sábado, 13 de novembro de 2010

Percurso de João Antônio até mim

É dezembro, estou agora olhando para a capa da 7a. edição da Record do livro de contos de João Antônio Malagueta, Perus e Bacanaço. Esse exemplar eu recebi de uma escola que fechou as portas quando eu lá trabalhei. Ela pagou o que pôde aos funcionários e professores da forma que pôde.

A mim couberam livros que os donos arruinados do estabelecimento comercial da área da educação consideravam de algum valor, entre os quais este, do qual comento aqui a capa. Não estavam de todo enganados, pois boa parte do que me deram como paga aos meus serviços de professor era de boa qualidade. Pena que a imobiliária não os aceitasse para quitação do aluguel.

Um exemplar dessa mesma edição eu já tivera em mãos quando adolescente. Meu irmão, que já se encontra no andar de cima, trabalhava na Folha de S. Paulo e de vez em quando aparecia com um lançamento que enviavam ao jornal para divulgação.

Na época eu me importava mais com o jogo de futebol do que com a literatura. Em princípio, não dei a menor para esse livro maior, mas como depois da pelada na rua a gente ia ver os marmanjos, entre os quais um outro irmão meu, este versado nas artes na malandragem, afiar o taco no bilhar, a capa me convidou e eu passei as férias relendo e relendo  esse clássico do submundo.  Era era também dezembro, mas era 1979, quase em outra vida.

Mudei tanto de endereço na juventude que fui me desfazendo de muita coisa a cada destino novo, sempre menor. Miseravelmente esse livro ficou pelo caminho. Porém, quis o destino que ele me retornasse às mãos, anos depois, por vias transversas. Melhor dizendo, adversas.

O fundo da imagem da capa dessa edição é o buraco do Adhemar à noite, com as lanternas traseiras dos automóveis esticando aquelas linhas vermelhas de antigos cartões postais, em meio à paisagem escura enfeitada pelas placas luminosas, pelos imensos out-doors de néon e pelas poucas janelas dos edifícios com suas luzes acesas a denunciar o adiantado da hora.

Só quem conheceu a cidade de São Paulo quando ainda havia buraco do Adhemar, placas luminosas psicodélicas e out-doors gigantes de néon saberá o quanto essa linda imagem, fotografada sem dúvida do viaduto Santa Ifigênia, tem de nostálgico e melancólico.

Na parte baixa da capa, aplicada sobre essa fotografia evanescente, ocupando toda sua largura, há uma ilustração em desenho colorido. Nela, uma mesa de bilhar com apenas três bolas, uma azul, uma branca e uma amarela.

À mesa, no taco, um jogador de face branca, bigode, mãos curadas, camisa de punho branca e colete preto. Atrás dele, apoiando-se na mesa, um observador, de paletó azul claro, chapéu de malandro. Atrás deste, um último personagem de paletó branco, cabelos e bigode pretos. Com certeza, na ordem, ilustrações de Malagueta, Perus e Bacanço. Os três concentrados pela tensão da tacada, enquanto a cidade escura ao fundo escorre em listras sanguíneas pela obra de engenharia urbana de apelido pouco respeitoso.

O taco de bilhar está prestes a cutucar a bola branca na direção da azul. Tudo indica que ela será encaçapada no buraco de quina do fundo, na parte direita da mesa que ficou de fora da capa. Não deixa de ser intrigante que na mesa de pano verde falte o buraco, a caçapa, enquanto que na foto escura que serve de fundo à capa o ilustrador tenha escolhido fazer constar justamente a então caçapa mais famosa da cidade.

Aplicados em primeiro plano, no alto, o nome  do autor, em maiúsculas, em branco e bordas vermelhas: JOÃO ANTÔNIO. Logo abaixo, uma breve chamada em letras menores: Autor de Leão de Chácara. Imediatamente abaixo, o título do livro, em vermelho com sombreado amarelo: MALAGUETA, PERUS E BACANAÇO. Em letras menores, ao centro da imagem, outra chamada, esta para o livro: “Um mergulho no submundo. É o clássico velhaco. Um dos livros mais premiados do país. Histórias já traduzidas em oito idiomas".

Esta edição é de 1980, mas a capa é toda ela segunda metade da década de 1970. Nessa época, os bares com bilhares em São Paulo já estavam indo para o brejo. No lugar das mesas, foram sendo instaladas máquinas de fliperama e de jogos da Taito. Eu, então office-boy fora da escola por razões que a luta de classes e a luta pela democracia me explicou depois, dava nesses bares com meus iguais, depois do expediente e às vezes no meio dele, por causa das máquinas. Porém, ainda dividimos espaço neles com personagens como as retratados na ilustração de capa do livro de João Antônio - e, como nela, eles não conversavam.

Ou antes, conversavam por gestos e olhares. No barulho das pancadas que dávamos nas máquinas para impedir que elas engolissem nossas bolinhas antes do tilt, víamos suas bocas se mexerem de raro em raro, em comentário a uma ou outra jogada, entre baforadas de cigarro mata-ratos, vendidos a granel, meio úmidos, amassados e sem filtros.

