pensar

Não é de todo incorreto afirmar que, enquanto Luquet põe ênfase no ensino, Lowenfeld desloca sua preocupação para a forma de aquisição do ensino pelo sujeito que desenha, ou seja, para a aprendizagem. E se perspectiva se altera, igualmente a classificação dos estágios de desenvolvimento da atividade gráfica se alterará.

Para Lowenfeld os estágios de desenvolvimento do desenho infantil, repousados no sujeito, elegem como critério a percepção do mundo pelo sujeito desenhista:

Os estágios são definidos pelo modo de apreensão que o sujeito tem da realidade. Os períodos sucessivos são: a garatuja e o rabisco, o pré-esquematismo (4 a 6 anos), o esquematismo (7 a 9 anos), o realismo nascente (9 a 11 anos), o pseudo-realismo (11 a 13 anos), e, na adolescência, a diversificação [do realismo] em tipo hábil ou visual.

A classificação de Lowenfeld, em relação à de Luquet avança, como se nota, até a adolescência, mas também, ao enfatizar a “apreensão que o sujeito tem da realidade”, intensifica a adesão à idéia de que há uma subjetividade ativa já na apreensão do mundo, a qual tem sua dinâmica própria de desenvolvimento, diversa da do adulto, e que se expressa, coerentemente, de modo igualmente específico, segundo leis e lógicas próprias.

O que está em questão, assim, é a complexa relação entre sujeito, meios e objetos de expressão: não apenas “como” se representa, mas “o que” e “como” se percebe, “o que” e “como” se sente o percebido, “o que”, “como” e “por que” se desenha.

Em um certo sentido, poder-se-ia dizer que Lowenfeld tem em mente não só o ensino como também a instituição de uma pedagogia do desenho, mais do que auxiliadora, estimuladora do desenvolvimento do pensamento gráfico da criança. E se aqui não se está já no âmbito do desenvolvimento das estruturas cognitivas propostas por Piaget, não se está, no entanto, longe disso.

Se os estágios piagetianos e os propostos por Lowenfeld distam entre si em muitos aspectos, mais ainda se aproximam noutros, e uma analogia inevitavelmente se apresenta ao nos determos em sua noção de esquema, que não se trata de procedimento técnico ou artifício gráfico, mas forma desenvolvida de pensar:

Para Lowenfeld o papel do esquema não pode ser compreendido a não ser que se considere que esse esquema é fruto de uma longa busca individual, intimamente ligada à personalidade da criança.

Aquisição e desenvolvimento de esquemas que se vão ampliando e aumentando as capacidades de o indivíduo perceber, sentir, interpretar e expressar o mundo soam, desse modo, bastante semelhantes às formulações piagetianas, para as quais há um inequívoco desenvolvimento de estruturas cognitivas que buscam constante de equilibração, mas para as quais as situações-problema constituem elementos desestabilizadores impulsionadores do desenvolvimento.

Ao tratar do realismo intelectual de Luquet, no texto “As relações espaciais elementares e o desenho: o espaço gráfico” Piaget disserta sobre o desenvolvimento complexo de estruturas cognitivas a partir da especificidade da linguagem gráfica:

Sem querer forçar as coisas, nem emprestar à criança desse segundo estádio um geometria propriamente dita, que ela poderia formular e desenvolver, pode-se ‘todavia’ constatar que o “realismo intelectual” constitui um modo de representação espacial no qual as relações euclidianas e projetivas apenas começam e de uma forma ainda incoerente em suas conexões, ao passo que as relações topológicas esboçadas no estádio precedente encontram sua aplicação geral em todas as figuras e triunfam, em caso de conflito, sobre as novas.

As reflexões de Piaget sobre o estágio em questão acolhem o entendimento de que se há evolução no desenho é porque há desenvolvimento do pensamento que lhe dá origem, sendo esse desenvolvimento um processo complexo que, ao buscar equilibração, se desequilibra, e, ao buscar adaptar-se a novas situações-problema, não está por isso nem condenado à estagnação, nem menos livre de conflitos entre elementos de estágios anteriores às situações-problema, potencialmente instabilizadoras, e outros posteriores a elas .

As relações entre linguagem e pensamento ensejaram e ensejam infinitas discussões entre intelectuais, uns situados no campo da linguagem a projetar suas miradas curiosas para os lados da filosofia, da sociologia, ou ainda da psicologia; outros, a partir das fronteiras dos saberes científicos a lançarem seus anzóis perscrutadores para as águas muitas vezes turvas e agitadas das artes.

Se essas mútuas invasões simbólicas, já por se realizarem, assumem a constatação freqüentemente angustiante de que linguagem e pensamento não são as mesmas coisas, por outro reconhecem que ambos – ainda que sob o risco de incompreensões e rejeições de maior ou menor intensidade, a depender do empedernimento dos pontos de vista – não podem ser compreendidos isoladamente.

Ao tratar desse assunto em «A noção do pensamento», Piaget discorre sobre esse particular, pondo relevo na ambivalência entre o interno e o externo, entre o conceito e o signo, entre o pensamento e linguagem:

"Até os sete ou oito anos, aproximadamente, os nomes emanam das coisas, eles são descobertos na observação delas, eles estão nelas. Esta primeira e simplificadora forma da confusão entre o signo e a coisa desaparece até sete, oito anos, enquanto que a confusão entre o interno e o externo desaparece por volta dos nove, dez anos (...)".

Tudo acontece, assim, como se a criança descobrisse primeiro que os signos são distintos das coisas, e como se essa descoberta o levasse a interiorizar cada vez mais o pensamento. Desse modo, tudo acontece como se essa diferenciação contínua e progressiva dos signos e das coisas, aliada à interiorização do pensamento, levasse a criança a conceber pouco a pouco o pensamento como imaterial.

A que fatores psicológicos convém atribuir a distinção progressiva entre os signos e as coisas? Muito provavelmente à aquisição pela criança da consciência de seu próprio pensamento.


