sábado, 13 de agosto de 2016

Professor às vezes dá uma dentro

Psiquiatra Nise da Silveira, que nos ensinou a mergulhar no poço cego de nossas emoções para transformá-las em linguagem.

Depois de trombadas, confrontos, provocações, advertências, "duras" e outros atritos com alunos, decidi pôr em prática um pouco de psicologia da educação que andei deixando de lado para entrar “de sola” os conteúdos da apostila, objeto de tédio dos alunos e de grandes reflexões filosófica da minha parte.

 Abrindo rodas de conversa sobre seus medos, pesadelos, inseguranças, conflitos pessoais etc., decidimos atacar furiosamente as páginas de nossos cadernos (sim, pois quem entra na roda tem que sambar) para desenhar esses pavorosos fantasmas que nos atormentam e dos quais temos mais medo do que o conde Drácula de uma estaca de pau.

 Até os comportamentos se ajustarem à ideia de compartilhamento da intimidade por meio da conversa, deu um certo trabalho, pois certas regras de privacidade e civilidade são essenciais, mas em tempo bastante curto todos já queriam pôr para fora seus fantasmas, empregando linguagem a mais significativa e analítica  possível.

A partir das conversas, todos produziriam desenhos e os comentariam na roda de conversa. Desenhos e mais desenhos apareceram, explicados em grande círculo ou em pequenas rodas por quem os viu e por quem os fez –  que muitas vezes não percebe o alcance dos símbolos que empregou para representar ora sonhos e pesadelos, ora lembranças angustiantes, ora simplesmente medo de fracassar.

(E aqui abro parênteses. Eesse medo surgiu muito forte, o fracasso do pessoal – o que é uma carga bastante pesada e precoce para adolescentes suportarem, reflexo da instabilidade que o Brasil e o Mundo têm vivido. Fecho parênteses).

O grito (1893). Edvar Munch.
As aulas a partir desses encontros prenhes de carga emocional se tornaram mais leves, e os alunos desejaram continuar essa forma de produzir textos a partir dessas conversas coletivas. Os desenhos, acompanhados de mensagens verbais ainda "irracionais" no verso da página, logo se transformam em poemas, redações e textos reflexivos.

Observei que grande parte da bagunça, da indisciplina, das provocações e conflitos entre os adolescentes nascem da insegurança em relação ao futuro, o que os deixa instáveis e explosivos.

O que nós adultos estamos prometendo a eles mesmo?

A julgar pelos desenhos, o fim do mundo, o Apocalipse. Isso não é justo! Até porque é mentira, o mundo vai continuar, a despeito de parte das atuais gerações adultas preferirem o ódio, o preconceito e a violência.

Alguns rejeitam a aula com pressa de se haverem logo com os problemas adultos que os angustiam fora de hora: o mercado de trabalho, a faculdade, a sobrevivência família. Porém, como a idade ainda não permite que eles encarem esses ossos duros, eles se angustiam e introjetam problemas cujas soluções ainda não lhes dizem respeito.

 Sem ter como interferir nessa carga que indevidamente as gerações adultas atuais jogam sobre seus ombros, e sem ter como e com que se expressar, explodem na sala de aula atirando estojos, trocando empurrões e às vezes socos com os colegas, “infernizando” a vida do professor ou dos pais, ou simplesmente dormindo sobre a carteira, desistindo das lições de casa, enterrando-se no celular em busca de bonequinhos que os façam sorrir – ou acordando de madrugada aos prantos.

É preciso ensiná-los a expressar seus medos e sonhos, a devolver aos adultos a carga indevida, e acenar a eles a possibilidade de um mundo melhor, pois não é justo que as gerações adultas atuais consintam em entregar a seus filhos e netos, e antes do tempo!, um mundo pior do que encontraram. Precisamos agir imediatamente e tirar esse peso das costas de crianças, adolescentes  e jovens.

E se os alunos pedirem que a conversa e produção de imagens de seus medos continuem? Como ficará a apostila do bimestre?

Como os gregos e romanos que tinham o Destino acima dos demais deuses, sugiro entregar a ele esse mister, esse enigma crucial para a educação estrangulada pela lógica do consumo.



Jeosafá é escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria),  em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora, e no mesmo ano A lenda do belo Pecopin da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela Mercuryo Jovem. Leciona para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados de São Paulo.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

O poço cego do inconsciente, a vara, a linha, o anzol e a isca

Dor. Carvão. Claudindei Roberto, 1985.

Trato aqui um bocadinho, mas bem bocadinho mesmo, do mundo subjetivo, que pode ser representado das mais diversas maneiras, por todas as artes e linguagens. Raiva, paixão, medo, euforia, saudade, lembranças, sonhos, pesadelos entre outros são tornados conscientes por meio das linguagens, mas pertencem ao obscuro mundo do inconsciente individual humano, no qual a razão e as leis científicas têm pouco espaço.

Tornar consciente essa dimensão oculta de nós mesmos permite que aprendamos com ela, que conquistemos um mínimo de controle sobre emoções, sentimentos e pensamentos e, o principal, que criemos formas para viver melhor.  

Os textos verbais subjetivos (descrições, narrações, dissertações) são mecanismos para trazermos nossos fantasmas, medos, fantasias (boas ou más) para a luz. À luz da plena consciência, eles não nos assustam mais, nem hipnotizam e, símbolos que são, podem ser lidos, analisados, interpretados e compreendidos – passo decisivo para que assumamos domínio na construção e transformação de nossa integridade emocional e intelectual, e de nossa identidade individual e social. 