Os mal educados éramos nós. Eles, com seus tacos engizados e seus olhares concentrados eram uns finos. Íamos embora e eles continuavam noite adentro e madrugada afora. Nunca reclamaram de nosso barulho de passarinhos pousados em galho talvez errado.

Novas edições dessa obra de João Antônio se esmeraram em manter vivo esse texto significativo de nossa literatura. Porém, mataram a capa.

Por isso guardo com tanto amor o exemplar dessa edição, que me chegou em primeira vez pelas mãos curadas de meu irmão, um fino, um boêmio, com quem tantas vezes frequentei esses mesmos bares, e em segunda pelas mãos de comerciantes da educação arruinados.

Tratando do assunto de que trata, e do modo como trata, não poderia imaginar percurso mais legítimo desse livro de João Antônio até mim. Nem melhor capa, cujo autor não mereceu da parte da editora sequer menção na página interna de créditos.

Talvez tomado pela melancolia do espírito natalino, talvez pela saudade de meu irmão, todo final de ano me vejo folheando esse volume. Pela janela da ilustração de capa, recuo no tempo para o distante dezembro de 1979, e  vou saltando  os olhos do pano da mesa de bilhar para a avenida  Prestes Maia, que some na noite rumo a uma Zona Norte que não existe mais.

JEOSAFÁ, professor, foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria);   O jovem Malcolm X A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para a Educação Básica, em projetos para jovens em situação de risco social.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Ela é a nossa pedra da sorte,a nossa muiraquitã encantada


Contra o mal e a mentira, ela vem em nosso socorro. Perseguida pelo inescrupuloso vilão de língua comprida e visão curta, ela cruza o Brasil levando o sonho de um país em busca de sua identidade e de seu futuro. Ela se encanta em admirações de rios e matas, mas vem das minas para dar em São Paulo e enfrentar o gigante ardiloso de mil caras camaleônicas, ardiloso e unha e carne com estrangeiros levadores de nossas riquezas para os confins dos confins.

Na cidade de concreto o povo a busca mas está sabendo só agora, desfeito de sua identidade verdadeira, mineral, florestal, solidária, brasileira. Ela tem que vencer o malvado na fortaleza dele para que o povo de Macunaíma, recuperado de sua alma primeva, caminhe para frente irmanado em Jiguê, Maanape e o herói.

Quem é ele, esse cruel mentiroso, ardiloso, mil caras, sempre deslavado de micagens com cara de bobo a perguntar: “Quem, eu?” quando rouba pedras e “otras cositas más” ?Ora, ele é um vendido para os estrangeiros, que tem vergonha do Brasil e quer trancar a identidade caipira de nossa gente dentro de um cofre para vender como bugiganga a preço abaixo de banana. Ou não, uma vez que é pervertido, contumaz e colecionador de ódio e pedras para atirar nos inocentes.

Quem é ele, já adivinharam, né?

Ele, vocês leitores sabem, é um Gigante Piaimã, um Venceslau Pietro Pietra, unha e carne com os trituradores de povo, comedores antropófagos. Ele é do bem rico, do bem esperto, do bem truculento. Joaquim Pedro de Andrade em seu filme pôs Exu dando um coro nele, tão do bem pervertido que ele é. Tão bem ruim é que acaba caindo dentro do molho de maldade que tinha mandado preparar para cozinhar os outros. No filme, é bonito de ver o bem pervertido caindo no molho fervente das suas maldades e se afogando no caldo fervente de suas arapucas que deram errado.

E ela, quem é?

Ué, está no começo do princípio do início da luta pelo Brasil até antes de ele falar português. Ela é a luta pela vida, pelo direito do jeito da gente brasileira ser e de estar sobre a terra do seu próprio jeito, que é sua seiva manifesta e ninguém tasca, sem vergonha de morar em Urariquera, sendo esta a metáfora da nossa terra.

Ela tem a força da terra e da vegetação, e dos bichos também, e dos viventes humanos idem ibidem na mesma data, porque é mulher e, assim sendo mãe da vida, niguém tasca, porque vai vencer no final. Mesmo já tendo sido presa por outros venceslais pietros pietras bocudos trogloditas que enfeiam esta gleba.

E o embate final?

O embate derradeiro é em São Paulo. Ela, pedra que é, vem de minas profundas, de metafóricas urariqueras que cascalham nos rios com força mineral e germe de vida fecunda.

Mário de Andrade sabia das coisas quando a pré-viu e pós-viu, ela, a nossa pedra da sorte, que demorou mas foi achada espalhada por toda a metafórica Urariquera. Ela, a nossa pedra da sorte, a nossa muiraquitã, que vence no final, como quis Macunaíma.