Sendo a linguagem gráfica uma linguagem, e sendo o pensamento gráfico um pensamento, seria lícito estender para o pensamento e para a atividade gráfica o que se considera acerca da linguagem verbal? A resposta só pode ser afirmativa, se isolarmos nos respectivos campos simbólicos suas especificidades e se focalizarmos o que há de comum entre eles: o conceito e o signo.

Se, numa perspectiva piagetiana, a aquisição de conceitos e signos, noutras palavras, de pensamento e linguagem, se realiza no seio de um desarmônico processo de desenvolvimento, a evolução da execução da atividade gráfica só pode ser entendida à luz do desenvolvimento de estruturas cognitivas que se desenvolvem mais satisfatoriamente sempre a depender das características do próprio indivíduo, mas também e, em grande medida, do contexto cultural, que pode ou não ser estimulante, a depender das situações-problema que oferece ou nega. Nesse particular é interessante comparar o que diz Piaget e o que dizem a esse respeito estudos mais recentes sobre a produção gráfica da criança. Não deixa de ser significativa a proximidade dos pontos de vista.

Diz Piaget, mais adiante no mesmo estudo aqui há pouco citado:

"Esta aquisição de consciência tem lugar precisamente a partir dos sete ou oito anos de idade. Temos estudado suas modalidades em outra obra (...). Segundo esse estudo, essa aquisição de consciência está sob a dependência de fatores sociais como tencionamos demonstrar: o contato com o outro e a pratica da discussão forçam o espírito a adquirir consciência de sua subjetividade e a notar deste modo os processos do próprio pensamento."

Da sua parte, Anne Cambier assim aborda a questão, dando destaque ao processo de desenvolvimento da atividade gráfica pela criança:

"A falta de técnica será a freqüentemente obstáculo e contribuirá para a insatisfação do desenhista frente ao resultado obtido, atitude reforçada pelo pouco interesse do adulto em relação à produção do futuro adolescente: desenhar é um pouco brincar, é infantil, não é absolutamente sério, não pode ser mais que uma atividade recreativa./ Acompanhar a atividade gráfica é uma longa história que se confunde com a história da pessoa e de sua cultura. O esgotamento da produção gráfica a partir da adolescência parece-nos um engodo: o que nos parece certamente é que a produção do adolescente não responde mais que muito parcialmente à demanda social e coletiva."

O entendimento da produção gráfica na infância e na adolescência passa, assim, antes de tudo, pelo reconhecimento das particularidades inerentes ao desenvolvimento cognitivo durante esse período. Porém, esse entendimento é inalcançável sem que o adulto realize permanentes deslocamentos de seu ponto de vista para o do sujeito desenhante, que se exteriormente se concretiza num desenho específico, visível e observável, interiormente abrange um modo de expressar, um modo de perceber, um modo de pensar e, mais profundamente, um modo de sentir, todos em permanente desequilibração e reequilibração, impulsionando um processo mais amplo e geral de desenvolvimento cognitivo.

Bibliografia

Cambier, Anne. Le dessin de l’enfant. Paris, Paideia-Press Universitaire de France, 1990.
Piaget, Jean; Inhelder, Bärbel. A representação do espaço na criança. Trad. Bernardina Machado de Albuquerque. Porto Alegre, Artes Médicas, 1993.

Madadayo: A liberdade está na dor


Ser humanizado já foi mais dolorido


O século XX assistiu aperfeiçoarem-se meios de dominação social num grau de detalhamento antes suspeitado por poucos, entre eles alguns artistas ou intelectuais os quais, desde antes de meados do mesmo século, para desgosto de uns e ainda maior satisfação de outros, radicalizaram seus discursos – encarados como paranóias maníaco-persecutórias –, expondo com sarcasmo, por meio de seus discursos sombrios, àqueles que profetizavam o fim do mundo para um futuro iminente, a notícia aziaga: o Armagedon já chegou.

Do século XIX (quando formas explicitamente coercitivas e economicistas garantiram a vigência da ordem pela dominação exterior dos corpos) aos dias de hoje (quando meios cada vez mais simbólicos encurralam o indivíduo, seja lá o que isso for, a espaços cada vez mais confinados de sua própria agonia), a um exasperador aparato burocrático de controle social de massa somou-se a instauração e o aperfeiçoamento contínuos de mecanismos subjetivadores voltados à produção de multidões sem rosto, a serem encaminhadas ao abatedouro do mercado de consumo, e à produção de almas dóceis, que, quando bem sucedidas, mais não são de que unidades constituintes dessas mesmas faces ou máscaras coletivas indiferenciadas.

Articulados principalmente a partir do período pós-Segunda Guerra, processos horizontais e verticais, de ampliação de alcance e de aprofundamento de eficácia, de massificação e de individuação, créditos especiais aqui à sociologia e à psicologia, conformaram um maquinário de invenção de humanidades estandardizadas do qual não há quem escape sem receber de brinde um bilhete de ingresso no sistema prisional, no hospício ou no cemitério.

Até bem pouco tempo, quando promessas redentoras da modernidade embalavam uma noção de humano redimido pelo poder das máquinas, do útero ao túmulo, o sistema de previsibilidades condicionantes comportava lacunas consideráveis por meio das quais os imponderáveis se insinuavam e – e desde que não assimilados ou eliminados a tempo – perturbavam a homogeneidade apaziguadora.


No nível sócio-institucional, as realidades culturais, étnicas, nacionais, de classe, ou de grupo constituíam verdades confortáveis em cujo interior todos discerniam suas identidades e reconheciam seus papéis. No seio dessas verdades modernas o diferente, não pertencendo ao conjunto e sendo antes percebido nele como mácula, elemento estranho no contínuo indiferenciado, se vivia a desvantagem inerente a todo elemento dissonante, desfrutava igualmente da legitimidade de contestação de leis, normas e lógicas que o excluíam.


