quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

CRÔNICAS CARIOCAS — As metas ou: ninguém tasca

Uma amiga todo final de ano se atira do alto do trapézio sem rede de dezembro a um exame minucioso de seu planejamento anual. Como é sistemática, traz tudo anotado em cadernos e em seu computador pessoal. Diz ela que após esse balanço, comemora as metas alcançadas, faz um sério exame de consciência sobre os insucessos e traça as metas para o ano seguinte.

Admiro sua disciplina, mas... passo, ainda mais quando sou incapaz de chegar sequer próximo de algo semelhante ao que ela faz. Não que seja avesso à prática, não, também faço meus planos e traço minhas metas, porém deixo tudo na cabeça, só muito eventualmente pondo no papel, no computador, no aplicativo de notas do celular ou ainda, no mais das vezes, em post-its grudados na porta da geladeira, algo que a minha memória possa trair — e, mesmo nesse caso, de tanto olhar as anotações, acabo, uma hora ou outra, decorando-as.

É lógico que o método dela é mais científico e preciso do que o meu, mas quem disse que eu gostaria de, ao apagar das luzes do ano, voltar minha atenção para o leite derramado? Ah, não! É sofrer mais uma vez pelo que teve má solução lá atrás e cujas lições, seguramente, eu já extraí, pois nunca deixo de olhar atentamente, no momento mesmo do tropicão, para a pedra na qual me estropiei, após o que sigo em frente mancando até a dor passar, porque a lição, essa já restou aprendida in loco e in tempore. Assim, ao final do ano, voltar a esse passo em falso seria ocioso e um tanto mórbido.

Minha amiga que me desculpe, a estimo, mas não a copio.

Tracei há alguns anos metas simples de serem lembradas por anos a fio: ficar velho, barbudo, musculoso e endinheirado.

Tenho me esforçado por atingi-las, e quem me conhece sabe o quanto sou espartano —  CDF, se preferirem — quando decido algo. Querem ver? Das quatro metas que estabeleci, duas já alcancei: estou barbudo e  velho. E como dizia Aracy de Almeida: ninguém tasca.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).


CRÔNICAS CARIOCAS — Tudo está bem quando acaba bem

Meu amigo, orgulho da vila Ede, foi convidado a palestrar na cidade maravilhosa, tudo pago, incluso o cachê, que se não fez jus a seu enorme merecimento, ficou dignamente dentro dos valores praticados pelo mercado.

Artista plástico, professor e curador requisitado por museus, galerias e instituições congêneres, sua atuação foi como relatou Júlio César num outro tempo, num outro lugar, em relação a outras batalhas: foi, viu, venceu.

Fazendo o famoso bate-volta São Paulo - Rio de Janeiro, foi de  Uber até Congonhas, embarcou pela ponte aérea direto ao Santos Dumont, onde um carro da promotora do evento o aguardava e, chegando a seu destino, proferiu palavras cheias de calor e verdade a uma plateia atenta e feliz com a proximidade do Natal.

Desincumbido de sua tarefa, sobrou-lhe tempo para dar suas pernadas pelo centro do Rio. Pelo que depreendi de sua fala, passou ao lado da Colombo e nem se deu conta, tendo ido dar por distração em uma casa de chá gurmê, onde degustou uma infusão divina de pitanga que lhe custou os tubos  — o que repercutiu mal em seu digno pró-labore ainda por vir.

Agarrado à sua valise, com medo de ser assaltado na Uruguaiana, ajeitando os óculos sobre o nariz, como todo curador de museu que se preza, quebrou à esquerda, deu uns passos rápidos e ingressou, pingando de suor, no Real Gabinete Português de Leitura, no interior do qual enxugou a face negra de profusas barbas brancas com um refrescante lencinho de papel fragrância limão que sacou do bolso — primeiro tirou o lenço da embalagem, fique bem entendido.

Depois, bateu várias fotos das estantes de livros com seu celular — mas também fique bem entendido que antes descartou o lencinho numa lixeira próxima, porque constatou que fotografar com o lenço úmido em uma das mãos estava enchendo saco. Por fim, usou o mesmo celular para chamar um Uber de volta ao aeroporto.

