segunda-feira, 12 de abril de 2010

O Brasil das Placas, de José Eduardo Rodrigues Camargo e L. Soares


O Brasil das Placas reúne fotos de placas espalhadas pelo Brasil, cada uma delas resenhada por uma estrofe de cordel. Muito criativo, dá oportunidade de o leitor viajar pelas paisagens do país e de rir dos conteúdos e formas empregados pelos autores das placas para veicular suas mensagens, às vezes irônicas, às vezes humoradas, às vezes simplesmente erráticas.

Atire a primeira pedra quem nunca ou riu ou ficou indignado ante uma placa confusa ou simplesmente mal escrita. Agora, atire outra pedra, ou a mesma, se a primeira ainda não foi atirada, quem nunca cometeu um erro de concordância estapafúrdio.

A verdade é que todos aqueles que fazem uso da linguagem verbal, oral ou escrita, estão sujeitos a enganos ou distrações que podem ter resultados imprevisíveis – inclusive nenhum.

Alguém que digita rapidamente no teclado de um computador a palavra “cronologia” pode escrever, sem o desejar, a palavra “cornologia”, tanto quanto alguém, ao preparar a resenha de um livro, pode redigir “uma bela foto de campa” no lugar de “uma bela foto de capa”. Se no primeiro caso o engano suscita o riso, no segundo, alude a algo funesto.

Quantos escritores não terão alterado a redação de um texto seu ao ler, na revisão final, uma palavra surgida como que do além, no entanto saída de seus próprios dedos? Com certeza, muitos, senão todos.

Neste O Brasil das Placas, tem-se a oportunidade de ler uma quantidade considerável de textos que, abstraídos os contextos – as placas – e as intenções de quem os produziu, poderiam ser considerados frutos de erros, enganos, distrações ou segundas intenções:

FAMÍLIA MUDA
VENDE TUDO

Na frase da placa reproduzida logo acima, a dubiedade das palavras “muda” –
que tanto pode ser o verbo “mudar” quanto o adjetivo feminino “muda “(sem voz) – e “vende” – que tanto pode ser o verbo vender como o verbo vendar (tapar os olhos) – confere à placa efeito humorístico a um leitor culto ou atento.

Porém, o flagrante fotográfico de duas placas oficiais afixadas à margem de uma rodovia, uma a dez metros de distância da outra, sem que haja qualquer nexo comum entre ambas, ganha um sentido surpreendentemente irônico:

Primeira Placa:

DEVAGAR
PERIGO

Segunda Placa:

FISCALIZAÇÃO
RECEITA ESTADUAL A 1000m

A intenção do órgão de trânsito, na primeira placa, é advertir o motorista sobre as condições da rodovia. Já na segunda placa, fixada por outro órgão, a intenção é informar os veículos de transporte comercial sobre a eventual abordagem da fiscalização 1km à frente. Mas o leitor, tendo ambas as placas no mesmo campo visual, está compelido a associar as duas mensagens num só sentido. Seria interessante tentar “corrigir” essas placas para se ver o que se ganharia e o que se perderia com isso.

Este livro é uma excelente amostra do que pode a língua portuguesa quando está distraída e a quilômetros de distância do gramático mais próximo.

FONTE: Camargo, José Eduardo Rodrigues. O Brasil das Placas. São Paulo, Ed. Panda Books, 2007.

Canto Geral, de Pablo Neruda


Trad. Paulo Mendes Campos

Devolva o Neruda que você me tomou e nunca leu”, diz a belíssima canção de Chico Buarque de Hollanda e Francis Hime.

Na internet é possível encontrar debates sobre o porquê de o livro de Neruda ter sido citado na disputa de separação de um casal; sobre a dor de quem pede, em tom magoado, o livro de volta; sobre a insinuação de que o livro não foi valorizado ou compreendido por quem o tomou emprestado etc. Porém, não seria desperdício indagar também qual o título do livro que o magoado amante pede de volta à amada de quem se separa.

A obra de Pablo Neruda, cuja relevância foi reconhecida com a premiação do Nobel de literatura em 1971, é extensa. De modo que só haveria um modo se saber exatamente a que título Chico Buarque e Francis Hime se referem.

Seria a Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada? Ou seria a Cem Sonetos de Amor? Ou seria ainda a Canto Geral? Qualquer que seja a obra, desde que a amada decida não restituir, o prejuízo será considerável.

Como o objeto desta resenha é o Canto Geral de Neruda, ela, a resenha, corporativistamente pode considerar, a título de hipótese, que o alvo da discórdia é mesmo este magnífico volume de poemas de amor pela América Latina e por seu povo.

Se a amada o tomou emprestado e não o leu mesmo – como lamenta a canção –, não sabe o que perdeu. Nessa condição, se vier a nunca restituí-lo, o agravo será ainda maior, pois sequer há a consciência da extensão do dano causado ao ex-namorado.

A canção termina antes que o dilema se resolva, quer entre os amantes, quer para os fãs dos dois músicos que, privados do título do livro citado em meio à discórdia, se veem forçados a tecer hipóteses sobre a obra de Neruda e sobre as imponderáveis razões do coração.

