quarta-feira, 18 de junho de 2025

O amor possível de Drummond


 Após o cinema, a literatura nunca mais foi a mesma. Se, num primeiro momento, muito da práxis literária – e teatral e circense – foi apropriada pelo cinema, após isso a literatura voltou-se para o telão com olhos gulosos, e muitos temeram que ela se perdesse nele como uma Alice através do espelho. 

Nos grandes centros de produção cinematográfica mundial, a profissão de escritor ganhou um novo nicho, o de roteirista, e não foram poucos os que escreveram com o objetivo de ver seus livros filmados, suprema glória e consagração de um ficcionista do século 20. A incorporação da literatura nas artes cinematográficas durante esse século foi profunda, ampla e em quantidade, e disso resultou que, a partir de um certo instante, o fluxo se invertesse, com a literatura passando a incorporar antropofagicamente temas, técnicas, formas, mitos, elementos de linguagem desenvolvidos estritamente pelo cinema.

Com o evento do cinema, a humanidade passou a receber nos olhos imagens nunca antes sequer sonhadas, e essas imagens se ofereceram a um público sempre crescente, em quantidades espetaculares, a partir da instauração de uma indústria vigorosa e de um circuito exibidor amplo e distribuído por todo o mundo.

Aos escritores, poetas ou prosadores, por sua vez, o cinema se ofereceu como um manancial inesgotável de possibilidades temáticas, composicionais, e ainda como laboratório de técnicas, muitas das quais por eles experimentadas em seus textos em estado bruto ou traduzidas com adaptações para as necessidades expressivas das artes literárias. Bem, que Hollywood empregou uma grande quantidade de escritores consagrados para adaptar para o cinema seus – deles – próprios livros, todos o sabem.

Uma dos mais óbvios empréstimos feitos pela literatura ao cinema diz respeito às divas. Escritores e mais escritores, mergulhados na sala escura, sentiram seus corações dispararem a cada entrada em cena de, digamos como exemplo, Greta Garbo. Esse tipo cruel de mulher insubmissa, dominadora, fria etc. etc. etc., causadora de estranheza a um público masculino embalado por delírios machistas, deu ensejo a mais de um texto em prosa ou verso, podem crer.

Para ficar no Brasil, falemos de Drummond. Na década de 1980 o Arquivo Público Mineiro, publicou um volume de crônicas de Drummond, inéditas em livro, do período 1930-1936. Estou certo de que a iniciativa coube a Hélio Gravatá – quem descobrir que errei, pode falar mal, aliás, quem quiser falar mal, pode fazê-lo, mesmo que eu não tenha me enganado.

O livro é muito bem feito, com ilustrações de época que são realmente muito sugestivas. Numa dessas crônicas, o poeta descompõe as formas maiúsculas de Greta Garbo, mas logo se vê que ele a elogia pelo inverso, o que o final da crônica não deixa escapar. Ela completaria 100 anos em 2005, ela a atriz, não a crônica.

Não é a única referência de Drummond nem a Garbo nem ao cinema. Aliás, em Confissões de Minas, seu primeiro livro em prosa, numa das crônicas dedicadas a reminiscências da infância, o poeta lamenta o impacto da chegada do cinema a sua Itabira do Mato Dentro, evento que, a depreender da lamentação do poeta, teria liquidado o poético teatro “amador” que lá se realizava.

As relações entre cinema e literatura, por óbvias, têm sido bastante estudadas, principalmente no âmbito do cinema. Os grandes festivais sempre dedicam espaço ao assunto – embora o inverso nem sempre seja verdade: pouquíssimos congressos literários dedicam ao cinema igual reverência.

Nos últimos tempos tenho feito o inverso: tenho procurado localizar elementos do cinema apropriados devida ou indevidamente pela literatura. Algumas incorporações saltam aos olhos, como a aqui citada, sem maiores dificuldades, outras, porém, são de observação difícil – e de comprovação ainda mais, pois dizem respeito a processos sutis, relacionados à produção de sentidos. Para se ter uma ideia, Hauser considera que o flash back, técnica eminente cinematográfica, foi inventada por… Proust, de Em Busca do Tempo Perdido. Voltarei a esse assunto futuramente.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP e Pós-Doutor em História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).

domingo, 27 de outubro de 2024

CRÔNICAS CARIOCAS - Santa Teresa

Sexta-feira, dia 25 de outubro deste 2024, após o almoço, resolvi subir a pé até Santa Teresa, indo pela Lapa e subindo a escadaria Selarón. Eu precisava me castigar, por estar tão desatento aos sinais que durante toda a manhã me indicavam o máximo de precaução, quando tive de visitar o Detran do largo do Machado por quatro vezes, todas tentando entender o que exatamente os funcionários queriam que eu apresentasse para transferência de minha Carteira Nacional de Habilitação para a Cidade Maravilhosa. Eles foram me explicando aos picados e eu, para não cometer enganos, preferi ir e voltar várias vezes de casa ao prestigioso órgão do que preencher errado o formulário e arriscar descobrir três meses depois que o meu processo paralisara em algum escaninho por falta de uma vírgula. 

