segunda-feira, 12 de abril de 2010

O Inspetor Geral, de Nikolai Gógol


Trad. Gabor Aranyi

Esta comédia de Gógol, famosa e muito exibida pelo mundo todo, versa sobre visita sigilosa de um agente do governo que põe em polvorosa toda uma comunidade habituada a pequenos, médios e grandes embustes.

O medo de que esse inspetor descubra a muitas corrupções, das miúdas às graúdas, é exposto à crítica mordaz do riso, numa tradução que, por um lado, situa a linguagem no gosto popular, como a crítica enfatiza em relação ao original, sem fazer, contudo, o texto encaminhar-se para a comédia bufa, gênero teatral importante, mas do qual a peça em questão não se aproxima.

A comunidade, insegura tanto com relação à data da chegada do funcionário, quanto com relação à sua, do inspetor, identidade, explicita nos diálogos os pecados em risco de serem revelados e punidos, e se prepara para maquiar a realidade, de forma que tudo se apresente na mais completa ordem administrativa e legal ao enviado do Czar.

Pela ótica de seus pecados e de suas culpas, a comunidade de administradores locais acaba identificando erroneamente Ivan Aleksandrovitch Klestakov com o dito “auditor” do governo central. Porém, Aleksandrovitch é na realidade um funcionário público em viagem que, depenado de suas economias no jogo de cartas, está em dificuldades para quitar sua estadia no hotel em que se instalou.

A sucessão de enganos, trapalhadas, estratégias diversionistas para iludir o Inspetor – e de confissões a título de remissão de “pecadinhos à-toa” – conferem ao texto uma natureza cômica e acidamente crítica:

Ammos Fiodorovitch: Não vai ser nada fácil mudar isso. O coitado diz que, quando era bebê, a mãe deixou ele cair, e desde então tem esse cheiro.

Prefeito: Eu sei, eu sei, disse só por dizer. Mas o que o Andrei Ivanovitch em sua carta chama de pecadinhos à toa – permitam-me que não fale sobre isso. Além do mais, é estranho lembrar logo de pecado, pois não existe gente sem fraquezas. O próprio Senhor nos criou assim – até mesmo os voltairianos vociferam contra isso em vão.

Ammos Fiodorovitch: O que o senhor chama de pecadinhos à-toa, Anton Antonovitch? Existe uma boa diferença entre pecado e pecado. Eu confesso, abertamente, que não recuso um presente. Mas que presente? Filhotes de Galgo. Nem merece menção.

Prefeito: Filhote de galgo ou outra coisa qualquer: não deixa de ser um presente.

Ammos Fiodorovitch: Tudo bem, tudo bem, Anton Antonovitch! Se alguém recebe um casaco de peles que vale pelo menos uns quinhentos rublos e a esposa um xale que vale pelo menos...

Prefeito: E daí? O senhor acha que ser subornado com um filhote de galgo é um assunto menos sujo, quando nem mesmo acredita em Deus?! Nem mesmo vai a igreja! Eu, pelo menos, tenho firmeza na minha fé: todo domingo estou lá sentado no banco! Mas e o senhor? Eu conheço bem o senhor! Quando começa a falar da criação do mundo eu fico com os cabelos em pé!”

Esta edição conta ainda, ao final do volume, com os seguintes textos: “Excerto de carta que o autor enviou a um escritor, logo após a estréia d’O Inspetor Geral”; “Advertência prévia aos que querem representar O Inspetor Geral corretamente”; “A luta de Gógol pela comédia Russa” e “Notas”.

Esses textos são contribuições orientadoras que o leitor não deve desprezar, pois projetam luzes sobre a peça, sobre o autor, e sobre as particularidades relacionadas à montagem do espetáculo que, encenado na escola integralmente ou com adaptações à realidade brasileira ou escolar, oferecerá saborosas lições de riso.

FONTE: Gógol, Nikolai. O Inspetor Geral. Trad. Gabor Aranyi. São Paulo. Ed. Veredeas, 2008.

Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen

Trad. Gabor Aranyi

Nora incorre em um deslize ético: falsifica a assinatura do pai, em vias de falecer, para obter o empréstimo que salvará a vida do marido, Torvald Helmer. Esse deslize, desculpável em face do amor e das circunstâncias, uma vez exposto, revelará a teia de relações hipócritas em que ela está envolvida.

Porém, diferente do que a literatura do fim do século XIX frequentemente apresenta como solução ao tédio da mulher insatisfeita no casamento, o adultério, nesta peça, o desencanto da protagonista faz com que as escamas lhe caiam dos olhos e se converta em lucidez frente às convenções machistas, que condenam a mulher à função de escrava do lar ou, na melhor das hipóteses, ornamento mimoso de sala de estar – caso de Nora.