No nível individual, não havendo divisão nenhuma para além da pessoa, nem havendo dúvida nenhuma acerca dos gêneros, ficava a normalidade assegurada para os sãos tanto quanto as instituições de saúde e de correção para os doentes da mente, do espírito ou do comportamento. Essa lógica dual, de pertencimento necessário por identidade e exclusão sumária por diferenciação, é sem sombra de dúvidas cruel, todavia, sob seu império, os loucos ainda podiam ser loucos e os criminosos, criminosos.


Numa palavra, bons tempos aqueles em que o exército brancaleônico dos tortos, capengas e desafinados não tinha que submeter à lógica anticéptica do festim dos normais, civilizados e limpinhos, alhures chamado coro dos contentes.


Porém, as hecatombes políticas do século XX, com suas montanhas de cadáveres, e os sucessivos terremotos promovidos pelo desenvolvimento exponencial dos meios de comunicação, encimado agora pelas sucessivas revoluções tecnológicas – confirmadoras e refinadoras de sistemas de controle eficazes e sutis – reduziu essas lacunas e fendas, tão propícias à resistência, a dimensões tão estreitas que se torna impossível acusar esse processo sem reconhecer nele um totalitarismo ainda mais eficiente do que aqueles que vigoraram e ruíram no século XX.


Os elementos e comportamentos dissonantes, antes rejeitados pela modernidade como refugo do processo civilizatório, na pós-modernidade passaram a ser incorporados e acomodados em redes significativas globalizadas, não sem antes terem seu potencial de dano neutralizado e suas formas de expressão higienizadas, em prol da circulação ampla rápida e fácil pelos mercados do mundo.

Adeus às fendas, às fissuras, às rachaduras do sistema, que deixavam vazar ruídos e contestações ameaçadoras. Na pós-modernidade, Marx é boa literatura: que circule pois livremente, já que esvaziado de seus significados, pela banalização mesma da circulação frenética. Che Guevara é pop, tanto quanto o é o Papa, e desde que a reflexão crítica perdeu completamente o sentido, que figurem os retratos de ambos no mesmo emblema de motoclube, ou, caso do primeiro, em biquinis da Cia. Marítima. Bakhunin e Ravachol, moda de vestir e modo de se fazer notar, que sejam associados à calças de punks de butique, que já vêm rasgadas e com tintura a semelhar sujeira. Tróstky, convertido em profeta romântico malogrado, que divida espaço na mesma camiseta com uma estampa estilizada de Marilyn Monroe.


Não há hoje ideologia, etnia, nacionalidade, classe ou grupo cuja particularidade não se ofereça posmodernamente como oportunidade de negócio for global export. Não há transtorno psiquiátrico, contestação ou desajuste social que não seja explorado comercialmente pela indústria da saúde, do hambúrguer ou de Hollywood, ou por todas, em sociedade, ao mesmo tempo. Nem tampouco há drama econômico que a cosmética da miséria – como alguns críticos se referem a certa produção cinematográfica ou televisiva brasileira – não incorpore e traduza em termos de mercadoria simbólica de valor oscilante, a depender das relações de custo-benefício e de oferta-procura.


O mercado da assimilação do diverso na pós-modernidade encontra-se tão aquecido que têm faltado diferenças culturais, étnicas, nacionais, de classe e de grupos – tanto quanto tem havido escassez crescente de loucos e de criminosos genuínos – para abastecer a demanda crescente de anomalias, convertidas em matéria prima da bem sucedida indústria da normalização do corpo, da mente e do espírito.


Chegou-se a um tempo em que, para não ser abduzido pela indústria da normalidade, o diferente, o resistente, o doente precisam fazer-se de sãos; e em que o doido, para ser deixado em paz, só tem como alternativa limitar sua insanidade a espaços cada vez mais recônditos e ainda indevassados de sua intimidade. Superadas essas estratégias incômodas de resistência, serão todos, diferente, resistente, doente e doido, manipulados, revirados do avesso, vasculhados, entubados, dissolvidos e desintegrados até estarem aptos a se constituir insumo de beneficiamento, após o que serão reconconstituídos e “in-corporados”, segundo as mesmas lógicas de decretação de anormalidades, agora etiquetados com adjetivos bom-mocistas e politicamente corretos.


Porém, é forçoso reconhecer, essa indústria de reciclagem de corpos desviados e de almas tortas amplamente rentável é ainda prima pobre da outra, a da produção em escala de almas e corpos sãos. Cada vez mais especializada, a indústria de invenção da pós-modernidade tornou obsoleto um quase axioma da economia política marxista: o de que a força de trabalho, no império do capital, é explorada à exaustão e ao esgotamento do indivíduo.


Na pós-modernidade, o suporte do indivíduo, seu corpo, pode ter a sobrevida aumentada significativamente, seja pela de substituição de partes danificadas por próteses funcionais, seja pela administração de terapias eficientes contra a fadiga – chegará o tempo em que a imortalidade será a verdadeira maldição do indivíduo, que terá saudades do tempo em que suas forças simplesmente se esgotavam, e em que não havia necessidade de se solicitar licença judicial para morrer.


À sofisticação dos sistemas de produção e reciclagem de corpos e mentes defeituosos a serem normalizados, e ao aumento da durabilidade dos corpos sãos, some-se agora o expediente da invaginação de infinitos eus, das mais diversas constituições, num mesmo indivíduo e obtem-se a fórmula prodigiosa: a da possibilidade de reprodução eficiente e ilimitada dos sistemas de controle e governança de massas e de pessoas.


A indústria de produção de eus vai muito bem, obrigado, seja pela incutição a força ou consentidamente de novos eus em corpos naturais; seja pela articulação entre eus produzidos em série e corpos naturais melhorados por próteses funcionais ou plásticas; seja, não se está longe disso, pelo downloud de potentes eus em ciborgues; ou ainda pela manipulação do genoma humano, cujas fronteiras éticas se está a discutir, mas as quais, sabe-se de antemão, não freqüentam as preocupações dos laboratórios que, pelo mundo, combinam placidamente, na mesma equação, estruturas genéticas e dividendos de patentes.


