segunda-feira, 12 de abril de 2010

O Santo Inquérito, de Dias Gomes


Branca Dias é uma bela jovem, respeitadora da família, sincera em sua fé em Deus e será queimada na fogueira em 1750, por ordem do Tribunal da Santa Inquisição, a partir da acusação formulada pelo Padre Bernardo que, salvo de afogamento pela jovem, tem sua fé abalada pela libido que a mesma jovem lhe desperta.

A ingenuidade da jovem em relação aos sentimentos do padre e sua ignorância acerca das origens judaicas da família a levarão, como uma borboleta indefesa, à teia de aranha em que se entrecruzam o recalque sexual do padre Bernardo e os interesses da Igreja, naquele período profundamente ligados ao do Estado.

Nada que disser livrará a jovem da teia mortífera em que se enredou por distração quando salvou o padre do afogamento. Ao contrário disso, cada frase por ela emitida em sua defesa será interpretada pelo “homem” Bernardo como em menoscabo de sua atração – por isso convertida em ciúme tormentoso – e pelo “padre” Bernardo como manifestação herética:

Padre: você me estendeu a mão uma vez e me salvou a vida; agora é a minha vez de retribuir com o mesmo gesto.

Branca: Mas eu não estou em perigo, padre.

Padre: Toda criatura humana está em permanente perigo, Branca. Lembre-se de que Deus nos fez de matéria frágil e deformável. Ele nos moldou em argila, a mesma argila de que são feitos os cântaros, que sempre um dia se partem.

Branca (Ri): Tenho um cântaro que meus avós trouxeram de Portugal. Durou três gerações e até hoje não se partiu.

Padre: Naturalmente porque sempre teve mãos cuidadosas a lidar com ele e a protegê-lo. Queria que você me permitisse protegê-la também, defendê-la também, porque é uma criatura tão frágil e tão preciosa como esse cântaro.

Branca: Eu lhe agradeço. Mas não acho que mereça tantos cuidados de sua parte. Sou uma criatura pequenina e fraca, sim, mas não me sinto cercada de perigos e tentações.

Padre: A segurança com que você diz isso já é, em si, um perigo. Prova que você ignora as tentações que a cercam.”

A peça leva para as luzes do palco três dramas humanos muito atuais, a pretexto de um evento ocorrido no século XVIII: o do homem que, privado do amor e do sexo pela religião, torce por meio da retórica os fatos para seus próprios interesses; o da estigmatização e da perseguição de uma fé religiosa por outra associada ao Estado; e o da violência extrema contra a mulher.

Diante do leitor do texto ou do expectador da peça, o drama de Branca Dias evolui como uma procissão de pesadelo: a jovem é boa e generosa, defende-se com sinceridade, mas caminha celeremente para a fogueira, que vai sendo armada e alimentada pela mágoa pessoal de um homem, cujo sentimento ferido aciona cordões do poder, e pela hipocrisia do Tribunal da Inquisição, que necessita de fogueiras esporádicas para justificar sua existência.

Se o texto da peça possibilita o estabelecimento de ricas relações entre literatura, história e política, a montagem dela na escola permite que se vislumbre em cena três importantes temas sociais, bastante em voga nos dias de hoje: a sexualidade humana, a intolerância religiosa e o papel da mulher na família, na sociedade e no mundo do trabalho.

Outra atividade interessantíssima seria comparar o texto e a eventual montagem dessa peça com outra do mesmo autor: O Pagador de Promessas. Quais pontos de contato há entre elas? Quais diferenças? Que temas abordam e que dramas põem em cena?

Após realizar trabalhos de leitura e cênico com esse texto de Dias Gomes, seria interessante observar o comportamento dos estudantes e seu interesse nos estudos.

FONTE: Gomes, Dias. O Santo Inquérito. 26 ed. Rio de Janeiro, Ed. Bertrand Brasil, 2009.

O Pagador de Promessas, de Dias Gomes


Escrita em 1959, O Pagador de Promessas, tão logo encenada, recebeu ampla acolhida do público e da crítica teatral, que identificou nela uma obra-prima de Dias Gomes e do teatro brasileiro.

