terça-feira, 26 de dezembro de 2023

CRÔNICAS CARIOCAS — O espírito natalino

Era noite de sábado e principalmente antevéspera do Natal. Quem tinha comemorar o título de campeão, já o tinha feito. Quem tinha que troçar do Fluminense pelo sacode que levou do City, também.  Os presentes já tinham sido comprados, o mercado para a ceia já tinha sido feito por quem de direito. Por isso, o entorno do largo do Machado estava distensionado, relaxado, divertido, mas sem a eletricidade dos dias anteriores.

Para não a levar comigo, contei à minha irmã uma história difícil de acreditar, mesmo levando-se em conta o espírito natalino, e desci para tomar uma das últimas cervejas do ano — ainda que de 23 a 31 de dezembro sejam robustos oito dias, que só perdem enquanto maratona etílica para a semana do Carnaval, que dura o mês inteiro.

Por preguiça, escolhi uma mesa vazia do bar em frente ao condomínio em que deixara minha irmã em santa paz. Normalmente, o ambiente noturno ali é de quem quer assistir a um jogo de futebol em uma das três telas que eles disponibilizam. Como todos os campeonatos de interesse nacional tinham terminado, nas três telas passavam reprises de jogos da temporada encerrada.

Porém, só eu ali dava pelota para as TVs, ignoradas solenemente pelos demais, que falavam alto, cantavam, faziam batuque nas mesas, dançavam, já se despedindo sem remorsos do ano de 2023. A faixa etária ali também estava bem acima da que frequentou as noites do bar durante o ano e, observando bem, havia muito mais mulheres do que homens, todas animadas, tirando fotos em grupo, ou fingindo atender telefone para se encostar em minha mesa, que ficava a um canto solitário e esquivo, de frente para a tela de TV mais modesta.

Caso curioso, os homens, que na quinzena anterior gritavam por seus times ou contra os adversários, agora estavam bem comportados, mas as senhoras... esquindô, esquindô! Só alegria.

Alegria demais, pensei com meu faro de outros natais e carnavais para encrencas. E concluí que era hora de ir embora, pois excesso de álcool em festas começa na euforia, passa pela perda de senso e acaba na confusão, nas melhor das hipóteses. Tomei rápido minha cerveja, pedi a conta, paguei e me afastei aliviado, sob o olhar fulminante da dona, que, despeitada, parou de fingir conversê ao celular.

No bar da outra esquina, outro ambiente. Uma família, alguns jovens universitários, outro solitário como eu. "Bom — arrisquei —, aquela cerveja não valeu. Essa parece que vai dar pé". E deu. Nada como tomar uma cerveja em uma mesa na calçada, numa noite morna e relaxante, pensando em coisas amenas, vendo pessoas passarem, imagens aleatórias na tela da TV, casais passando, moças empurrando carrinhos de bebê...

Pedi a conta satisfeito, paguei e voltei cem metros ao condomínio, à porta do qual estacionara uma viatura de polícia, com o giroflex azul acionado. A rua estava calma, então imaginei alguma operação de rotina de fim de ano.

Porém, não: à porta da garagem, já do lado de dentro, um tumulto em forma de círculo se avolumara. Ao centro dele, uma daquelas alegres senhoras do bar, de que eu precavido me esquivara, rolava pelo chão, como que possuída. Estava só de calcinha e sutiã. O policial negro, enorme, atlético, de braços cruzados e fuzil empunhado para baixo, tentava fazer cara de bravo, mas, na verdade, ria de lacrimejar, com os dentes trincados e as bochechas contraídas.

Quando eu passava pela portaria, o  segurança do condomínio, em trajes impecáveis, cometeu a imprudência de se dirigir à senhora muito flácida, muito branca, muito gritona e muito possuída pelo álcool: "Se a senhora não vestir a roupa, não vai subir". Foi aí que  ela se atirou ao chão, rolou, sacudiu a cabeleira com gosto, imprecou, jogou o sutiã pra longe e... antes que ela tirasse a calcinha, eu saí do círculo de moradores e curiosos para tomar o elevador.

Contei essa história, mais duvidosa do que a anterior, à minha irmã, que nem imaginava o que se passava três andares abaixo. Disse-lhe: "Se eles a tivessem deixado subir, ela já estaria na cama no sétimo sono. Depois, era só informar à administração, que aplicaria uma bela multa à encrenqueira. E ponto final."

Nesse ponto minha irmã me interrompeu: "Que cor era o sutiã?". Impactado com a pergunta, respondi: "Preto, mas bem desbotado, com bojos colossais". Minha irmã piscou: "E a calcinha?". Cocei o cocuruto e respondi constrangido: "De oncinha, mas mais desbotada do que o sutiã, e bem deformada, se é que tinha elástico".

Minha irmã virou-se e dirigiu-se à cozinha, engasgando der rir. De lá gritou: "Fecho com o segurança, melhor chamar a polícia e deixar prender, mesmo. Até pra armar barraco é preciso cuidar da roupa de baixo".

Minha irmã ainda não estava tomada pelo espírito natalino.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

CRÔNICAS CARIOCAS — As metas ou: ninguém tasca

Uma amiga todo final de ano se atira do alto do trapézio sem rede de dezembro a um exame minucioso de seu planejamento anual. Como é sistemática, traz tudo anotado em cadernos e em seu computador pessoal. Diz ela que após esse balanço, comemora as metas alcançadas, faz um sério exame de consciência sobre os insucessos e traça as metas para o ano seguinte.