A possibilidade de reprodução infinita dos sistemas de controle e governança de massas e pessoas por meio da assimilação monótona das trincas desses mesmos sistemas é uma hipótese cuja eficácia depende da neutralização de resistências no nível das intimidades e no nível coletivo. Porém, se algumas resistências são trincas previsíveis de fácil assimilação, outras são inesperadas e nutrem suas existências, muitas vezes efêmera, no caos. Por que, onde, quando, como, com que intermitência ocorrem essas fendas caóticas, não se pode saber.

Imaginemos: em algum ponto do espaço real, alguém sabe e não vai delatar, uma funcionária administrativa, sem razão aparente, vomita as invaginações do mundo, languidamente, convertendo seu corpo em texto artístico a emanar poemas, narrações e lampejos de arte musical tal qual os roedores de pelúcia de um certo conto de Cortázar.


Ainda, em algum momento imprevisível do particípio passado, do gerúndio ou dos futuros, entre o real e o inventado, zona de sombra que não deve ser iluminada, um artista plástico, empapuçado pela incutição de estereótipos humilhantes, assume a governança de suas ações, manda à merda uma porção de pesos mortos, e outro tanto de idiotas, e cai na pândega do Frenetic Dancing Days.


Indo além, de um modo não suspeitado, já no reino do inventado da caixa preta do cinema, um professor, tendo calculado os passos corretos e o pulo do gato para se livrar com proveito da sala de aula, derrapa, se desequilibra, descamba, perde a governança de si e se envilece por um gato ingrato, ingovernável, ignorante dos sistemas humanos de controle de almas de gatos.


Por alguma razão que não repousa no campo das normalidades, retalhos de reminiscências podem emitir música, lógicas herméticas podem redundar em non sense, regimes sanguinários podem tornar-se galhofa, o eu pode não estar em mim, mas para lá de Marraqueche.


Para o bem ou para o mal, ou para ambos ao mesmo tempo, o caótico pode operar, e isso pode ser muito significativo, ou pode não ter importância nenhuma. E aqui se insinua uma fenda de difícil assimilação, mesmo para uma pós-modernidade afeita à bricolagem: como prever, assimilar e calar o caos?


Se há resistência, é sem anestesia: Madadayo


Se os métodos e mecanismos de incutição, invaginação, controle e governança de almas se vão tornando mais e mais sistemáticos e indolores, o mesmo não se pode dizer das estratégias de resistência do si, o tempo todo e em todo lugar, por dentro e por fora abduzido, acossado, afirmado, amputado, apodrecido, azarado, bisbilhotado, bolinado, bulido,cadastrado, cagado, carimbado, chacoalhado, clonado, coisado, comido, comprado, comprimido, confinado, costurado, currado, cuspido, danado, debulhado, diagnosticado, digerido, digitalizado, dissecado, dissolvido, emparedado, enchido, encurralado, engordado, esfregado, esmurrado, esticado, esvaziado, examinado, fichado, filmado, fodido, fotografado, fuçado, garroteado, grampeado, iludido, invaginado, investigado, lacerado, lipoaspirado, ludibriado, mamado, manipulado, mapeado, matado, morrido, negado, ocupado, odiado, otimizado, padronizado, perfurado, pifado, purgado, quarado, queimado, ralado, rasgado, reconstituído, registrado, rejeitado, revirado, revolvido, sapecado, sodomizado, sujeitado, sumido, taxado, torcido, triturado, tumultuado, tunado, ulcerado, ultrajado, usado, vendido, viciado, volatilizado, xerocado, zoado não necessariamente em ordem alfabética.


Nas estratégias de resistência do si a dor é inevitável e necessária, tanto quanto a “sistemática” é “o” inimigo a ser destruído pelo caos, produtor de colapsos germinantes, único, muitas vezes, em condições de devolver a iniciativa e a governança das ações do si sobre o si ao próprio si.
É impossível ao si dobrar-se sobre si mesmo e converter ações alheias em ações próprias sobre si e sobre os outros sem causar colapsos de variáveis magnitudes em seu próprio interior e no entorno. Assenhorear-se das próprias ações sobre si e sobre outros é inverter fluxos de pressões simbólicas e sociais potentíssimos, o que não se faz sem deflagração de crises ainda maiores, de conseqüências imprevisíveis e que abrigam em seus movimentos destrutivos ondas de variados graus de potência aniquiladora, às quais muitos chamam “dor”.


Quando no início do filme Madadayo o professor de literatura alemã Uchida Hyakken, protagonista da história, ingressa na sala de aula, o ano é de 1943, e instaura um falso diálogo com seus alunos por meio de chistes e ironias, dá um passo decisivo para retomar um certo controle de sua vida que o papel social de docente, nota-se pela tensão entre seu discurso e o de seus futuros ex-alunos, seqüestrou.


Diz ele que renunciará à docência, após décadas de trabalho, porque a venda de seus livros lhe propiciam agora uma renda suficiente para dedicar-se à atividade literária. Trata-se, pois, não de uma aposentadoria, mecanismo pelo qual o sistema produtivo, de forma “indolor”, expele de si o dejeto restante da extração das energias do indivíduo, mas o contrário: um ser que, ainda de posse de muito de suas energias, expele de seu corpo um eu que o colonizava, e rejeita um papel social determinado de fora para dentro.


A segurança demonstrada pelo professor durante a conversa irônica e afetiva com os futuros ex-alunos faz crer que se trata de uma decisão segura, pensada, definitiva, cujas conseqüências e riscos já foram pesados, ajuizados e assumidos. Porém, da cena bem enquadrada e da conversa que inicia o filme, o diretor Akira Kurosawa deixa vazar, pelos enunciados prenhes de ambigüidade, que “juízo”, de um ponto de vista “normal”, não é uma das maiores preocupações do professor, a começar pelo desprezo às convenções em vias de serem vomitadas.
Esse desprezo ganha forma hilária quando o professor, corpo e fala convertidos em textos plenos de expressividade, elabora uma completa paródia do comportamento autoritário vigente na hierarquia institucional.


