Era noite de sábado e principalmente antevéspera do Natal. Quem tinha comemorar o título de campeão, já o tinha feito. Quem tinha que troçar do Fluminense pelo sacode que levou do City, também. Os presentes já tinham sido comprados, o mercado para a ceia já tinha sido feito por quem de direito. Por isso, o entorno do largo do Machado estava distensionado, relaxado, divertido, mas sem a eletricidade dos dias anteriores.
Para não a levar comigo, contei à minha irmã uma história difícil de acreditar, mesmo levando-se em conta o espírito natalino, e desci para tomar uma das últimas cervejas do ano — ainda que de 23 a 31 de dezembro sejam robustos oito dias, que só perdem enquanto maratona etílica para a semana do Carnaval, que dura o mês inteiro.
Por preguiça, escolhi uma mesa vazia do bar em frente ao condomínio em que deixara minha irmã em santa paz. Normalmente, o ambiente noturno ali é de quem quer assistir a um jogo de futebol em uma das três telas que eles disponibilizam. Como todos os campeonatos de interesse nacional tinham terminado, nas três telas passavam reprises de jogos da temporada encerrada.
Porém, só eu ali dava pelota para as TVs, ignoradas solenemente pelos demais, que falavam alto, cantavam, faziam batuque nas mesas, dançavam, já se despedindo sem remorsos do ano de 2023. A faixa etária ali também estava bem acima da que frequentou as noites do bar durante o ano e, observando bem, havia muito mais mulheres do que homens, todas animadas, tirando fotos em grupo, ou fingindo atender telefone para se encostar em minha mesa, que ficava a um canto solitário e esquivo, de frente para a tela de TV mais modesta.
Caso curioso, os homens, que na quinzena anterior gritavam por seus times ou contra os adversários, agora estavam bem comportados, mas as senhoras... esquindô, esquindô! Só alegria.
Alegria demais, pensei com meu faro de outros natais e carnavais para encrencas. E concluí que era hora de ir embora, pois excesso de álcool em festas começa na euforia, passa pela perda de senso e acaba na confusão, nas melhor das hipóteses. Tomei rápido minha cerveja, pedi a conta, paguei e me afastei aliviado, sob o olhar fulminante da dona, que, despeitada, parou de fingir conversê ao celular.
No bar da outra esquina, outro ambiente. Uma família, alguns jovens universitários, outro solitário como eu. "Bom — arrisquei —, aquela cerveja não valeu. Essa parece que vai dar pé". E deu. Nada como tomar uma cerveja em uma mesa na calçada, numa noite morna e relaxante, pensando em coisas amenas, vendo pessoas passarem, imagens aleatórias na tela da TV, casais passando, moças empurrando carrinhos de bebê...
Pedi a conta satisfeito, paguei e voltei cem metros ao condomínio, à porta do qual estacionara uma viatura de polícia, com o giroflex azul acionado. A rua estava calma, então imaginei alguma operação de rotina de fim de ano.
Porém, não: à porta da garagem, já do lado de dentro, um tumulto em forma de círculo se avolumara. Ao centro dele, uma daquelas alegres senhoras do bar, de que eu precavido me esquivara, rolava pelo chão, como que possuída. Estava só de calcinha e sutiã. O policial negro, enorme, atlético, de braços cruzados e fuzil empunhado para baixo, tentava fazer cara de bravo, mas, na verdade, ria de lacrimejar, com os dentes trincados e as bochechas contraídas.
Quando eu passava pela portaria, o segurança do condomínio, em trajes impecáveis, cometeu a imprudência de se dirigir à senhora muito flácida, muito branca, muito gritona e muito possuída pelo álcool: "Se a senhora não vestir a roupa, não vai subir". Foi aí que ela se atirou ao chão, rolou, sacudiu a cabeleira com gosto, imprecou, jogou o sutiã pra longe e... antes que ela tirasse a calcinha, eu saí do círculo de moradores e curiosos para tomar o elevador.
Contei essa história, mais duvidosa do que a anterior, à minha irmã, que nem imaginava o que se passava três andares abaixo. Disse-lhe: "Se eles a tivessem deixado subir, ela já estaria na cama no sétimo sono. Depois, era só informar à administração, que aplicaria uma bela multa à encrenqueira. E ponto final."
Nesse ponto minha irmã me interrompeu: "Que cor era o sutiã?". Impactado com a pergunta, respondi: "Preto, mas bem desbotado, com bojos colossais". Minha irmã piscou: "E a calcinha?". Cocei o cocuruto e respondi constrangido: "De oncinha, mas mais desbotada do que o sutiã, e bem deformada, se é que tinha elástico".
Minha irmã virou-se e dirigiu-se à cozinha, engasgando der rir. De lá gritou: "Fecho com o segurança, melhor chamar a polícia e deixar prender, mesmo. Até pra armar barraco é preciso cuidar da roupa de baixo".
Minha irmã ainda não estava tomada pelo espírito natalino.
Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).