Num momento
em que a intolerância, o ódio e o racismo vicejam nas redes sociais – a bem da
verdade cada vez mais combatidos e em franca defensiva – um samba enredo de São
Paulo responde aos iracundos não na mesma moeda, mas com a moeda de ouro da
beleza. Assim, a escola de samba Colorado do Brás, vermelha até no nome, vem
para o Carnaval de 2018 com um belíssimo samba enredo que encaixa em todos os
sentidos.
O ritmo e a
cadência de CAMINHOS DA FÉ vai num crescendo contagiante que torna impossível a
quem o ouve ficar parado um só instante. A força dos tambores africanos
atravessam a pele, a musculatura, os nervos, os ossos e atintem diretamente o
coração, que passa então a pulsar na frequência portentosa da bateria. Quem participa
dos ensaios da Colorado do Brás sai dizendo que sentiu o sangue fluir quente
pelo corpo:
Mãe África
derrame seu Axé
Semeando a
cultura
Em teu
sangue a bravura
Aos ventos
de Orum Ori Aláfia
Eparrey Oyá
Não só o
ritmo encaixa: a harmonia encaixa perfeita na letra, que articula línguas,
culturas e religiões de Brasil e África. É um verdadeiro poema hibrido em que
Brasil e África se abraçam numa comunhão de idiomas, mas também de almas. A
saudação a Oxóssi, ligado às forças da floresta, fauna e flora, abre uma
segunda estrofe do samba que é uma saudação ao orixá caçador, mas é também um chamado
contagiante à cultura e à religiosidade de matriz afro:
Okê Arô Ora
Yêyêo
Odoya Kawo
Kabecilê
Salubá Nãnã
Atotô Obaluaê
Ogunhê
Arroboboy Oxumarê
O refrão
mescla apelo ao ecumenismo, súplica humilde de filho e exaltação das raízes,
tem uma força de atração e de sentido que por si só age como antídoto poderoso
contra a intolerância.
Bahia de
todos os santos
Acolhe teus
filhos herdeiros da força
De seus
ancestrais
O samba
enredo é coroado com versos que convidam à retomada de seu próprio início, numa
metáfora de abre alas de rara beleza: o ciclo da vida, das águas, da festa
precisa ser sempre retomado, eternamente:
Hoje vai ter
Xirê. Hoje vai ter Xirê.
Roda baiana.
Salve todos orixás.
Axé!
Colorado vai passar.
Dessa forma a Colorado do Brás dá seu recado a esse tempo
confuso em que vivemos: com um samba cuja beleza em todos os sentidos deixa
racistas, perseguidores da cultura afro, intolerantes e “donos da verdade” simplesmente
mudos, catatônicos, sem chão debaixo dos pés para sambar.
Compositores: Marcio Pessi, Edson Dafféh, Gilson Caffé,
Magrão da Caprichosos e Hermes Sobral.

JEOSAFÁ, professor, foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.