O discurso caricato sobre a dificuldade de ingressar na sala de aula para lecionar tendo-se antes que vencer o sedicioso apelo do tabaco, o que o faz atrasar-se, alinhava ironia e sarcasmo para coser uma falsa repreensão aos alunos pelo uso de cigarro em sala de aula. Tudo isso enquanto uma deliciosa, translúcida e lenta nuvem de fumaça flutua entre o professor e a turma, atravessando a tela da esquerda para a direita, para deleite do expectador.


Porém, não se despreza um papel social, nem se vomita um eu de modo impune. Principalmente quando esses entes são expressão de acordos sociais que conferem prestígio e segurança: ser professor em uma sociedade que reverencia essa figura e lecionar literatura alemã quando os ventos sopram para os lados da Germânia não são pouca coisa.


Ocorre que, à vida de escritor, desde sempre tendente ao caos, como todos o bem sabem, soma-se o colapso final da Alemanha nazista e o bombardeio da cidade pelas tropas dos EUA. Noutras palavras, à caótica opção de Uchida Hyakken pela carreira de autor acresce a agora caótica opção do Japão pela adesão ao Eixo.


As grandes catástrofes humanitárias são mães de tragédias identitárias em massa, porém, em Madadayo ficam de fora do quadro as demais vividas pelo Japão mercê das opções que fez. Em foco permanece a de Uchida Hyakken, que, talvez para sua maldição, talvez para sua redenção, continuará a ser tratado por professor até o final da película, vítima do afeto salvacionista e invaginatório de seus eternos devedores, que, a um só tempo, fazem o bem e o mal ao objeto de seu apreço.


Os livros de literatura alemã param de vender, a casa de Uchida Hyakken é bombardeada, ele passa a habitar com a esposa um cubículo entre ruínas mas, aparentemente, o professor continua o mesmo, irônico, sarcástico, sem juízo, solidário, fraterno, solícito para com os ex-alunos.
Posteriormente, a invasão americana propicia alguma organização, os livros voltam a vender, segundos os ex-alunos, que se cotizam e propiciam ao mestre e à sua esposa uma casa digna. Despido da função de professor, Uchida Hyakken continua a gozar da majestade, que a comunidade, numa invaginação permanente, não aceita que seja extinta – afinal, quem é esse professor para achar que pode deixar de ser professor? Tudo se normaliza, até que o caos, agora na forma de gato, se insinua pelo buraco da cerca da casa do professor a procura de comida.
A esposa de Uchida Hyakken dá comida ao bichano que não está ali para outra coisa. Depois, organiza um aposento para o bichano. O ex-professor impõe-lhe um nome, Nora, e um afeto excessivamente humano para que não dê com os burros n’água.


O gato, que tem suas próprias gatitudes e gatimanhas, que não sabe que tem nome e menos ainda que o estão invaginando com humanidades interesseiras em dividendos de afetos felinos, dá o pinote, some ou simplesmente é roubado.


O caos trouxe o gato, caos levou o gato.


Nenhuma lógica empregada pelo ex-professor, por sua esposa ou pelos ex-alunos surte efeito. E o ex-professor se desconstrói, se estiola, se envilece, adoece da emoção, periclita do espirito, deleixa do corpo.


Adeus ironia inventada como estratégia de resistência, adeus sarcasmo como arma de ataque, adeus humor, adeus força moral, adeus valores, adeus cuidados com a barba, adeus cuidados com o corpo, artifícios de um eu inventado pelo si Uchida Hyakken para revidar às incutições do mundo.


A possibilidade de falência geral do ex-professor preocupa os ex-alunos, que o continuam a tratar por professor, para continuarem a gozar da identidade de alunos, da qual também não conseguem se livrar, nem querem.


Porém, a arte é o reino do arbitrário fingido: se o caos pôde trazer gaoticamente um gato por um buraco de cerca e o levá-lo sabe-se lá por que outro, pode então introduzir pela mesma fenda um outro gato, irônica paródia do primeiro.


Se a cor do pêlo não coincide, se esse novo bichano não vai dar no pinote, sumir ou ser roubado como o primeiro, ou se ele vai ganhar um nome que sequer a esposa consegue pronunciar corretamente, não interessa: o efeito cômico foi conquistado e a saúde física, psíquica, moral, espiritual do ex-professor está preservada, não por suas estratégias, mas pelo acaso – muito embora aqui se trate de um acaso inventado pelo diretor do filme.


Mergulhados literalmente de corpo e alma numa relação simultaneamente comovente e perniciosa, de dependência e de solidariedade, de solenidade e de galhofa, de respeito e de invasão, de gratidão e de inadimplência moral eterna, de reverência e de subserviência, os eus envolvidos retomam a normalidade de uma convivência muito particular, que os faz feliz e que os faz existir enquanto comunidade específica, empenhada com todas as forças em se preservar no tempo o quanto possa, com todas as vantagens e vicissitudes inerentes a essa opção pela permanência numa comunhão em cujos membros podem falar de coração para coração porque concordaram tacitamente em invadir e em se deixarem invadir simbolicamente pelo outro, como também assentiram em agir sobre a ação do outro, consentindo com a ação do outro sobre a suas próprias ações.


A ritualização paródica dessa relação nas festas de anos do ex-professor elide o conjunto de penetrações simbólicas do qual Uchida Hyakken é destino mas também origem.


Ele, que a um determinado momento só desejou deixar a sala de aula para se realizar enquanto escritor, consente, sem qualquer resistência, ocupar papel central em um compromisso, a repetir-se ano após ano, no qual terá de ingerir uma enorme taça de cerveja após o que responder à pergunta: “Madakai?” – Está pronto (para morrer)? A resposta à pergunta ritualística-irônica, até o fim será: “Madadayo” – Ainda não.