No texto dessa peça, personagens, enredo, cenas e diálogos articulam-se de forma enxuta, como se fossem engrenagens de um preciso relógio que, impulsionado pela linguagem popular, tratada com plasticidade e sem concessões ao populismo, empurra Zé do Burro para seu destino trágico.
O próprio dramaturgo, na “Nota do Autor”, constante desta edição, afirma:

“O homem, no sistema capitalista, é um ser em luta contra uma engrenagem social que promove a sua desintegração, ao mesmo tempo que aparenta e declara agir em defesa de sua liberdade individual. Para adaptar-se a essa engrenagem, o indivíduo concede levianamente, ou abdica por completo de si mesmo. O Pagador de Promessas é a estória de um homem que não quis conceder – e foi destruído.”

Ambientada na Bahia, o enredo da peça flagra, já na primeira cena, Zé do Burro e Rosa, sua mulher, diante da igreja em Salvador, na qual pretende pagar a promessa feita a Santa Bárbara em intenção de seu burro Nicolau, que se livrou da morte quando da queda de uma árvore.

O conflito colocará em campos opostos a forma ingênua, popular e sincrética da religiosidade de Zé do Burro e uma forma de religião institucionalizada, comprometida com as elites até as entranhas e eivada de preconceitos:

: Seu vigário me desculpe, mas eu tentei de tudo. Preto Zeferino é rezador afamado na minha zona: sarna de cachorro, bicheira de animal, peste de gado, tudo isso ele cura com duas rezas e três rabiscos no chão. Todo mundo diz. E eu mesmo, uma vez, estava com uma dor de cabeça danada, que não havia meio de passar. Chamei Preto Zeferino, ele disse que eu estava com o Sol dentro da cabeça. Botou uma toalha na minha testa, derramou uma garrafa d’água, rezou uma oração, o Sol saiu e eu fiquei bom.
: Do demo, não senhor.

Padre: Você fez mal, meu filho. Essas rezas são orações do demo.

Padre: Do demo, sim. Você não soube distinguir o bem do mal. Todo homem é assim. Vive atrás do milagre em vez de viver atrás de Deus. E não sabe se caminha para o céu ou para o inferno.

: Para o Inferno? Como pode ser, padre, se a oração fala em Deus? (Recita) “Deus fez o sol, Deus fez a Luz, Deus fez toda a claridade do Universo grandioso. Com sua Graça eu te benzo, te curo. Vai-te, Sol, da cabeça desta criatura para as ondas do Mar Sagrado, com os santos poderes do Padre, do Filho e do Espírito Santo”. Depois rezou um padre-nosso e a dor de cabeça sumiu no mesmo instante.






Padre: Não é para curar, é para tentar. E você caiu em tentação.”

A adaptação da peça para o cinema, realizada por Anselmo Duarte e estrelada por Leonardo Villar e Glória Menezes, teve estrondoso sucesso junto ao público no Brasil e ampla repercussão internacional após a conquista da Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1962.

Um desafio encantador para a escola seria, após ler o texto e assistir ao filme, encenar essa peça, integralmente ou na forma de adaptações, nas quais os alunos, a partir de sua própria experiência e criatividade, poderiam participar ativamente.

Com certeza, um professor, uma turma e uma escola que se envolvessem num trabalho como esse nunca mais seriam os mesmos.

FONTE: Gomes, Dias. O Pagador de Promessas. 50 ed. Rio de Janeiro, Ed. Bertrand Brasil, 2009.
: Como feiticeiro, se a reza é pra curar?
Padre: Meu filho, esse homem era um feiticeiro.
Sacristão: Incrível!

Eles Não Usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri


Para falar sobre a peça, no “Prefácio” ao texto de Eles Não Usam Black-Tie, Delmiro Gonçalves dá voz ao próprio Gianfrancesco Garnieri :

“Aliás, habituado ao teatro, desde criança, quando acompanhava meus pais, não perdendo uma ópera das temporadas líricas, acostumei-me a tratá-lo como coisa doméstica, sem muita cerimônia. O gosto pelo teatro existia. Podia fazer ou não fazer teatro, pouco importava. Parecia-me que quando quisesse eu poderia fazer teatro, assim, à toa, como coisa natural.
Escrever peças de teatro foi a mesma coisa, assim à toa, sem querer. Escrevi Eles Não Usam Black-Tie rapidamente. Levantava-me à noite para escrever. E divertia-me muito com os personagens que surgiam, principalmente com Chiquinho. Fui o primeiro a chorar com o final do terceiro ato. E minha admiração por Romana foi sempre imensa.”