Enquanto nos textos objetivos, entre os quais os informativos, as regras da estruturação seguem modelos consagrados (a notícia tem um formato pré-estabelecido, assim como os textos dissertativos, por exemplo), nos textos subjetivos, embora haja gêneros canônicos (conto, crônica, poema, romance, teatro entre outros), o que conta é a total liberdade de criação. 

Isso ocorre porque não há a menor possibilidade de que a subjetividade aflore na ausência de liberdade de expressão. Em um texto subjetivo, em primeiro lugar está a adequação da forma à expressão da emoção, dos sentimentos, das sensações do autor. 

A coerência a que um texto subjetivo deve acorrer é a coerência interna a ele. A verdade desse gênero de texto é a verdade inventada em seu próprio interior. Nele, pedras podem voar, animais podem filosofar; seres humanos podem se converter em monstros e voltar à forma humana; de uma cena a outra, pode-se morrer e ressuscitar, se transmutar, levitar. 

Os textos subjetivos flertam com os sonhos, com os pesadelos, com o mágico, com o impossível, sob a ótica da razão chã. Acontece que o indivíduo humano enlouqueceria se não sonhasse (dormindo ou acordado) voar, viver aventuras de risco total, desvendar ou defender segredos vitais ou mortais. 

E enlouqueceria também se não conseguisse se livrar de seus pesadelos ou expressar suas fantasias e desejos por meio do teatro ou da pintura, do romance ou da música, da dança ou do cinema, da poesia ou da história em quadrinhos. 

Quanto sofremos perdas dolorosas, somos atirados num poço sem fundo de luto e tristeza. Se não pescarmos nas águas desse poço cego os símbolos por meio dos quais se possa converter essa dor, esse sofrimento, em uma nova narrativa, estaremos perdidos no labirinto de nossa própria subjetividade atormentada. 

Em situações como essas só a arte nos salva. Ainda que a arte pouco festejada: a de se aprender com a própria dor (não por acaso a psicanálise recorre à literatura desde seu surgimento). 

Por mais que resistamos, se desejamos seguir em frente, é preciso pescar no poço cego das perdas – e a linguagem em geral e as artísticas em particular são essa vara, essa linha, esse anzol e essa isca.



Jeosafá é escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria),  em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora, e no mesmo ano A lenda do belo Pecopin da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela Mercuryo Jovem. Leciona para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados de São Paulo.

domingo, 7 de agosto de 2016

O traidor ainda implorará de quatro "Meu reino por um cavalo"

Ator Ian Mckellen, o Ricardo III do filme
homônimo de Richard Loncraine.
Não sou pessimista, pois sei que estes dias sombrios e de maus presságios vazarão para as artes, entre elas o teatro, e permanecerão não como assombrações para gerações futuras, mas como memórias para reflexão de maus dias, que convém não esquecer para que não retornem na forma de pesadelos.

Na linguagem, sons, partes de palavras, palavras, frases, orações se articulam (na língua escrita) em parágrafos, capítulos etc. e dão origem aos gêneros textuais ou literários, entre os quais o teatro.

Diferentemente da objetividade dos textos informativos, a linguagem do teatro se organiza inteiramente na esfera da subjetividade.

Se a linguagem objetiva busca o equilíbrio, no teatro exagero não só é válido como é o mais frequente, no drama, como na tragédia ou na comédia, isso porque as emoções humanas literalmente sobem ao palco e entram em cena.

No teatro, todos os fantasmas, medos e emoções ganham espaço por meio dos diálogos, em que sonhos, mas também pesadelos; fatos plenos solidariedade, mas também de cobiça, inveja, trapaça e ódio são representados em linguagem organizada para emocionar, surpreender, assustar, fazer rir, chorar ou refletir.

Antes do cinema, foi o teatro o responsável por tornar consciente de maneira coletiva a alma humana, com suas grandezas e baixezas. Antes de gritar "Meu reino por um cavalo", Ricardo III, de William Shakespeare, já assassinou no palco o irmão, obrigou a cunhada a desposá-lo e usurpou a coroa e o trono, numa das representações mais contundentes da degradação a que chegou a Inglaterra em um de seus períodos menos gloriosos.

Quem desejar conhecer de maneira mais objetiva essa fase transtornada da monarquia britânica, precisa mergulhar nos compêndios de história. Porém a verdade é que Ricardo III é mais conhecido no mundo inteiro pelas mãos de Shakespeare do que pelos textos acadêmicos, e é por essa via que ele chegou ao cinema no século XX em várias versões.

Se não fosse o dramaturgo inglês, Ricardo III estaria definitivamente morto para as gerações futuras, e sua múmia simbólica, confinada em algum sarcófago acadêmico empoeirado, seria objeto de estudo de uns poucos historiadores ou arqueólogos excêntricos.

Agradeçamos a Shakespeare a prevalência no tempo desse fantasma depravado, que com frequência é ressuscitado dos livros e sobe aos palcos para se oferecer como elemento de comparação com outros tantos que a vida real não cessa de produzir nos nossos dias.

Não sou pessimista, pois sei que estes dias sombrios e de maus presságios vazarão para as artes, entre elas o teatro, e permanecerão não como assombrações para gerações futuras, mas como memórias para reflexão de maus dias, que convém não esquecer para que não retornem na forma de pesadelos.


Jeosafá, professor, foi da equipe do 1o, ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria);  em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora; no mesmo ano publicou A lenda do belo Pecopin da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para o a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.