Como quis Mário de Andrade, como quis Joaquim Pedro de Andrade. Como queremos nós hoje.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

EDUCAÇÃO — Sem escrúpulos, disposto a tudo para chegar ao poder


Ricardo III.  Dir. Richard Loncraine. Ator principal:  Ian Mckellen. In  Adoro Cinema.

Ele não vale nada, mente, suborna, envolve a própria família em escândalos, se faz de vítima para atraiçoar todos os que estão em seu caminho e, em meio à derrota humilhante que o varrerá  do poder e o trancafiará para sempre nas piores páginas dos compêndios de história, ainda vai proferir com a língua afiada e os olhos esbugalhados de sempre: "MEU REINO POR UM CAVALO!" Seu nome é...Ricardo III.

Ricardo de Gloster (Gloucester), de Willian Shakespeare, personifica tudo de perverso a que a ambição ilimitada pelo poder é capaz de conduzir, principalmente quando ela fermenta, borbulha e eclode em um espírito atormentado, ressentido e despido de qualquer senso de moral:

“Ricardo: Você conhece alguém a quem a corrupção do ouro seria uma tentação para executar secretamente um assassinato?

Pajem: Meu senhor, conheço um nobre descontente com a vida porque seus pobres recursos não correspondem à altivez de seu espírito. O ouro, para ele, vale tanto quanto vinte oradores e, sem dúvida, o tentaria a fazer qualquer coisa.

Ricardo: E qual o nome dele?

Pajem: Tyrrel, meu senhor.

Ricardo: Conheço alguma coisa dele. Vá, pajem. Traga esse homem aqui. [Sai o pajem]. O sábio Buckingham, homem de tão profundas considerações de consciência, não será mais aquele de quem tomo conselhos. Então, veio até este ponto comigo, e agora para, para respirar? Bem, que seja! Casteby, aproxime-se. Espalhe o boato de que Ana, minha esposa, está gravemente enferma. Vou ordenar que ela fique isolada. Além disso, descubra para mim algum nobre ambicioso e de pouca projeção, com quem irei casar imediatamente a filha de Clarence... O garoto é um idiota. Não tenho por que temê-lo. Atenção! O que houve? Está sonhando acordado? Repito, espalhe por aí que Ana, minha rainha, está doente, quase morrendo. Aja depressa. Preciso acabar logo com todas as esperanças de me prejudicarem, antes que cresçam. [Sai Catesby]. Devo me casar com a filha do meu irmão Eduardo porque, de outro modo, meu reinado repousará sobre uma lâmina de vidro. Vou matar seus irmãos e depois me casar com ela. É um caminho tortuoso para o triunfo! Mas estou tão afundado no sangue que um pecado leva a outro e não tenho lágrimas de piedade para derramar.”

Ricardo de Gloster, já empossado Ricardo III, explicita aqui seus planos já depois de ter assassinado o rei Eduardo IV, seu irmão, esposo da mesma Ana a quem desposou e de quem pretende se livrar, e Clarence, seu outro irmão, que o tinha por aliado.

Para Ricardo de Gloster não há impedimento de ordem política, religiosa, ética ou moral que o impeça de atingir aquilo a que almeja. É invejoso, cruel, cínico, hipócrita, caviloso, manipulador e astucioso em mover as vaidades, ambições e falta de escrúpulos alheios em favor de suas próprias pretensões:

“Ricardo: Eu, de aparência tão desagradável, destituído da formosura necessária para agradar às jovens de andar gracioso. Eu, disforme, traído pela natureza, posto no mundo antes da hora, inacabado e tão horrendo que os cães ladram à minha passagem, não aprecio a beleza nem os prazeres desses dias. E, se o sol, para mim, não faz mais do que exibir a mim mesmo minha sombra deformada, o que me resta é odiar esse tempo de fraqueza e de paz. Assim, sou o vilão, aquele que trama e conspira. E uso tudo o que posso: argumentos falsos, calúnias, sonhos, profecias tresloucadas, o que seja, para induzir perigosamente ao engano. Para gerar o ódio que leva ao assassinato.”

A presente edição, além do texto adaptado com grande felicidade, oferece para o leitor: uma “Apresentação”, uma “Introdução”, um “Posfácio” e tópicos, ao final, “Para Discussão e Aprofundamento” muito convenientes, pois situam o contexto histórico e artístico desse drama shakespeariano e orientam uma leitura mais detida da peça.

Realizar leituras dramáticas desse texto teatral consiste em um desafio tentador para professores e alunos. Porém, se seguirmos o conselho de Oscar Wilde, devemos resistir a tudo, menos às tentações.

Encená-la na escola, então, é um ato de desprendimento intelectual e espiritual sem tamanho, pois enfrentar, ainda que seja no palco, o sanguinário e inescrupuloso Ricardo de Gloster é tarefa que exige, além de técnica, coragem.

FONTE: Aguiar, Luiz Antonio. Ricardo III / Willian Shakespeare. Adap. Luiz Antonio Aguiar. Rio de Janeiro. Ed. DIFEL, 2009.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).