A presidenta do STF Carmen Lucia entra para a história como uma das figuras mais asquerosas da República. Ao atender a solicitação da organização fascista Escola Sem Partido, ela permite que sejam praticados nas redações do ENEM (que que caiu de mais de 9 milhões de inscritos para pouco mais de 6,5 milhões) crimes contra a pessoa humana fortemente penalizados pela nossa legislação. Agora a prática da tortura, a injúria racial, o preconceito contra deficientes, idosos, migrantes e imigrantes, a violência contra mulher, a pedofilia entre outros crimes serão pontuados.
Assim, aquilo que não se admite sequer em pichações de muros, e que é objeto de vasta legislação punitiva no Brasil e no mundo, no ENEM será validado. Nossa corte suprema, em seu pior momento, nos oferece um raio X de sua própria estrutura imoral e antiética.
Tudo o que se conquistou em termos de civilização, consagrado em lei, desde o fim da II Guerra Mundial, foi vilipendiado pela mais alta corte do país, que, assim, se associa e dá vitória a uma organização criminosa (Escola Sem Partido), para esfregar na cara dos brasileiros além de sua covardia, o esgoto ideológico, com o qual concorda e o qual legitima.
Os corretores das redações do ENEM deste ano terão de revolver esse esgoto ideológico para pontuar textos que fazem abertamente apologia dos crimes mais abjetos a que mentes perturbadas pelo ódio podem chegar. Não zerada, a redação terá de ser considerada em todos os critérios de correção: tema, estrutura, linguagem, proposta de intervenção, envolvidos nas competências avaliadas. Não contendo erro de português, por exemplo, poderá receber até pontuação máxima em linguagem, embora a linguagem esteja sendo usada para destruir e desmoralizar o próprio Exame.
Diante de um Congresso Nacional roído pela corrupção, de um Executivo fugitivo da polícia e de um Judiciário sócio do crime, vão restando poucas alternativas para a democracia, que não sejam a vias de fato.
JEOSAFÁ, professor, foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora; no mesmo ano publicou A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.
O coração generoso de Belchior parou na madrugada de hoje (30/4/17), mas o poeta-filósofo está mais vido do que nunca. Do meu arquivo pessoal, reproduzo reportagem de 1976, de Vitu do Carmo, para a revista Música,quando Belchior emplava CORAÇÃO SELVAGEM, depois de estourar no LP e Show Falso bilhante de Elis Regina os clássicos "Como nossos pais" e "Velha roupa colorida". Fiz a transição da adolescência para a juventude
ouvindo cantando Belchior. Ele me ensinou e àqueles de minha geração que
tiveram a sorte de compreendê-lo que a "voz ativa, ela é que é uma
boa". E que o grito de sede de justiça e liberdade não vem da boca, mas do
fundo mais fundo do coração.
BELCHIOR: A BUSCA INSANSÁVEL DO SUCESSO.
Revista Música, n. 13, ano II, 1976.
Por Vitu do Carmo
Seu talento como um dos letristas mais inovadores da música
popular brasileira foi que lhe assegurou prestígio junto à crítica e à boa
parte do público. Mas ao lado da criatividade, Belchior também deve seu sucesso
a uma infatigável disposição para perseguir tudo o que lhe interessa. Com a
mesma determinação, ele interpela a Censura Federal, que está retardando a
liberação de seu disco, ou percorre emissoras de rádio para que os
disquejóqueis o incluam na programação.
Tal determinação é compreensível em alguém que um dia
decidiu que iria “viver ou morrer de música”. E que durante um bom tempo
enfrentou a adversidade de um mundo novo e desconhecido, com a única certeza de
que precisaria lutar muito par se impor.
Nem os fidalgos leitores da revista Vogue, nem as simplórias fãs do programa do Chacrinha constituem, à
primeira vista, o público mais sensível da postura artística de Belchior,
considerado por muitos o mais importante renovador da música popular brasileira
na atualidade. Mas, numa clara demonstração de que não se subestima nenhum
veículo, Belchior faz questão de aparecer tanto numa revista que se esmera em
mostrar a última moda em roupa masculina, como num programa que se tornou
célebre pela distribuição de bacalhau ao auditório.
