Nos grandes centros de produção cinematográfica mundial, a
profissão de escritor ganhou um novo nicho, o de roteirista, e não foram poucos
os que escreveram com o objetivo de ver seus livros filmados, suprema glória e
consagração de um ficcionista do século 20. A incorporação da literatura nas
artes cinematográficas durante esse século foi profunda, ampla e em quantidade,
e disso resultou que, a partir de um certo instante, o fluxo se invertesse, com
a literatura passando a incorporar antropofagicamente temas, técnicas, formas,
mitos, elementos de linguagem desenvolvidos estritamente pelo cinema.
Com o evento do cinema, a humanidade passou a receber nos
olhos imagens nunca antes sequer sonhadas, e essas imagens se ofereceram a um
público sempre crescente, em quantidades espetaculares, a partir da instauração
de uma indústria vigorosa e de um circuito exibidor amplo e distribuído por
todo o mundo.
Aos escritores, poetas ou prosadores, por sua vez, o cinema
se ofereceu como um manancial inesgotável de possibilidades temáticas,
composicionais, e ainda como laboratório de técnicas, muitas das quais por eles
experimentadas em seus textos em estado bruto ou traduzidas com adaptações para
as necessidades expressivas das artes literárias. Bem, que Hollywood empregou
uma grande quantidade de escritores consagrados para adaptar para o cinema seus
– deles – próprios livros, todos o sabem.
Uma dos mais óbvios empréstimos feitos pela literatura ao
cinema diz respeito às divas. Escritores e mais escritores, mergulhados na sala
escura, sentiram seus corações dispararem a cada entrada em cena de, digamos
como exemplo, Greta Garbo. Esse tipo cruel de mulher insubmissa, dominadora,
fria etc. etc. etc., causadora de estranheza a um público masculino embalado
por delírios machistas, deu ensejo a mais de um texto em prosa ou verso, podem
crer.
Para ficar no Brasil, falemos de Drummond. Na década de 1980
o Arquivo Público Mineiro, publicou um volume de crônicas de Drummond, inéditas
em livro, do período 1930-1936. Estou certo de que a iniciativa coube a Hélio
Gravatá – quem descobrir que errei, pode falar mal, aliás, quem quiser falar
mal, pode fazê-lo, mesmo que eu não tenha me enganado.
O livro é muito bem feito, com ilustrações de época que são
realmente muito sugestivas. Numa dessas crônicas, o poeta descompõe as formas
maiúsculas de Greta Garbo, mas logo se vê que ele a elogia pelo inverso, o que
o final da crônica não deixa escapar. Ela completaria 100 anos em 2005, ela a
atriz, não a crônica.
Não é a única referência de Drummond nem a Garbo nem ao
cinema. Aliás, em Confissões de Minas, seu primeiro livro em prosa, numa
das crônicas dedicadas a reminiscências da infância, o poeta lamenta o impacto
da chegada do cinema a sua Itabira do Mato Dentro, evento que, a depreender da
lamentação do poeta, teria liquidado o poético teatro “amador” que lá se
realizava.
As relações entre cinema e literatura, por óbvias, têm sido
bastante estudadas, principalmente no âmbito do cinema. Os grandes festivais
sempre dedicam espaço ao assunto – embora o inverso nem sempre seja verdade:
pouquíssimos congressos literários dedicam ao cinema igual reverência.
Nos últimos tempos tenho feito o inverso: tenho procurado
localizar elementos do cinema apropriados devida ou indevidamente pela
literatura. Algumas incorporações saltam aos olhos, como a aqui citada, sem
maiores dificuldades, outras, porém, são de observação difícil – e de
comprovação ainda mais, pois dizem respeito a processos sutis, relacionados à
produção de sentidos. Para se ter uma ideia, Hauser considera que o flash back,
técnica eminente cinematográfica, foi inventada por… Proust, de Em Busca do Tempo
Perdido. Voltarei a esse assunto futuramente.
Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP e Pós-Doutor em História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).