domingo, 29 de setembro de 2024

CRÔNICAS CARIOCAS — Bandeira de volta ao largo do Boticário

Vez por outra entro nas redes sociais para saber se o mundo já acabou. Não sei por que insisto nessa prática, uma vez que a dúvida é ociosa. Sim, o nosso mundo já acabou e as outras formas de vida habitantes do planeta apenas se perguntam quando é que faremos as malas, tomaremos naves espaciais sem bilhete de volta e os deixaremos em paz, para que reiniciem o mundo a partir do ponto estragado da evolução das espécies em que os deixamos.

Numa dessas redes sociais em que me afundo no prazer mórbido de gozar o Armagedom, li uma postagem cheia de coloridos e letras apelativas que trazia uma mulher jovem, bonita, de óculos, a sorrir e oferecer “10 dicas de novos livros para ler”. Achei a oferta suspeita, pela simples razão de não haver razão para uma publicidade, das profundezas do fim de tudo, oferecer “de graça” cordas pelas quais se subir e escapar ao limbo. Desliguei o celular enfarado com a constatação de que o fim ainda estava no prefácio e fui fazer o que vinha planejando havia muito.

Era sábado, um fim de tarde fosco, não obstante setembro e início de primavera, com um vento fazendo o ar circular agradavelmente, e algumas gotículas erráticas, de vez em quando, picando a pele da face. Se chovesse, ora, nem isso, se garoasse ou mesmo chuviscasse aqueles chuviscos que nem compensa abrir o guarda-chuva, que eu não trazia comigo, teria que me abrigar em algum canto, pois a minha velha antologia Estrela da vida inteira, de Manuel Bandeira, não suportaria mais essa desfaçatez, das tantas a que a tenho submetido nos últimos anos.

Não choveu, nem garoou, sequer chuviscou. Só essas gotículas brincalhonas me acompanharam na caminhada do largo do Machado, pelas ruas das Laranjeiras e Cosme Velho, até o alto do largo do Boticário, onde Manuel Bandeira se deixara fotografar pela extinta revista O Cruzeiro — foto que consta da edição que levava comigo, cuja capa estava protegida canhestramente por um plástico filme, desses que se usam na cozinha.

As gotículas erráticas tiveram um efeito maravilhoso, que foi o de esvaziar as ruas, onde poucos carros circulavam e menos gente ainda. Exceto por um homem  que levava seus três cães pelas respectivas guias e seu ego sem a sua, e que para se fazer notar trancou o passeio por torturantes longos instantes na tarde vazia  a caminhada só se interrompeu nos semáforos.

Em pouco mais de trinta minutos estava eu lá, no exato ponto em que Bandeira tivera sua imagem fixada em preto e branco, já idoso, em calças escuras e paletó claro refletindo o sol forte, a cabeça baixa atenta ao piso irregular, a caminhar pelo calçamento de pedras mal cortadas do leito da rua do beco de acesso ao largo.

Não só o piso do leito da rua como o das calçadas e mesmo as fachadas pareciam os mesmos da foto, com ligeiras alterações. Só o poeta estava ausente, até eu abrir a antologia na página respectiva e uma agradável sensação de pertencimento circular por meus nervos como uma onda morna de felicidade.

Visitei o largo do Boticário com a pretensão (ó alma vaidosa!) de restituir — ao menos durante a minha permanência no local — o poeta, sua antologia em mãos, a um de seus espaços mais caros.

Porém, escrevendo esta crônica, me dei conta da sutileza do poeta: foi ele quem me levou pela mão até lá, e, verdade seja dita, foi também ele quem me deixou, meses antes, à porta do edifício em que morou por último, na avenida Beira-Mar. 

Placa no edifício São Miguel, na avenida Beira-Mar,
bairro do Castelo, Centro do Rio.
Nesse edifício São Miguel, Bandeira morou primeiro nos fundos, que dava para o beco que servia de lixão, que ele registrou no poema O bicho:

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Rio, 27 de dezembro de 1947

Depois, Bandeira mudou-se para um apartamento de frente do São Miguel, cuja fachada dá para o aeroporto Santos Dumont, que ele registrou no poema Lua Nova, datado de agosto de 1953, constante do livro Opus 10 e da antologia Estrela da vida inteira, que eu trazia comigo:

Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir:
Hei de aprender com ele
A partir de uma vez
– Sem medo,
Sem remorso,
Sem saudade.

Bandeira me levou pela mão, aos vinte anos, à sua poesia, e agora, aos sessenta anos de juventude, a esses seus lugares sagrados. Porém há ainda um roteiro extenso que ele percorreu no Rio e que me falta cumprir. Próxima parada, Santa Teresa, onde ele morou na rua do Curvelo, hoje Dias de Barros, e onde escreveu textos clássicos como os Poema do Beco, Primeira Canção do Beco, Segunda Canção do Beco e Última Canção do Beco.

Sem pressa, vou ao roteiro, me metendo pelos becos cariocas da literatura, onde o mundo ainda não acabou e talvez esteja só começando.

Evoé, Manuel Bandeira

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Hoje professor da rede pública estadual do Rio de Janeiro, foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).