sexta-feira, 20 de abril de 2012

Um poema antigo

Interrompo a sequência de textos sobre literatura que têm lugar neste blog para apresentar ao leitor um poema cometido pelo poeta Cíbio Bote, nos idos dos anos 90, e publicado pela editora Plêiade em Dois poetas Paulistanos, no ano de 2007. Como em minha série de romances Era uma vez no meu bairro a questão da geografia é importante, essa rosa dos ventos estranha me diz muito respeito. Divirtam-se com os versos possíves de serem formados a partir de leitura em sentidos horário, anti-horário, em cruz, em linha, em espiral etc.



quinta-feira, 15 de março de 2012

O monumento do Borba Gato está afundando

Os acontecimentos em ZONA SUL orbitam em torno da bizarra estátua do Borba Gato, do escultor Júlio Guerra, inaugurada em 27 de janeiro de 1963. Digo orbitam, mas digo mal, pois as histórias dos quarenta e um episódios se passam em torno, acima, embaixo e mesmo dentro do seguramente mais polêmico monumento da cidade, que desperta pasmo em quem o vê de frente e ojeriza em que o vê pelas costas.

Este monumento situa-se exatamente sobre o que virá a ser a estação Borba Gato do Metrô, linha lilás, afundada em lama,cujas fraudes afofam o solo para receber a escultura bizarra.

Para produzir o texto, realizei uma cuidadosa reportagem fotográfica da região, numa área triangular que se estende da bifurcação das avenidas Santo Amaro e Adolfo Pinheiro até a Cidade Dutra, já à margem do autódromo de Interlagos, com o terceiro vértice situado no aeroporto de Congonhas. Isso geograficamente falando, pois também me debrucei sobre a imigração espanhola no Brasil, a partir de coleta de relatos de descendentes e pesquisa bibliográfica, num espaço de tempo que remonta ao distante ano de 1808, quando os franceses tinham ocupado a Espanha e Madri se encontrava levantada contra os invasores.

Por isso, dizer que o palco principal dos acontecimentos é o monumento do Borba Gato não é dizer tudo, pois o enredo que une os quarenta e um episódios de Era uma vez no meu bairro - ZONA SUL, se do ponto de vista cronológico parte desse ano perdido no tempo, geograficamente parte de uma Madri ocupada e mergulhada em fuzilamentos, passando ainda por terras do interior paulista, ziguezagueando pelo interior da Bahia e não deixando de fora nem mesmo uma certa região chilena dos Andes envolta em neblina, gelo e não menos sangue.

A genealogia estilhaçada pela violência no volume ZONA NORTE vai sendo , assim, recomposta com cacos do passado guardados na memória familiar não como relíquia, mas como elementos vivos, sem o quais todos os esforços de superação individual e coletiva perdem a coerência e mesmo o valor.



Em torno do Borba Gato, assim, orbitam valores, porém em crescente conflito. Muitos desses valores estão relacionados à tradição bandeirante, que em suas manifestações mais nocivas e anacrôncias alimenta ainda nos dias de hoje uma elite anquilosada e patética, que opõe paulistas ao restante do Brasil, desprezando a realidade inconteste do caráter mestiço, híbrido e generosamente solidário de nossa cultura, em que estão presentes caipiras e nordestinos, japoneses e gaúchos, italianos e espanhóis, libaneses e eslavos, alemães e índios entre muitas, muitas e muitas outras contribuições oriundas de toda parte do mundo.


Para explicitar o anacronismo e a natureza caquética dessas elites orgulhosas de seu passado de caçadoras de índios e negros, ousei incrustar no texto ficcional do romance trechos representativos de documentos senão oficiais, ao menos públicos, contemporâneos, em que essa arrogância “bandeirante” e biliosa, difusora de ecos revanchistas da revolução de 32, se apresenta nítida e bisonhamente.


O leitor identificará no corpo dos respectivos episódios essas incrustações. Tendo curiosidade, poderá digitar no Google frases dessas incrustações e será remetido diretamente ao documento público fonte. Seguramente se espantará pela nitidez do tom amargo e provocativo desses discursos que, ai de nós, são proferidos por nossos governantes atuais. Também, com certeza, não tivera eu aqui apontado a natureza real desses discursos, o leitor consideraria esses trechos de meu ZONA SUL a mais delirante caricatura dos políticos conservadores que ora não sei se nos governam ou importunam. Ai de mim,quisera eu que essas incrustações fossem fruto de minha fantasia predisposta ao exagero e, às vezes, à galhofa. Porém, não.