Os únicos espaços de tempo representados entre a primeira celebração-simulacro, quando do 60o. ano de idade de Uchida Hyakken, e a que encerra o filme, quando o protagonista, alquebrado pelos anos, reafirma sua disposição de nunca estar pronto para a morte, são aqueles imediatamente sucedâneos à sua renúncia ao cargo de professor de literatura alemã, que enfeixam as dificuldades econômicas resultantes de usa opção, a perda da casa por bombardeio, a conquista da casa nova auxiliada pelos ex-alunos e pela regularização do pagamento dos direitos autorais (o que poder ser uma mentira generosa dos pupilos) e a crise do gato Nora e a reequilibração do si. Tudo mais, entre a conclusão dessa crise e a celebração do 77o. do ex-professor some da tela.


Ao que tudo indica, Uchida Hyakken obteve sucesso na opção extremamente dolorosa que fez pois, ao final da película, é retratado como intelectual digno e sem maiores transtornos materiais, o que faz supor êxito na carreira de autor.
Akira Kurosawa, arbitrariamente decepa o meio do processo residente nesse lapso, apresentando ao público o início e o talvez fim, já que a cena final é prenhe de sugestões conclusivas, quer no que tange à diegese fílmica, quer no que tange às possíveis extrapolações que o simbolismo inerente à ela propicia.


Na sala, os ex-alunos, inconseqüente alegres, seguem a lição do mestre, sorvendo do álcool numa irreverência assumidamente postiça, convertida em estratégia de resistência de grupo. A esposa é tirada de cena pelo diretor para não atrapalhar.


Na liteira, o corpo do ex-professor, alquebrado mas também embriagado, talvez adormecido, talvez morto, mostra-se sereno. Em sonho maravilhoso, de céu cambiante e de tons extasiantes, Uchida Hyakken se vê comoventemente menino brincando de esconde-esconde em montes de feno com amigos de infância. Os amigos perguntam se ele está pronto para ser procurado (em nossa brincadeira por estes lados brasileiros do ocidente dizemos: “Pode ir”?):


- Madakai?


O menino carequinha, entre montes de feno, procurando o melhor esconderijo responde:


- Madadayo!


Uma fenda rasa e algo escura no capim seco se insinua, o menino a penetra e começa a se cobrir de mato seco. Já quase todo envolvido pelo feno, se deixa surpreender pelo céu onírico, os olhos penetrados de tons perturbadores.


Tomado pela emoção e governado pelas cores impressionantes, talvez impressionistas fosse o melhor termo, renuncia ao esconderijo e penetra a atmosfera acolhedora sob um céu de tons e sobretons quentes, que ameaçam turvar-se, mas que não se turvam. Madadayo: ele ainda não está pronto.

Dói, mas isso é tão ruim assim?


As estratégias do ex-professor para assumir o máximo controle de suas próprias ações, e por conseguinte de sua própria vida, tem eco em uma gama considerável de intelectuais cujas obras fecundaram o século XX com a fogueira inconveniente do descontentamento. Face a face com regimes totalitários, o motor de suas reflexões e de suas ousadias repousou muitas vezes apenas na fé intelectual de que a batalha contra o sufocamento das liberdades tinha de ser vencida de dentro para fora, a partir do principal campo de disputa: o corpo e a intimidade de cada um.
Em seu Os frutos da terra, na tradução para o português, André Gide trata dessa batalha plena de crises identitiárias e de riscos de diluição :


"Há proveito a se tirar tanto dos desejos quanto da saciedade deles, porque esta só faz aumentar aqueles. Por isso, em verdade vos digo, Natanael, cada desejo me enriquece mais do que a posse sempre enganosa do objeto de meu desejo.


Não falo da simpatia, Natanael : falo do amor.


Por tantas coisas deliciosas, Natanael, usei-me do amor. O explendor delas advinha de eu arder incessantemente por elas. Não tinha como me entediar. Toda fogueira me era um exaustão amorosa, deliciosa exaustão.


Herético entre os heréticos, todo o sempre me atraíram as opiniões contundentes, os arriscados atalhos do pensamento, as divergências. Cada espírito não me interessava, salvo por aquilo em que se diferenciava de outros. Cheguei a explusar de mim a simpatia, não reconhecendo nela senão uma emoção barata. - Não falo da simpatia, Natanael, falo do amor.


É preciso agir sem julgar se a ação é boa ou má. É preciso amar sem se importar se isso é o bem ou o malNatanael, eu vou te ensinar o que é a fogueira.


É peferível, Natanael, uma existência patética à tranquilidade. Não quero outro descanso além do sono da morte. Tenho horror de que toda ânsia, toda potência que eu não tenha exaurido durante minha vida, pela razão mesma de terem restado vivas, me atormentem. Eu ‘espero’, depois de ter exprimido sobre esta terra tudo que havia dentro de mim, satisfeito, morrer completamente ‘des-esperado’.


Não falo da simpatia, Natanael, falo do amor. Tu sabes muito bem que não são as mesmas coisas. É por medo de uma perda amorosa que às vezes eu simpatizei com a tristeza, com os aborrecimentos, com as dores difíceis de agüentar de outra maneira. – Deixe a cada um o direito de cuidar de sua vida.

Ao ousar abandonar o magistério, exercido com paixão e risco por décadas, o ex-professor não faz outra coisa senão atirar-se a outra paixão, não por simpatia – o que envolve um distanciamento em que é indisfarçável a presença do interesse sobriamente calculado – mas por amor, esse sentimento povoado de caos.


Se isso dará ou não certo, não é a questão. A questão é que uma profissão exercida com paixão e cuja temperatura vai distando do pondo de fervura será desalojada da intimidade em favor não de uma emoção barata, mas de uma aventura ardente, certa de riscos e que potencialmente pode incinerar Uchida Hyakken até que ele se torne poeira.


A frustração imediata que se segue à opção de assumir a carreira autoral pouco quer dizer, porque para o ex-professor, mais importante do que largar a muleta da docência e viver efetivamente dos livros é o desejo de ser escritor, que não morre com o colapso do Japão bombardeado, nem com o sumiço do gato, nem com os anos que pesam sobre seu corpo como uma maldição.