Escrita em 1955, quando o autor tinha apenas vinte e um anos de idade, essa peça, saudada desde o início como um marco do nosso teatro, põe frente a frente os valores gestados no interior de uma família proletária.

Impulsionados por uma greve operária num momento de ascensão de lutas populares, pai e filho se veem em campos opostos em razão da perspectiva de cada um. Porém, o papel conservador no conflito é desempenhado, como seria de se esperar, não pelo pai, mas pelo filho, cuja índole individualista o associa a uma perspectiva ideológica e política contrária à de sua família e de seus companheiros de trabalho.

Décio de Almeida Prado, ao abordar a peça – o texto também consta do Prefácio desta edição – chama a atenção para o humanismo idealista do pai e para a fantasia de ascensão social do filho, ambos, ao fim das contas, mergulhados em graus variados de ilusão. Mas alerta também para o papel central da mãe, Romana, cujo realismo lhe dá força, e à família, para enfrentar e vencer diariamente as provações da dura vida proletária.

Enquanto o pai, em seu engajamento político, encara a greve de um ponto de vista idealizado e moral (como deveriam ser as coisa e como não são), o filho, envolvido em indecisões pessoais – que no ambiente social se apresentam como vacilações de caráter –, considera o conflito na fábrica um risco em potencial a seus projetos.

Em meio às duas posturas, Romana, a mãe, fala – e age, pois se trata de teatro – com realismo ao marido:

Romana – Saiu o aumento?

Otávio – Que aumento! Sem greve não sai aumento!

Romana (reprendendo-o) – Otávio!...”

E fala com ironia ao filho, iludido por uma ilusória chance no cinema:

Romana – Minha filha, deixa esse Tirone Pover aí e me ajuda a levar esses pratos lá pra fora. O pessoal está chegando.

Otávio – Caçoa, caçoa que não te dou entrada de graça!”

A adaptação dessa peça para o cinema, realizada por Leon Hirszman, tornou-se um grande sucesso. Aproveitando as experiências de ascensão da luta por liberdades políticas no Brasil ao final da ditadura militar, o cineasta transpôs o conflito para a segunda metade década de 1970.

O elenco repleto de talentosos atores, do qual participa inclusive o próprio Gianfrancesco Guarnieri, no papel do pai, Otávio, conta com Fernanda Montenegro (Romana, a mãe), Bete Mendes (Maria, a noiva de Tião), Carlos Alberto Riccelli (Tião), Milton Gonçalves (Bráuli) entre outros.

No longa-metragem, com canções de Chico Buarque de Hollanda e Adoniran Barbosa, Tião e sua namorada, grávida, decidem casar-se, em meio a uma greve metalúrgica em São Paulo. Tião, a pretexto do casamento, fura a greve e entra em confronto com o pai, um velho militante que enfrentou a cadeia durante o regime militar.

Nesta feliz adaptação, o conflito representado na peça de Guarnieri ganha as telas e atinge o grande público. Embora as referências históricas tenham sido alteradas, as qualidades que conferiram ao drama teatral perenidade se preservam no filme. E com isso estabeleceu-se em relação à obra um paradoxo típico dos nossos tempos audiovisuais: toda uma nova geração passou a conhecer a obra pela adaptação cinematográfica, sem jamais ter tido acesso ao drama teatral.

Por isso, mais do que ler o texto da peça e assistir ao filme para compará-los, encenar uma peça como Eles não usam Black-Tie na escola ou montar em classe cenas dela extraídas é muito importante, pois permite o contato do estudante com um clássico de nosso teatro, por meio do qual se pode empreender um mergulho em profundidade na história do Brasil e nos dilemas de uma sociedade que, oscilando entre longos períodos de ditaduras e breves soluços de vida democrática, vive seu mais longo período de estabilidade política.

FONTE: Guarnieri, Gianfrancesco. Eles Não Usam Black-Tie. 21 ed. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 2009.