Os sinais eram evidentes: as informações truncadas, oferecidas em doses homeopáticas, a cada retorno ao guichê; minha admirável disposição de resolver a demanda naquela manhã mesmo; minha sonolência em razão de uma quinta-feira de muito trabalho; minha paciência em ir e voltar sem que sombra de irritação me acorresse; e, pior, ao fim da jornada burocrática, a satisfação da funcionária quando me informou que estava tudo certo e que agora era só aguardar o trâmite.

Os sinais eram claros: o destino estava a fim de me pregar uma peça, só eu não percebi. Quando retornei para casa feliz da vida por ter vencido o acaso, que tentava chuviscar na minha manhã de sexta-feira, na verdade ele encerrara a conversa porque me havia passado a rasteira: ao abrir a pasta para guardar os documentos... onde estava a Carteira de Identidade que eu renovara no mesmo prestigioso órgão e retirara no início do mês? Simples: ela caíra da pasta de elástico durante o trajeto.

Refiz mais algumas vezes o caminho, mas... nada, o documento estava perdido, logo na primeira vez em que o utilizei — e por causa do mesmo órgão que o emitira.

Estava na cara que o acaso queria me sacanear naquela manhã. Tentou três vezes, na quarta não falhou. Cheguei em casa praguejando contra minha burrice, almocei de mau humor e, ainda sonolento, decidi: vou subir aquela escadaria num só fôlego para sacudir a zica e aprender a respeitar os avisos do acaso (a ciência do século XIX já ensinara: a primeira vez é acidente; a segunda, coincidência; a terceira, trata-se de fenômeno passível de estudo).

Quando cheguei aos trilhos do bondinho de Santa Teresa, lá em cima, os bofes para fora, o mau humor se fora. O dia estava nublado, com uma ventarola soprando, e as ruas vazias. Esqueci do documento novo extraviado e passeei aleatoriamente pelas ladeiras, pensando em como era bom ter boas pernas e olhos ainda em bom estado. Pensei nos escritores que li e nas referências que muitos deles fizeram a esse bairro. E me lembrei da adaptação para história em quadrinhos que fiz do conto O Espelho, de Machado de Assis, que tem uma ilustração muito bonita dos arcos da Lapa, do genial João Pinheiro.

Aliás o cenário do conto é em uma casa de Santa Teresa:

Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de cousas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.

Pipocam referências a Santa Teresa em Machado de Assis (mas não só nele), quem tiver curiosidade, é só pesquisar na Internet que ficará surpreso com a abundância.

O fato é que o acaso me surrupiou o documento novinho em folha e me empurrou para uma tarde aprazível em um dos tetos do Rio de Janeiro.

Só no sábado à noite reparei que em meu celular, via uma das redes sociais que pouco utilizo, constava uma mensagem de alguém solicitando autorização do aplicativo para entrar em contato comigo.

A mensagem era do dia anterior, a mesma sexta-feira, 12 horas e 6 minutos. Dizia ela:

“Boa tarde. Sua identidade que vc perdeu se encontra aqui...”

E seguia o endereço, que omito, por discrição, e o nome da pessoa, que cito, pois merece muitas menções de agradecimento e revela um bom coração: obrigado, Cleyton Toshiro.

O destino me sacaneara, mas alguém muito gentil me salvara (não era a primeira vez: dois anos antes, perdera meu celular em frente a um hospital, liguei da editora para o meu número, um jovem atendeu e prontamente me restituiu o aparelho).

Se eu tivesse olhado o celular logo que dei conta da perda do documento, não teria passado nervoso, mas também não teria ido a Santa Teresa — o que melhorou tanto meu humor que, à noite, inclusive, tomei um chope no largo do Machado, esquecido do documento de cujo luto eu já me sacudira — e não teria conhecido o Cleyton, prova eloquente contra o pessimismo injusto de muitos em relação à espécie humana.