Por enquanto, mais não digo. Em breve informarei outras curiosidades de Era uma vez no meu bairro – ZONA SUL, que, antes de tudo, é fantasia, diversão – que se não dispensa a galhofa, muito menos lágrima sentida.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Mozart das lavadeiras




JB foi despertado do flash back de entrevero socialista pela música profundamente linda e profundamente melancólica que, através da parede, chegava abafada a seus ouvidos, vinda do apartamento ao lado.
Embalou-se por alguns segundos na névoa de notas melodiosas, plásticas e entorpecedoras, levantou-se da banqueta, deu chauzinho para as fotografias do espelho e foi à campainha da vizinha, importuná-la talvez.
JB fez o que Nenê mandou. A mãe no tanque e a namorada na mesa de passar roupas se sobrepunham, condensadas pela música diluente de Mozart. Fosse qual fosse o dia da semana, aquele momento era um domingo à noite, desmaiado, perdido no tempo, ou melhor, solto num lapso atemporal.
Nenê, ali, concentrada nas volutas barrocas da sinfonia, a alisar a roupa amorosamente era todas as mulheres de Itaquera, todas as mulheres pobres do mundo, todas as mulheres trabalhadoras havidas e por haver, na lida de tornar a roupa mais macia para se vestir e a vida mais digna para se viver.
Deu um nó na garganta do cineasta, que observava a companheira como se ela fizesse parte da orquestra em transe na execução dos movimentos sinfônicos.
O primeiro andamento muito alegre da sinfonia número quarenta avançava célere, com Nenê exibindo virtuosos solos de ferro quente sobre camisetas de malha e calças de algodão. Jeans, regatas, camisas de todas as cores, fronhas ganhavam aparência de novas. Que dignas, que macias, que mozarteanas, que... humanas.
Um toque do dedo indicador de Nenê fez a música saltar. Agora era a Pequena Serenata Noturna.
As pilhas de roupas amassadas iam se reduzindo, enquanto as pilhas de roupas alisadas iam crescendo. Peças mais delicadas iam direto para cabides pendurados no varal provisório que cruzava a sala. Peças de gaveta, iam sendo dobradas com mãos de violinista.
Agora, a parte mais difícil, a que a mãe moça de João mais ouvia, ela que chorava sobre a água do tanque nesse momento tão lindo e triste: o do Andante do Concerto 21 para piano.
Nenê, firme na lida do ferro quente, tornou-se vaga, distante, nostálgica. Ou João estava efetivamente apaixonado, ou Nenê era a mulher mais linda mundo, ou Mozart revelava a beleza escondida sob o pano turvo da realidade, ou era tudo isso junto ao mesmo tempo.
A namorada alisava o pano, erguia a face, olhava através da janela do apartamento, cujo vidro aparava o chuvisco, e baixava novamente os olhos para a tábua de passar roupas. Faltava pouco, mas a expressão de cansaço somada à pungência do Andante tornavam o final de domingo uma peça interminável de beleza, angústia e atemporalidade.
As gotículas a cintilar no vidro da janela à luz de neon da rua lembravam o braço da vitrola a deslizar nas faixas lustrosas do LP de vinil, no qual um pouco de água da torneira sempre respingava.
João pensou que sua mãe também talvez odiasse lavar e passar roupa. Quem garante que o que a fazia derramar lágrimas na água do tanque não fosse a música do gênio barroco, mas o ódio da vida idiota em comparação com a música celestial?
Nenê levou o namorado pela mão à janela, abriu o vidro para o reflexo interno não atrapalhar a visão e apontou com o dedo indicador da mão direita a noite de chuvisco.
Em cada uma, num conjunto habitacional apinhado de prédios, uma mulher esfalfada, com pilhas maiúsculas de roupas para passar, encerrava o domingo melancólico.
João baixou os olhos, certo de que a vida sem arte verdadeira não tem a menor chance de ser digna:
No CDPlayer, o Segundo Movimento do Concerto para Clarinete estendia um Mozart humano, morno, suave e tristonho. Tangidas pelo vento, gotículas de chuvisco iluminavam-se próximo às luminárias de neônio, depois, sumiam-se na sombra.
Findo o Concerto para Clarinete, silêncio de prelúdio, quando a máquina busca o início da próxima trilha. Pronto, o leitor digital encontrou o que procurava, e um doce, gotejado, pungente som invadiu a atmosfera do pequeno apartamento como um vapor de água subido de ferro quente.
JB moveu-se lento no espaço exíguo e apanhou o estojo do disco. Parou os olhos na trilha do Concerto para Piano em Dó Maior, KV 427, número 21, Andante.
Confirmada a dúvida que espiralara ao compasso da harmonia impregnante, retornou a seu lugar, ao lado de uma Nenê cismada com as silhuetas escuras e ágeis nas janelas semiluminadas.
Nas janelas dos prédios envoltos na noite, silhuetas dançantes entre pilhas de roupas formavam um teatro mágico de sombras ao final de um domingo chuvisquento, melancólico mas não perdido em vãs divagações.


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Era uma vez no meu bairro
Zona Norte e Zona Leste
www.eraumaveznomeubairro.blogspot.com