Chegou ao Santos Dumont com antecedência e, maravilha das maravilhas, conseguiu embarcar e partir antes do previsto, de sorte — se é que o que sobrevirá pode  assim ser chamado — que chegou a São Paulo ainda mal terminara a tarde, matutando, durante o voo rápido da ponte aérea, que seu estado de alerta pelas ruas do Rio não fazia sentido, tendo mais a ver com as notícias sensacionalistas da TV do que com a realidade carioca, em que o único assalto presenciado ficou sendo o preço do chá.

No aeroporto de Congonhas, tomou um táxi para a estação Santa Cruz do Metrô, onde desceu e, antes que alcançasse a entrada, foi inapelavelmente assaltado. Por sorte —  essa palavra que pela segunda vez comparece ambiguamente nesta crônica —, disse ele, não levaram documentos, só uns trocados em espécie, a carteira e o cartão do banco, inócuo para os bandidos pois seu saldo estava estourado e o cachê ainda não fora depositado.

Apressados, os bandidos esqueceram-se de levar o celular, pelo qual ele prontamente acionou o banco, que bloqueou o cartão roubado e emitiu um novo —  que ele inaugurou, aliás, pagando sua metade da conta no bar, em que fizemos troca de presentes de nossos sessenta anos de idade e de amigo secreto de Natal.

E fica explicado com este final feliz o título shakespeariano desta crônica — Melhor Shakespeare da comédia do que do drama, ao menos neste caso — disse ele, duplamente vítima: do episódio infausto e desta crônica.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).


sábado, 16 de dezembro de 2023

CRÔNICA — Cena urbana


A caminho do trabalho, logo pela manhã, fui atraído por uma altercação. Do outro lado da avenida, homem e mulher, ambos na casa dos cinquenta anos de idade, do um metro e cinquenta de altura e da compleição rechonchuda, trocavam cobras e lagarto à vista e aos ouvidos de todos.

Separados de mim e da restante plateia deste lado da via pelo fluxo intenso do trânsito, só chegavam a nós, seccionadas pelo ruído dos automóveis, fragmentos de palavras, cujos pedaços faltantes poderiam ser deduzidos sem esforço, graças aos gestos inequívocos e um tanto teatrais do casal  eram um casal, como se verá ao fim.

Entrei no bar, pedi o de sempre para aquela hora da manhã e tomei um lugar estratégico para acompanhar o bate-boca, que se degenerasse em agressão física exigiria a minha pronta intervenção, bem como a de meus vizinhos de balcão, uns apreensivos, outros curiosos, a maioria divertindo-se à beça com a situação.

Foi então que notei ao pé da entrada do bar um simpático vira-lata branco com manchas pretas aleatórias pelo corpo, cabeça e patas, comodamente sentado de costas para nós, as orelhas em pé, inicialmente, a observar os briguentos. Ofereci a ele metade de meu pão com manteiga, que ele aceitou sem se fazer muito humilde e que comeu devagar, sem tirar os olhos da cena que também o atraíra àquele ponto da cidade.

Como o entrevero não piorasse nem melhorasse, entrando naquele platô de previsibilidade um tanto desinteressante, cuidei do meu café por instantes. Ao observar novamente o cão, notei que também nele o interesse no conflito decaíra. Suas orelhas estavam lassas e sua cabeça acompanhava distraída o ir e vir de dos autos.

Levantei-me, paguei a conta e caminhei, parando ao lado do pintado, que aliás tinha coleira, pelos limpos e excelente aspecto. Ele apontou o focinho para os briguentos do outro lado da via e voltou para mim seu olhar significativo, como quem diz "Não vai dar em nada". Então, levantou-se e foi-se, abanando a cauda, feliz talvez com o resultado do conflito.

Vi-o sumir na esquina mais próxima, entre pernas de gente e fumaça de escapamentos de carros.  Tive ocasião de observar no outro lado da via a dona dar o último pito no homem, que desta vez não retrucou e flexionou o braço, oferecendo-o a ela. Esta, aceitou, opiniosa mas satisfeita, e meteu o seu no dele. Os braços dados, os dois seguiram pela calçada apinhada de gente, apressados em alcançar a entrada do metrô.

Nesse momento, um pensamento entre poético e bizarro me ocorreu: tivera eu também cauda, ela estaria rindo como à do simpático vira-lata de há pouco, que, como eu, parou ali só para assistir ao desenrolar da cena urbana, cujo desfecho feliz cada qual aplaudiu a seu modo.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).