E esta fica sendo a crônica de Santa Teresa — a primeira, porque as referências de autores que estimo a esse bairro exigem mais, e não a propósito das rasteiras que o destino me prepara e dá, e das quais, com uma certa frequência, uma alma boa me livra.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP e Pós-Doutor em História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).

sábado, 12 de outubro de 2024

CRÔNICAS CARIOCAS — Carta ao Tom 74, cinquenta anos depois

O ano era 1980 e eu tinha dezesseis de idade. Peguei parte da indenização de um emprego que me pagava mal, e que fizera a gentileza de me demitir, e comprei um violão Giannini numa loja antiga da Casa Manon, que ficava ao pé do viaduto Santa Ifigênia, no centro velho de São Paulo. Era um violão de iniciante, de braço curto e caixa um tanto reduzida, mas muito bonito, de tampo de um alaranjado ferruginoso, rajado pelos veios da madeira, e laterais, fundo e braço em tom escuro de jacarandá.

Eu não queria ser músico, queria apenas tocar as músicas que, ouvidas no rádio ou na TV, embalaram minha infância, encantaram minha adolescência e instigavam o início de minha juventude. Esse violão sofreu muito em minhas mãos, que se retorciam nos trastes e nas cordas, em busca sôfrega dos acordes desenhados nas páginas das revistas de cifras, vendidas nas bancas de jornais a preço camarada, que me fariam viajar pelos espaços mágicos da música.

Dorival Caymmi, Adoniran Barbosa, Gonzaguinha, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Chico Buarque entre outros se tornaram vítimas recorrentes de meus ataques insanos à MPB. Cheguei a tocar Gente Humilde em um trabalho de sala de aula, sob o olhar entre complacente e incrédulo, e os ouvidos maltratados, de meu professor de matemática, Dario, que sempre foi freireano no amor pelos estudantes e discreto no aborrecimento que nós lhe proporcionávamos, que não foram poucos e nem se resumiram à música mal tocada.

Mas a questão é que uma das canções de que eu mais gostava era Carta ao Tom 74 — que neste 2024 completa 50 anos —, de Vinicius de Moraes, pela musicalidade suave, pelo ritmo "andante" e cadenciado, pela rima inusitada entre o número 107 e o nome da cantora Elizeth Cardoso, e também pelo clima nostálgico que dela se elevava como uma brisa vinda de um mar distante no tempo (para o poetinha ex-morador de Ipanema, então na Bahia) e no espaço (para mim, morador de vila Ede, na remota São Paulo de um jovem da periferia). Ao ouvir essa canção, eu  me sentia dentro da cena, os olhos úmidos voltados para um Cristo Redentor que ia sendo aos poucos encoberto pelos edifícios.

Esquina da rua Nascimento Silva com
a Vinícius de Moraes, em Ipanema.
Aprendi a tocar essa canção como todas as demais: pessimamente. Que importava? Nunca tivera pretensão artística: tocava para mim, para me sentir parte de algo que vinha magicamente embalado nos acordes da MPB e nas letras das canções, para viajar na imaginação e no tempo: lá estava eu, num apartamento da rua Nascimento Silva 107, que eu nem sabia onde ficava, num Rio de Janeiro antigo, antes mesmo de eu nascer, vendo e ouvindo Elizeth Cardoso ensaiar "as canções de Canção do Amor de Mais."

Ah, mas o tempo é uma caixinha cheia de caixinhas dentro...

Agora que estou morando no Rio de Janeiro, outro dia me veio, como uma obrigação, como um sentimento de dívida que eu tivesse de pagar urgentemente, a necessidade de visitar esse endereço entre a praia de Ipanema e a lagoa Rodrigo de Freitas.

Foi o que fiz nesta sexta-feira, 11 de outubro de 2024, 44 anos depois de tirar Carta ao Tom 74 no violão e 50 depois que a canção foi gravada: apanhei o metrô, desci na estação Nossa Senhora da Paz — Ipanema e fiz o trajeto até o número 107 da Nascimento Silva. O prédio baixo continua lá, embora a especulação imobiliária tenha enchido a rua de espigões. Continua e com duas plaquinhas em homenagem a Tom Jobim.

Se aquele jovem de 1980 visse este vecchio de 2024 tirando fotinho na porta de Tom Jobim, teria uma coceira danada de vir morar na Cidade Maravilhosa. Mal sabia ele...

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP e Pós-Doutor em História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).