Justificando-se, ele alega que Chico Buarque e Caetano
Veloso, no início de suas carreiras, também frequentaram programas populares,
“desses que dão eletrodomésticos de presente”, e que isso apenas os fez mais
conhecidos, sem comprometer seus trabalhos. Não há dúvida, no entanto, de que
na convicção de que todo público merece o esforço do artista para conquistá-lo,
Belchior supera Caetano, Chico e quaisquer outros nomes de seu time – uma
constelação de autores com profundidade crítica em suas obras.
Em abriu, quando ainda se preparava o lançamento de seu mais
recente elepê, Coração Selvagem,
Belchior contabilizava os resultados do disco anterior, Alucinação, que já atingira a marca pouco comum de 150 mil
exemplares vendidos. Ele fazia outro tipo de balanço: para promover o disco, no
último semestre do ano passado, percorrera cerca de 60 cidades. O próprio
cantor e compositor ficou surpreso com as reações colhidas nessas andanças.
Julgava-se dono de um repertório “difícil” e acabou convencendo-se de que, ao
contrário, sua música é uma “arte popular”. Ele encontra a explicação para isso
no fato de seu trabalho “estar voltado para a realidade do povo”.
Belchior, um iconoclasta dos valores consolidados – chega a
dizer que “eles são todos péssimos” – demonstra, na verdade, um claro realismo
ao admitir sua dependência, como artista, de mecanismos estabelecidos. “Se os
artistas não fizerem mudanças”, costuma dizer, “os comerciantes é que irão
fazê-las. Mas não podemos esquecer que
também dependemos dos comerciantes. Nós fazemos as músicas e eles as vendem”.
Uma tal ponderação, para alguns, chega a ser estranha nos lábios de quem usa
palavras tão duras para explicar o esvaziamento da grande explosão cultural
provocada pela rebeldia dos anos 60, na qual sua obra colheu vigoroso empuxo.
“Toda experiência daquele período foi transformada pelo sistema em mercadoria,
em dinheiro, em lixo”, ele diz, com indisfarçável amargura.
Sua peregrinação pelas emissoras de rádio, com disco debaixo
do braço, e a humildade de procurar os disquejóqueis mais comprometidos com
auditórios inconsequentes, foi decisiva para consolidar sua situação atual. Não
faz muito tempo que seu prestígio era, no máximo, o de um bom compositor, mas
apenas com uma ou outra canção inserida em elepês alheios. Hoje seu contrato com a WEA
assegura-lhe até o privilégio de que cada novo disco que lançar terá como
suporte a montagem de um show, se necessário com ajuda financeira da gravadora.
Mas isso não diminuiu o disposição do autor de “Sujeito de
sorte” para continuar visitando programas de rádio e televisão. Recentemente,
ele teve que responder a perguntas do nível de “Você se lembra dos nomes de
todos os seus 22 irmãos?”, num programa da Rádio Mulher, em São Paulo,
apresentado pela também jurada de televisão Gilmara Sanches. E, por coincidência,
outra questão formulada pela entrevistadora, em que ouvintes que estavam
telefonando – se Belchior costuma ouvir muitos discos – deixou transparecer,
mais uma vez, o notável senso de disciplina profissional do autor, que já se
apresentou numa canção como “apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no
bolso”: “Ouvir música faz parte do meu trabalho”, afirmou. E destacou Bob Dylan
e Joan Baez como vozes mais assíduas em seu equipamento de som.
Para André Midani, diretor da WEA no Brasil, e responsável
pelo convite a Belchior para ser o primeiro contratado nacional da companhia –
que até há pouco se limitava a distribuir discos gravados pela matriz nos
Estados Unidos – seu escolhido é “uma pessoa com uma ambição incrível”.
Ávido também de seus direitos, o compositor de “Como o diabo
gosta” tomou a iniciativa de interpelar a Censura Federal, que se demorava na
liberação das músicas do elepê mais recente, Coração selvagem. Fez questão de ler o parecer dos censores;
descobriu que havia divergência entre eles quanto à conveniência ou não do veto
a determinadas composições. No fim, de dez músicas apresentadas, uma com o
título profético “Como se fosse pecado” foi proibida e outra – “Caso comum de
trânsito” – censurada em duas palavras. Belchior, de qualquer maneira, não se
sentiu menos “ferido e humilhado do que se os censores tivessem interditado o
disco inteiro.