O que importa é ser fogueira, é arder, é estar vivo para o que o faz viver."
O ex-professor ama, não simpatiza, o que faz, e só o faz enquanto ama. Lecionando ou garatujando seus papéis, ama “o que” e “os que” escolhe amar, seja ante os alunos cheios de suas, deles, próprias invaginações, seja ante a folha de papel em branco a espera das letras; ama seja a esposa, sejam os alunos, sejam os gatos, sem se preocupar se isso o levará a um cubículo bombardeado pelas tropas americanas ou ao hospício.


E se flertou com a tristeza, com os aborrecimentos e com a dor, foi pelo medo da perda ou em conseqüência dela, não pelo medo de arder na fogueira do sincero amor por si e pelo outro.


O poder de convencimento dos discursos de Uchida Hyakken não vem de sua condição de tutor de almas, função institucional que ele rejeita mesmo antes de decidir renunciar à cátedra – daí a afeição dos alunos pelo professor ‘desajuizado’. A eficácia de seus enunciados ambíguos reside na heresia de, a partir do locus privilegiado que ocupa na instituição, proferir uma missa que se autodenuncia como postiça, que flerta com a bufonaria e que em português do dia-a-dia poderíamos chamar, de coração alegre, de uma ardilosa e santa avacalhação da academia.


Arlequim a contrabandear opiniões ácidas, idéias ferinas e comportamentos erráticos sob a roupagem insuspeitável de professor ilustrado, Uchida Hyakken, filósofo- palhaço, aos 60 anos, prefere a vida patética de escritor na corda bamba à modorra da academia que ele só não rejeitara antes por profundo amor, não simpatia, a seus alunos, perfeitos desajustados a renderem preito à literatura alemã na terra dos samurais.


Preferiu e segue confirmando a escolha até a cena final, quando não se dá por totalmente exprimido sobre a terra nem “des-esperado”, nas palavras de Gide, já que em sonho os matizes do céu onírico o encantam, penetram e inundam em abundância e, à sala, seus ex-alunos o aguardam entre risos alcoólicos e tragos sorvidos com imenso prazer.


Em mais de duas horas de filme, assiste-se a um respeitável professor despir-se das convenções inerentes ao papel social a que se sujeitou por décadas, expor-se ao ridículo diante de seus alunos, cambalear com eles no álcool, rastejar na sarjeta moral, descuidar do próprio corpo, deixar-se amparar como um trapo humano e se reconstituir a partir das próprias energias emocionais, morais, intelectuais e físicas perfuradas, penetradas e invadidas pelo amor dos outros.


A metáfora da cena final é de uma força perturbadora: Uchida Hyakken, untado por dentro de um banho maravilhoso de cores, volta em sonho a ser menino, depois de se dissolver ardendo, se recompor doendo e acolher em seu corpo todos os efeitos, lanhuras e fissuras inescapáveis no roteiro de quem ousa a liberdade, entendida aqui como luta por domínio e posse das próprias ações de si sobre si mesmo e sobre o próprio corpo – tanto quanto isso é factível, se é que isso é mesmo factível.


A trajetória do protagonista de Madadayo faz compreender porque muito da filosofia e da poesia contemporânea não aceita a liberdade dissociada da do mal-estar, da angústia e do sofrimento: Quem quer passar pelo Bojador, tem que passar além da dor, ensina Pessoa.


Impossível, no ponto a que chegou este ensaio, não fechar os olhos e não ouvir, lá do escuro fundo da memória, a voz roufenha de Ângela Rorô a embalar estas palavras finais:


“Deixa eu penar, liberdade está na dor”.


BIBLIOGRAFIA

Bauman, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005.

Dreifus, H; Rabinow, P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995.
Gide, André. Les nourritures terrestres. Paris. Librairie Gallimard, 1939.


Hall, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 2003.

Rago, M.; Orlandi, L. B.; Veiga-Neto, A. (orgs.). Imagens de Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro, DP&A, 2002.

Silva, T. T. (org.) Liberdades reguladas. Petrópolis, Vozes, 1998.

MADADAYO

Título Original: Madadayo.

País de Origem: Japão.
Ano: 1993.
Duração: 134min.
Diretor: Akira Kurosawa.
Elenco: Hisashi Igawa, Kyôko Kagawa , Tatsuo Matsumura, George Tokoro.
Colorido.

quinta-feira, 20 de março de 2008

Beto, Bia e Abelardo - Ciclo 1: O mundo visto pelo olhar de Beto

Orientações iniciais: desenvolvendo habilidades de leitura e discutindo valores

O projeto Beto, Bia e Abelardo procura vincular a leitura em língua portuguesa à necessária e atual discussão sobre valores. Articula deliberadamente competências e habilidades lingüísticas e literárias à reflexão sobre conteúdos culturais, morais, éticos, científicos, artísticos entre outros. Parte da constatação de que nenhuma eduação é isenta, de que toda verdadeira ação de leitura é um mergulho em profundidade na sociedade, no íntimo do indivíduo e no coração do conhecimento, e de que todos estamos, o tempo todo, constituindo ou rejeitando, assumindo ou criticando valores, consicente ou inconscientemente.
O que é ser "bem-educado"? Aceitar passivamente os berros dos adultos ou dos mais fortes? Devolver com grito o grito e com violência a violência? O que é ler bem? Seria repetir, muitas vezes com as mesmas palavras, o que os superiores exigem, sem nada criar ou contestar? E o que seria "uma pessoa moral"? Aquela que elege valores de sua religião, de seu grupo social, ou unicamente seus, para os impor, a todo custo e meio aos demais?


Viver numa sociedade tão dinâmica, num mundo tão complexo, numa época tão cheia de guerras e violências impõe a quem deseja justiça, respeito aos direitos humanos e ao meio-ambiente atitude positiva: é preciso entender o mundo, é preciso entender o outro, é preciso que cada um entenda a si próprio e lute por mudanças solidárias, em relação ao hoje e em relação às gerações futuras, que têm direito de receber um planeta e um vida decentes. Noutras palavras: é preciso saber para mudar, mas não há saber sem boa leitura e bons leitores, de textos e de mundos.
Traduzo assim as intenções e expectativas de Beto, Bia e Abelardo: ler para gostar, ler para saber, ler para mudar solidariamente o mundo.


