Comemoração de 100 ano de Vinícius de Moraes na Editora Nova Alexandria
O Colégio Pioneiro adotou meu livro O jovem Mandela para turmas finais de Ensino Fundamental e inicial do Ensino Médio. A conversa foi muito legal com os alunos. Como nesse livro há incrustações de trechos do poema Mensagem à Poesia, acabei sendo convidado a participar do evento comemorativo dos 100 anos do Poetinha.
Quando eu concluíra o então Segundo Grau, hoje Ensino Médio, cometi uma de minhas maiores ousadias. Sucede que, desde que entrei na escola, ler foi uma atividade mágica, de prazer fruído ora com euforia, ora com concentração, ora com sofreguidão - porém, livros, só os das bibliotecas públicas, oásis em que me livrei de tanto deserto de humanidade semeado pela metrópole.
A ousadia foi que, comprometendo a renda familiar,
entrei em uma livraria do centro da cidade e comprei, de uma só tacada,
dois volumes de poesia de Cecília Meireles; Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto; uma antologia de Carlos Drummond de Andrade; e, de Vinicius de Moraes, além da Antologia Poética por ele organizada, os livros Para uma menina com uma flor e Para viver um grande amor.
Era o ano de 1982, anotado nas folhas de rosto desses exemplares, que
trago até hoje, amarelecidos no papel, mas sempre intactos no coração.
Eu tinha então 19 anos. E quando apanho esses
livros, continuo tendo. Esses poetas eu já frequentava em namoros sempre
interrompidos pela necessidade de devolver o exemplar à biblioteca
circulante. Levá-los em definitivo para casa selou um casamento desejado
e sempre adiado pela falta de dinheiro. Minha família não ficou mais
pobre por causa dessa ousadia e, passado o sentimento de culpa, vi que
tinha feito a coisa certa.
Vinicius, sedutor como lhe é característico,
adiantou-se sobre os outros poetas e dominou minha preferência por anos.
Ainda mais que eu era tímido e, numa época em que todos os meus amigos
estavam namorando e se casando, eu disfarçava essa timidez jogando
futebol quatro vezes por semana e me enterrando nos livros o restante do
tempo que sobrava do trabalho.
Decorei textos inteiros de Vinicius, a exemplo do
Poema de Aniversário, que eu recitava de memória no ônibus superlotado
para um amor platônico meu de então:
Porque
fizeste anos, Bem-Amada, e a asa do tempo roçou teus cabelos negros, e
teus grandes olhos calmos miraram por um momento o inescrutável Norte...
Eu quisera dar-te, ademais dos beijos e das rosas, tudo o que
nunca foi dado por um homem à sua Amada, eu que tão pouco te posso
ofertar.
Quisera dar-te, por exemplo, o instante em
que nasci, marcado pela fatalidade de tua vinda. Verias, então, em mim,
na transparência do meu peito, a sombra de tua forma anterior a ti
mesma.

Nas viagens de trem para o interior de São Paulo que
fazíamos para jogar futebol pelo Instituto Dom Bosco (comandado pelo
rigoroso padre Rosalvino - que engolia muito mal derrotas de seu time e
gritava da beirada do campo como um Muricy Ramalho mais raivoso), íamos
de jeans e camiseta branca cantando Regra Três, Garota de Ipanema, Por
que Será e outras do poeta que, morto em 1980, movia nossa geração, que
começava a conhecer o amor, e ingressava na juventude por essa porta de
beleza por ele aberta.
A
foto eu conhecia de há muito, porém a particularidade da caricatura
marota feita pelo poeta me foi revelada por sua filha, Georgiana, com
quem estive recentemente em um evento em São Paulo.
A esse evento, uma feira cultural organizada pelo
Colégio Pioneiro, de tradição japonesa, fomos convidados eu (em razão de
meu livro O Jovem Mandela ter sido adotado pela escola), Georgiana e
Maria, filhas do poeta (em razão da comemoração do centenário de
nascimento de Vinicius). Entre descidas e subidas de escadarias para
participar de atividades com jovens e crianças, fomos trocando ideias e
sentimentos; ela, de filha; eu, de leitor antigo da obra de seu pai. A
informação óbvia sobre a brincadeira de Vinicius me foi transmitida num
desses degraus pelos quais nos cansamos de subir e descer.
Num deles é que também revelei a Georgina o contrabando que fizera em O Jovem Mandela:
num dos capítulos, aproveitando a deixa de o próprio herói da luta
contra o apartheid ter-se declarado em sua autobiografia um romântico -
no que diz respeito às relações amorosas -, incrustei na fala de seu
personagem a transcriação de um trecho de Mensagem à Poesia, de
Vinicius, talvez um dos mais belos poemas contra a guerra escritos em
língua portuguesa.
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Prof. Jeosafá, Georgiana e Maria de Moraes nos 100 anos de Vinícius - Colégio Pioneiro. |
Perguntei a Georgiana se era fácil ser filha de
Vinicius de Moraes, ao que ela respondeu, entre risos: "Nada que mais de
trinta anos de psicoterapia não dê algum jeito". Na verdade, continuou,
mais ou menos nessas palavras: "Dividir o pai com todo mundo não foi e
ainda não é fácil - afinal, toda filha quer o pai todo pra si". Disse isso
e encaminhou-se para ouvir o coral da escola cantar Garota de Ipanema em
japonês, numa homenagem emocionante. Depois, subiu ao palco, com sua irmã,
Maria, para acompanhar as crianças e os jovens no restante da canção, agora em
português, embalada também nas vozes da plateia.
A propósito, a plateia, além do coro, também queria Vinicius só para si.
Texto elaborado para a Revista Princípios.
Texto elaborado para a Revista Princípios.