Admiro sua disciplina, mas... passo, ainda mais quando sou incapaz de chegar sequer próximo de algo semelhante ao que ela faz. Não que seja avesso à prática, não, também faço meus planos e traço minhas metas, porém deixo tudo na cabeça, só muito eventualmente pondo no papel, no computador, no aplicativo de notas do celular ou ainda, no mais das vezes, em post-its grudados na porta da geladeira, algo que a minha memória possa trair — e, mesmo nesse caso, de tanto olhar as anotações, acabo, uma hora ou outra, decorando-as.

É lógico que o método dela é mais científico e preciso do que o meu, mas quem disse que eu gostaria de, ao apagar das luzes do ano, voltar minha atenção para o leite derramado? Ah, não! É sofrer mais uma vez pelo que teve má solução lá atrás e cujas lições, seguramente, eu já extraí, pois nunca deixo de olhar atentamente, no momento mesmo do tropicão, para a pedra na qual me estropiei, após o que sigo em frente mancando até a dor passar, porque a lição, essa já restou aprendida in loco e in tempore. Assim, ao final do ano, voltar a esse passo em falso seria ocioso e um tanto mórbido.

Minha amiga que me desculpe, a estimo, mas não a copio.

Tracei há alguns anos metas simples de serem lembradas por anos a fio: ficar velho, barbudo, musculoso e endinheirado.

Tenho me esforçado por atingi-las, e quem me conhece sabe o quanto sou espartano —  CDF, se preferirem — quando decido algo. Querem ver? Das quatro metas que estabeleci, duas já alcancei: estou barbudo e  velho. E como dizia Aracy de Almeida: ninguém tasca.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).


CRÔNICAS CARIOCAS — Tudo está bem quando acaba bem

Meu amigo, orgulho da vila Ede, foi convidado a palestrar na cidade maravilhosa, tudo pago, incluso o cachê, que se não fez jus a seu enorme merecimento, ficou dignamente dentro dos valores praticados pelo mercado.

Artista plástico, professor e curador requisitado por museus, galerias e instituições congêneres, sua atuação foi como relatou Júlio César num outro tempo, num outro lugar, em relação a outras batalhas: foi, viu, venceu.

Fazendo o famoso bate-volta São Paulo - Rio de Janeiro, foi de  Uber até Congonhas, embarcou pela ponte aérea direto ao Santos Dumont, onde um carro da promotora do evento o aguardava e, chegando a seu destino, proferiu palavras cheias de calor e verdade a uma plateia atenta e feliz com a proximidade do Natal.

Desincumbido de sua tarefa, sobrou-lhe tempo para dar suas pernadas pelo centro do Rio. Pelo que depreendi de sua fala, passou ao lado da Colombo e nem se deu conta, tendo ido dar por distração em uma casa de chá gurmê, onde degustou uma infusão divina de pitanga que lhe custou os tubos  — o que repercutiu mal em seu digno pró-labore ainda por vir.

Agarrado à sua valise, com medo de ser assaltado na Uruguaiana, ajeitando os óculos sobre o nariz, como todo curador de museu que se preza, quebrou à esquerda, deu uns passos rápidos e ingressou, pingando de suor, no Real Gabinete Português de Leitura, no interior do qual enxugou a face negra de profusas barbas brancas com um refrescante lencinho de papel fragrância limão que sacou do bolso — primeiro tirou o lenço da embalagem, fique bem entendido.

Depois, bateu várias fotos das estantes de livros com seu celular — mas também fique bem entendido que antes descartou o lencinho numa lixeira próxima, porque constatou que fotografar com o lenço úmido em uma das mãos estava enchendo saco. Por fim, usou o mesmo celular para chamar um Uber de volta ao aeroporto.

Chegou ao Santos Dumont com antecedência e, maravilha das maravilhas, conseguiu embarcar e partir antes do previsto, de sorte — se é que o que sobrevirá pode  assim ser chamado — que chegou a São Paulo ainda mal terminara a tarde, matutando, durante o voo rápido da ponte aérea, que seu estado de alerta pelas ruas do Rio não fazia sentido, tendo mais a ver com as notícias sensacionalistas da TV do que com a realidade carioca, em que o único assalto presenciado ficou sendo o preço do chá.

No aeroporto de Congonhas, tomou um táxi para a estação Santa Cruz do Metrô, onde desceu e, antes que alcançasse a entrada, foi inapelavelmente assaltado. Por sorte —  essa palavra que pela segunda vez comparece ambiguamente nesta crônica —, disse ele, não levaram documentos, só uns trocados em espécie, a carteira e o cartão do banco, inócuo para os bandidos pois seu saldo estava estourado e o cachê ainda não fora depositado.

Apressados, os bandidos esqueceram-se de levar o celular, pelo qual ele prontamente acionou o banco, que bloqueou o cartão roubado e emitiu um novo —  que ele inaugurou, aliás, pagando sua metade da conta no bar, em que fizemos troca de presentes de nossos sessenta anos de idade e de amigo secreto de Natal.

E fica explicado com este final feliz o título shakespeariano desta crônica — Melhor Shakespeare da comédia do que do drama, ao menos neste caso — disse ele, duplamente vítima: do episódio infausto e desta crônica.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).