A atitude de Nora em face das relações que aniquilaram seus sonhos, sua individualidade e sua identidade pessoal valeu à peça censura por parte dos conservadores de época, que viram nela um sério risco a instituições tais como: o casamento indissolúvel, a família patriarcal e a moral burguesa, tão afeitos às aparências:

“Helmer: Mas você é minha mulher; como é agora e como o que quer que venha a ser.

Nora: Ouça, Torvald. Quando uma mulher deixa a casa de seu marido, como eu estou fazendo agora, a leis – segundo ouço dizer – absolvem o marido de qualquer obrigação para com ela. De qualquer modo, eu o deixo livre de agora em diante. Inteira liberdade de parte a parte. Olha, aqui está o seu anel: devolva o meu.

Nesta edição, a tradução de Gabor Aranyi situa o texto em um nível de linguagem que a um só tempo confere grande fluidez e verossimilhança aos diálogos. Nela os diálogos, situados na privacidade do lar pequeno-burguês ou em situações informais de interlocução, oferecem-se ao leitor sem artificialismos retóricos voltados a dificultar gratuitamente a linguagem ou a conferir-lhe uma erudição que os críticos não apontam no texto original, e fazer sem concessões a populismos linguísticos que, no afã de “facilitar” a leitura, terminam por corromper a própria obra.

A leitura coletiva dramática desse texto e, mais ainda, a montagem dessa peça na escola têm como facilitadores o reduzido número de personagem, a exiguidade dos ambientes em que o drama se desenrola, a temática muitíssimo atual e os diálogos primorosos, por meio dos quais a consciência de Nora vai sendo despertada para a possibilidade de alteração radical de seu destino, ainda que a custa da decepção e da dor.

FONTE: Ibsen, Herik. Casa de Bonecas. Trad. Gabor Aranyi. São Paulo, Ed. Vereda, 2007.

A Casa de Bernarda Alba, de García Lorca

A Casa de Bernarda Alba é o único texto em prosa que Federico Garcia Lorca escreveu para teatro. É também uma espécie de canto de cisne do poeta, que pouco depois se tornaria vítima inocente da ditadura franquista que tanto abominou.

Nessa peça, Bernarda Alba exerce um poder tirânico sobre as filhas. Estas, submetidas a uma lógica autoritária voltada a um passado morto e a um moralismo sufocante, são como que cozidas na panela de pressão em que a casa foi transformada pela viuvez, em segundo matrimônio, da matriarca, que decreta um luto de oito anos a todas e aspira a um total controle da vida das filhas:

Pôncia: Como sujaram o chão!

Bernarda: Parece que uma manada de cabras passou por aqui. (Pôncia limpa o chão.) Filha, me dê um leque.

Adela: (Adela lhe dá um leque com flores vermelhas e verdes).

Bernarda: (Arremessando o leque ao chão) É um desse que se dá a uma viúva? Dê-me um leque negro e aprende a respeitar o luto de teu pai.

Martírio: Toma o meu.

Bernarda: E você?

Martírio: Não tenho calor.

Bernarda: Busca outro, pois vai fazer falta. Nos oito anos que durar o luto, não entrará nesta casa a brisa da rua. Faz de conta que tapamos com tijolos as portas e janelas. Foi assim na casa de meu pai e na casa de meu avô. Enquanto isso, comecem a bordar o enxoval. Na arca tenho vinte peças de linho com as quais podem cortar lençóis e mantos. Madalena pode bordá-los.”

Porém, em uma panela de pressão só se pode esperar que tudo se cozinhe mais rápido e a temperaturas superiores.

A mãe, acreditando ter o controle total do que se passa na casa não toma conhecimento do drama amoroso clandestino que se desenrola sob seu nariz, e cujo desfecho se revelará profundamente trágico.

A linguagem expressiva acrescenta carga emocional aos diálogos já bastante carregados de tensões, estas, decorrência direta das imposições da matriarca e de seu papel declarado de miliciana da repressão sexual.

Não apenas pelo valor artístico, político e histórico da peça, mas também pela atualidade do tema de que trata, a sexualidade feminina, o texto merece ser estudado, encenado e debatico na escola.

Com certeza isso suscitará vivo debate e acrescentará vitalidade ao cotidiano escolar que, quanto mais vivo e dinâmico, mais produtivo e cativante – para alunos e professores.

FONTE: Lorca, Federico. A Casa de Bernarda Alba. Trad. Marcus Mota. São Paulo, Ed. UnB; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000.