A caminho do trabalho, logo pela manhã, fui atraído por uma altercação. Do outro lado da avenida, homem e mulher, ambos na casa dos cinquenta anos de idade, do um metro e cinquenta de altura e da compleição rechonchuda, trocavam cobras e lagarto à vista e aos ouvidos de todos.
Separados de mim e da restante plateia deste lado da via pelo fluxo intenso do trânsito, só chegavam a nós, seccionadas pelo ruído dos automóveis, fragmentos de palavras, cujos pedaços faltantes poderiam ser deduzidos sem esforço, graças aos gestos inequívocos e um tanto teatrais do casal — eram um casal, como se verá ao fim.
Entrei no bar, pedi o de sempre para aquela hora da manhã e tomei um lugar estratégico para acompanhar o bate-boca, que se degenerasse em agressão física exigiria a minha pronta intervenção, bem como a de meus vizinhos de balcão, uns apreensivos, outros curiosos, a maioria divertindo-se à beça com a situação.
Foi então que notei ao pé da entrada do bar um simpático vira-lata branco com manchas pretas aleatórias pelo corpo, cabeça e patas, comodamente sentado de costas para nós, as orelhas em pé, inicialmente, a observar os briguentos. Ofereci a ele metade de meu pão com manteiga, que ele aceitou sem se fazer muito humilde e que comeu devagar, sem tirar os olhos da cena que também o atraíra àquele ponto da cidade.
Como o entrevero não piorasse nem melhorasse, entrando naquele platô de previsibilidade um tanto desinteressante, cuidei do meu café por instantes. Ao observar novamente o cão, notei que também nele o interesse no conflito decaíra. Suas orelhas estavam lassas e sua cabeça acompanhava distraída o ir e vir de dos autos.
Levantei-me, paguei a conta e caminhei, parando ao lado do pintado, que aliás tinha coleira, pelos limpos e excelente aspecto. Ele apontou o focinho para os briguentos do outro lado da via e voltou para mim seu olhar significativo, como quem diz "Não vai dar em nada". Então, levantou-se e foi-se, abanando a cauda, feliz talvez com o resultado do conflito.
Vi-o sumir na esquina mais próxima, entre pernas de gente e fumaça de escapamentos de carros. Tive ocasião de observar no outro lado da via a dona dar o último pito no homem, que desta vez não retrucou e flexionou o braço, oferecendo-o a ela. Esta, aceitou, opiniosa mas satisfeita, e meteu o seu no dele. Os braços dados, os dois seguiram pela calçada apinhada de gente, apressados em alcançar a entrada do metrô.
Nesse momento, um pensamento entre poético e bizarro me ocorreu: tivera eu também cauda, ela estaria rindo como à do simpático vira-lata de há pouco, que, como eu, parou ali só para assistir ao desenrolar da cena urbana, cujo desfecho feliz cada qual aplaudiu a seu modo.
Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).