A tradução de Paulo Mendes Campos para este Canto Geral franqueia ao leitor um mergulho sem par na linguagem virtuosa desse poeta chileno que, nessa obra, aventura-se por tempos geológicos e históricos, em meio a uma geografia soberba em vegetação, em fauna, em minério e em sacrifícios:

“Todo o inverno, toda a batalha,
todos os ninhos do molhado ferro,
em tua firmeza atravessada de aragem,
em tua cidade silvestre se levantaram.

O cárcere renegado das pedras,
os fios submersos do espinho
fazem de tua aramada cabeleira
um pavilhão de sombras minerais.”

(“XIII. Araucária – Canto Geral do Chile”)

Em Canto Geral, o abundante vocabulário a descrever vida e chão, personagens e intenções, e a narração, a recompor fatos históricos, se embaraçam num exuberante entrelaçamento de raízes, troncos, galhos, folhas, planícies, montanhas, heróis, traidores...

O som e o ritmo dos versos embalam a audição e projetam na retina do leitor paisagens monumentais e cenas de contornos e volumes quase palpáveis, nas quais os dramas humanos se configuram e nas quais a água e o sangue jorram das cordilheiras e dos homens com igual generosidade.

A história da América Latina passa por essas páginas a partir da visão de mundo e da sensibilidade do poeta. Cotejar o que ele diz nesse Canto Geral com livros de história ou com conteúdos da internet é uma atividade instigante. Será que o poeta exagerou em algo?

FONTE: Neruda, Pablo. Canto Geral. Trad. Paulo Mendes Campos. 14 ed. Rio de Janeiro, Ed. Bertrand Brasil, 2008.

Antologia Poética, de Vinicius de Moraes

A poesia profundamente sensível e humanista de Vinicius de Moraes encontra-se representada com dignidade nesta edição de bolso que chega às mãos do leitor com uma bonita foto do autor na capa e com páginas em papel Pólen.

Esta Antologia Poética de Vinicius de Moraes em formato de bolso se baseia na mesma publicada também pela mesma editora em 1990, a qual deriva da seleção realizada pelo próprio autor em 1967 para a editora Jose Olympio. Reúne um amplo panorama da produção do poeta até a data.

Os poemas podem ser lidos em ordem aleatória, sem qualquer contraindicação, porém, se o leitor optar pela leitura linear, observará – uma vez que a organização da obra é cronológica – não uma evolução linear e harmônica no tempo, mas uma trajetória fortemente marcada por dramas individuais e coletivos que, ao afetar a sensibilidade do poeta, implicaram em radical ruptura, com significativas alterações nos planos temático e de linguagem.

Ao longo dessa obra, o poeta se vai desprendendo de um idealismo inicial (em que a morte, a culpa, a dor individual ocupam o centro ideológico dos poemas, elaborados no tecido de uma linguagem soturna e algo complexa) até atingir, ao final da obra, em linguagem direta e clara, a temática social e participante.

Coerente com a “Advertência” que faz a título de prefácio, o autor organizou a coletânea de forma a que o leitor observe sua luta com e pela linguagem, concomitantemente com sua luta em busca de compreender melhor o indivíduo e seus conflitos e o mundo dividido em classes – e suas guerras.

Embora o autor demonstre clara preferência pela produção mais recente, o leitor não se deve deixar iludir com as palavras dessa “Advertência”, pois se o autor desprezasse de fato os poemas reunidos no que chama de primeira parte, simplesmente não os teria publicado na Antologia.

Em que pese a evidente mudança de perspectiva entre os poemas da primeira e os da segunda parte dessa obra, o lirismo, a sensibilidade, o humanismo, a experiência filtrada pela subjetividade, o trabalho refinado com as palavras, verdadeiro virtuosismo de linguagem, são observáveis em ambos.

A título de ilustração, vejamos dois trechos de poemas, um da primeira parte:

“Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas
A vida fere mais fundo e mais fecundo
E o sexo está nelas, e o mundo está nelas
E a loucura reside neste mundo.

Tende piedade, Senhor, das santas mulheres
Dos meninos velhos, dos homens humilhados – sede enfim
Piedoso com todos, que tudo merece piedade
E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!”
(“Elegia desesperada”)

E outro da segunda parte da obra:

“Contem-lhe, bem em segredo, que eu devo estar prestes, que meus
Ombros não se devem curvar,que meus olhos não se devem
Deixar intimidar, que eu levo nas costas a desgraça dos homens
E não é o momento de parar agora; digam-lhe, no entanto
Que sofro muito, mas não posso mostrar meu sofrimento
Aos homens perplexos; digam-lhe que me foi dada
A terrível participação, e que possivelmente
Deverei enganar, fingir, falar com palavras alheias
Porque sei que há, longínqua, a claridade de uma aurora.”

(“Mensagem à Poesia”)

Assim, o leitor não deve levar à risca as palavras da “Advertência”, pois há poemas belíssimos em ambas as partes da obra.

Tirará maior prazer o leitor, aliás, se comparar os poemas da primeira com os da segunda parte, atividade que terá como resultado, sem dúvida, o reconhecimento de que – a despeito da revolução ideológica sofrida e assumida pelo autor – se está, inequivocamente, diante de um mesmo íntegro, fraterno, humano, apaixonado e genial Vinicius de Moraes.

FONTE: Moraes, Vinicius de. Antologia Poética. São Paulo, Ed. Cia. Das Letras, 2009.