Linguagem oral

Explorar possibilidades de leitura oral a partir de dialetos (falares regionais: caipira, do nordeste, gaúcho, entre outros) e socioletos (falares de grupos sociais: jovem urbano, idosos, mulheres, jargões profissionais etc.). Buscar múltiplas e variadas locuções interpretadas, articulando modulação de voz, ritmos, timbres, tonalidades, volume, velocidade (não há uma certa, mas muitas possíveis, desde que atinjam o objetivo de fisgar o leitor). No caso da criança alfabetizada e letrada, dar oportunidade para que ela execute a leitura, de trechos ou de histórias completas, desde que ela assim deseje. Aproveitar interferências durante a leitura para elucidar dúvidas. Interromper a leitura somente se a criança solicitar, e explicar somente o que ela solicitou (nas atividades de pré-leitura e de pós-leitura o professor poderá destacar o que julgar necessário, seja com relação à linguagem, seja com relação a valores em questão). A leitura pode ser feita sem interrupções ou pode sofrer pausas, sempre a depender da solicitação da criança. No primeiro caso, é necessário discutir questões de linguagem e de conteúdo com as crianças ao final. Cada sessão de leitura não deve ultrapassar 50 minutos.

Tanto a pré quanto a pós leitura pode ser realizada imediatamente à leitura ou em momentos outros, mas sempre na mesma semana.


Linguagem escrita

Orientar a criança sobre a organização do livro, os significados e sentidos das imagens e das cores de capa e de início e final de episódio. Não esquecer dados técnicos: título da obra, títulos dos episódios, autor do texto e autores das imagens etc. Explorar com a criança as diferenças entre texto oral e texto escrito. Alertar a criança que o texto tem obstáculos propositais, que elas podem superar com ajuda do professor ou dos pais (questões de vocabulário, de palavras de uso regional, pontuação, acentuação, pronúncia a partir do registro escrito, de recursos poéticos tais como rimas, aliterações e cadências etc.). Há vários jogos de linguagem no livro. Numa das histórias, há a explicitação de que há no livro, além do bem-te-vi, gralhas. Aqui, gralha é o nome que se dá para anomalias do registro escrito no texto impresso. No trabalho com o texto escrito, a criança deve ser estimulada a encontrar as gralhas presentes no texto. Nisso ela pode ser ajudada pelos pais em casa (é conveniente que os pais leiam em casa a história da semana e ajudem a criança a superar as dificuldades textuais e a apontar as gralhas presentes apenas na história da semana). Esse jogo chama-se Caça às gralhas. Mais à frente esse jogo estará amarrado a duas personagens do Ciclo 2 - O mundo visto pelo olhar de Bia. As atividades de pré e de pós-leitura não devem ser amarradas à produção escrita. Algumas vezes isso é desejável, mas não deve predominar. Ciranda de roda, produção de desenhos e pinturas, jogos e brincadeiras podem muito bem ser mobilizados para sensibilizar a criança (pré-leitura) e para concluir significativamente o trabalho com cada episódio (pós-leitura). Em ambos os casos a criação e a produção imaginativa da criança devem ter lugar. Devem ser descartadas todas as práticas de reprodução, bem com aquelas que não possam ser compreendidas claramente e aceitas voluntariamente pelas crianças. Convém discutir as noções de “certo” e “errado”, comparando-se a linguagem oral e a escrita.

Valores éticos, morais, sociais, científicos, afetivos entre outros

O projeto Beto, Bia e Abelardo articula competências e habilidades de leitura com o debate sobre constituição de valores. Que valores a mídia, a família e a escola estão constituindo e transmitindo às nossas crianças? Nós concordamos com tudo que chega a nossos filhos ou não? Pais e educadores podem intervir na formação de valores de seus filhos e alunos?

Estas questões e outras da mesma natureza permeiam cada um dos 10 episódios de Beto, Bia e Abelardo. Há violência contra a mulher no seio da família? Há manifestações de machismo? Há intolerância contra as diferenças? Há respeito ao meio-ambiente? A criança é exposta a risco pelos adultos? O desemprego e as dificuldades econômicas afetam as relações do casal e deste com os filhos? O pano de fundo dessas histórias são quatro importantes documentos contemporâneos, que devem ser explorados nas atividades pré e pós leitura, bem como nos debates e explicações para as crianças: Declaração Universal dos Direitos Humanos, Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto do Idoso. Nas atividades de pré e de pós-leitura, bem como nos debates e explicações às crianças, devem ser propostos problemas éticos e morais que elas devem responder com auxílio dos colegas e dos pais: Qual o papel dos adultos em relação à proteção à criança? Que relações têm as fábulas infantis com os riscos que as crianças sofrem hoje, em meio a uma sociedade consumista, muito injusta e particularmente violenta contra os mais fracos? Como a criança pode evitar situações de risco? Quais são as situações potencialmente de risco para crianças? Devemos ou não proteger os idosos? Que idéias e valores os desenhos e programas infantis veiculam e estimulam nas crianças? O certo é ser solidário ou levar vantagem em tudo? O certo é passar a rasteira no colega ou se associar a ele para vencer dificuldades. Como posso, enquanto criança, tornar minha família, minha rua, minha escola, meu bairro, o mundo melhores? Quando é que eu, enquanto criança, passo dos limites? O que são limites? Posso ser espancado porque passei dos limites? O que são direitos, o que são deveres? O que é liberdade, o que é abuso?

Essas e outras questões devem ter destaque no trabalho desenvolvido pelo projeto. Disponibilizar para as crianças e para suas famílias os documentos citados é necessário.

As atividades de pré, pós e mesmo as de leitura podem ser realizadas com presença de familiares e membros da comunidade, desde que devidamente planejadas, de modo que o foco seja mantido sempre nas crianças participantes do projeto: pais e comunidade têm lugar importante, auxiliando e co-participando, mas não devem tomar o lugar das crianças.

Orientação geral: Realizar apontamentos durante as atividades.