domingo, 9 de novembro de 2025

Viva o povo brasileiro — João Ubaldo Ribeiro


Mas, vejamos bem, que será aquilo que  chamamos de povo? Seguramente não é essa massa rude, de iletrados, enfermiços, encarquilhados, impaludados, mestiços e negros. A isso não se pode chamar um povo, não era isso o que mostraríamos a um estrangeiro como exemplo do nosso povo. O nosso povo é um de nós, ou seja, um como os próprios europeus. As classes trabalhadoras não podem passar disso, não serão jamais povo. Povo é raça, é cultura, é civilização, é afirmação, é nacionalidade, não é o rebotalho dessa mesma nacionalidade. Mesmo depuradas, como prevejo, as classes trabalhadoras não serão jamais o povo brasileiro, eis que esse povo será representado pela classe dirigente, única que verdadeiramente faz jus a foros de civilização e cultura nos moldes superiores europeus — pois quem somos nós senão europeus transplantados?

*   *   *

O trecho acima reproduz a fala de Amleto Ferreira, personagem do romance Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro. Amleto enriqueceu roubando e desviando mercadorias do barão Perilo Ambrósio, morto envenenado por seus próprios escravos, por ter assassinado a sangue frio um deles e cortado a língua de outro, para que este não revelasse a farsa que o tornaria "herói" da Independência e barão.

Amleto Ferreira é filho bastardo de uma mulher negra, à qual renega e trata como ex-criada de sua família. Mestiço, veste sempre calças longas e camisas de gola alta com punhos longos para evitar que o sol escureça sua pele. No rosto e na costa das mãos, aplica pó-de-arroz, e à noite dorme sempre com uma touca lambuzada de babosa para amaciar os cabelos, que mantém esticado para trás a poder sabe-se lá de que pomada.

Assim como o falso herói da Independência, a quem roubou a fortuna durante a vida —  e ainda mais após a morte, deixando os herdeiros na pobreza —, destila preconceito e racismo, como forma de expurgar sua própria origem, não só a africana, mas também a portuguesa, para tanto subornando membros da igreja, que fraudam sua certidão de nascimento e acrescentam a ela um sobrenome inglês. 

O desprezo que nutre pelos negros, de quem descende diretamente pela parte de mãe, ele estende a todas as classes trabalhadoras, como se lê no trecho destacado. 

O livro é de 1984, prêmio Jabuti de 1985, quando o país se encontrava em plena campanha das Diretas Já! pelo fim da ditatura militar. A associação entre as classes dominantes do período colonial brasileiro e as do Brasil de meados de 1980 é por vezes direta, com falas de personagens  decalcadas do que circulava em conversas privadas, na imprensa ou em papos de botequim — os dois últimos frequentadíssimos pelo autor, jornalista de longa data e assumidamente partidário da boa cachaça servida nos bares de sua ilha de  Itaparica.

Nesse período, setores das classes dominantes e mesmo parte dos trabalhadores reproduziam o que os militares diziam em seus discursos cabotinos: "O povo não está preparado para a democracia", assim como Amleto dizia sobre a abolição: "os negros não estão preparados para ela".

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm XA lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).


quarta-feira, 18 de junho de 2025

O amor possível de Drummond


 Após o cinema, a literatura nunca mais foi a mesma. Se, num primeiro momento, muito da práxis literária – e teatral e circense – foi apropriada pelo cinema, após isso a literatura voltou-se para o telão com olhos gulosos, e muitos temeram que ela se perdesse nele como uma Alice através do espelho. 

Nos grandes centros de produção cinematográfica mundial, a profissão de escritor ganhou um novo nicho, o de roteirista, e não foram poucos os que escreveram com o objetivo de ver seus livros filmados, suprema glória e consagração de um ficcionista do século 20. A incorporação da literatura nas artes cinematográficas durante esse século foi profunda, ampla e em quantidade, e disso resultou que, a partir de um certo instante, o fluxo se invertesse, com a literatura passando a incorporar antropofagicamente temas, técnicas, formas, mitos, elementos de linguagem desenvolvidos estritamente pelo cinema.

Com o evento do cinema, a humanidade passou a receber nos olhos imagens nunca antes sequer sonhadas, e essas imagens se ofereceram a um público sempre crescente, em quantidades espetaculares, a partir da instauração de uma indústria vigorosa e de um circuito exibidor amplo e distribuído por todo o mundo.

Aos escritores, poetas ou prosadores, por sua vez, o cinema se ofereceu como um manancial inesgotável de possibilidades temáticas, composicionais, e ainda como laboratório de técnicas, muitas das quais por eles experimentadas em seus textos em estado bruto ou traduzidas com adaptações para as necessidades expressivas das artes literárias. Bem, que Hollywood empregou uma grande quantidade de escritores consagrados para adaptar para o cinema seus – deles – próprios livros, todos o sabem.

Uma dos mais óbvios empréstimos feitos pela literatura ao cinema diz respeito às divas. Escritores e mais escritores, mergulhados na sala escura, sentiram seus corações dispararem a cada entrada em cena de, digamos como exemplo, Greta Garbo. Esse tipo cruel de mulher insubmissa, dominadora, fria etc. etc. etc., causadora de estranheza a um público masculino embalado por delírios machistas, deu ensejo a mais de um texto em prosa ou verso, podem crer.

Para ficar no Brasil, falemos de Drummond. Na década de 1980 o Arquivo Público Mineiro, publicou um volume de crônicas de Drummond, inéditas em livro, do período 1930-1936. Estou certo de que a iniciativa coube a Hélio Gravatá – quem descobrir que errei, pode falar mal, aliás, quem quiser falar mal, pode fazê-lo, mesmo que eu não tenha me enganado.

O livro é muito bem feito, com ilustrações de época que são realmente muito sugestivas. Numa dessas crônicas, o poeta descompõe as formas maiúsculas de Greta Garbo, mas logo se vê que ele a elogia pelo inverso, o que o final da crônica não deixa escapar. Ela completaria 100 anos em 2005, ela a atriz, não a crônica.

Não é a única referência de Drummond nem a Garbo nem ao cinema. Aliás, em Confissões de Minas, seu primeiro livro em prosa, numa das crônicas dedicadas a reminiscências da infância, o poeta lamenta o impacto da chegada do cinema a sua Itabira do Mato Dentro, evento que, a depreender da lamentação do poeta, teria liquidado o poético teatro “amador” que lá se realizava.

As relações entre cinema e literatura, por óbvias, têm sido bastante estudadas, principalmente no âmbito do cinema. Os grandes festivais sempre dedicam espaço ao assunto – embora o inverso nem sempre seja verdade: pouquíssimos congressos literários dedicam ao cinema igual reverência.

Nos últimos tempos tenho feito o inverso: tenho procurado localizar elementos do cinema apropriados devida ou indevidamente pela literatura. Algumas incorporações saltam aos olhos, como a aqui citada, sem maiores dificuldades, outras, porém, são de observação difícil – e de comprovação ainda mais, pois dizem respeito a processos sutis, relacionados à produção de sentidos. Para se ter uma ideia, Hauser considera que o flash back, técnica eminente cinematográfica, foi inventada por… Proust, de Em Busca do Tempo Perdido. Voltarei a esse assunto futuramente.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP e Pós-Doutor em História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQA lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).