Foi
muita sorte dele: descobriu uma banda de jazz em pleno sertão.
Coração selvagem é
o terceiro elepê que ele grava profissionalmente, depois de A palo seco, em janeiro de 1974, e Alucinação, em abril do ano passado.
Antes, em 1968, Belchior e alguns companheiros, que formavam o grupo de
viria ser depois conhecido como Pessoal
do Ceará, gravaram no estúdio Orgacim, em Fortaleza, um elepê de tiragem
restrita e distribuição praticamente limitada aos próprios intérpretes. Com
esse arremedo de realização, eles apenas aplacaram a ansiedade que sentiam por
uma verdadeira carreira, a se concretizar um dia, longe de Fortaleza, é claro,
pois, como Belchior diria na semi-autobiografia Fortaleza 3x4, “o que passa no Norte, pela leia da gravidade –
disso Newton já sabia – cai no Sul, na grande cidade.
Belchior desembarcou no Rio em abriu de 1971, trazido por um
avião da Força Aérea Brasileira, pois não tinha dinheiro para pagar a passagem.
O preço foi ter que cortar o cabelo para poder entrar no avião. Na bagagem
vinham algumas composições e muitos livros. “Em cada esquina que eu passava”,
diria depois a canção inspirada na dureza desses dias, “um guarda me parava,
pedia os meus documentos e depois sorria, examinando o 3x4 da fotografia e
estranhando o nome do lugar de onde eu vinha”.
Sobral, a cidade do Ceará onde ele nasceu a 26 de outubro de
1946, deu a Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes mais do que um
nome capaz de chamar a atenção na carteira de identidade. Foi lá que o futuro
compositor colheu as primeiras influências musicais, que começaram em casa,
pois a mãe era integrante do coro da igreja, o avô tirava sons na flauta, sax e
rabeca, e a avó dedilhava o violão. O pai, não. Era comerciante, mas com a
vantagem de que sua bodega vivia cheia de violeiros que improvisavam rodas de
cantoria. E, do lado de fora, havia serviço de alto-falante, onde desembocavam
os sucessos do Sul, de Ângela Maria e Edith Piaf, de Cauby Peixoto e Billie
Holiday. Receber essa variedade de ritmos já devia ser muita sorte para aquele
embrião de artista, isolado no sertão nordestino. Mas a vizinhança
reservava-lhe ainda um outro achado: uma família de negros protestantes, cujos
ascendentes tinham vindo dos Estados Unidos na época da Segunda Guerra. Era uma
verdadeira banda de jazz, que se reuniam todos os dias, no fim da tarde,
tocando um repertório pouco apropriado ao gosto local, mas que o menino
Belchior já espreitava intrigado.
Não era aquela música, no entanto, que ele começaria a
cantar em público pouco depois, aos 12 anos, quando passou a se apresentar em
feiras. Então, seu modelo era Luiz Gonzaga, cujos baiões repetia.
Mas logo depois Belchior vai para um colégio de padres, o
que introduz um novo ingrediente em sua formação musical: o canto gregoriano.
Este deixaria uma inconfundível marca na futura obra do compositor: as longas
letras, a notória discursividade, bem ao estilo dos cânticos que o menino era
obrigado a entoar em louvor a Deus.
No início, da década de 60, a seca tornou-se inclemente em
Sobral e Belchior acompanhou a família, na esperança de encontrar uma vida
melhor em Fortaleza. Na capital, fez o curso científico ao mesmo tempo que
ganhava algum dinheiro como carpinteiro ou fazendo máscaras para vender no
carnaval.
Findo o curso, procurou um mosteiro franciscano, pois queria
aprender filosofia. Nos dois anos e pouco que lá permaneceu, foi além do
currículo: descobriu que havia uma “biblioteca maldita”, onde apanhava livros à
noite, com alguns colegas, para durante o dia, escondido, se deliciar com T. S.
Eliot, Edgar Alan Poe, Brecht, os beatniks. E só foi posto para fora quando
teve a impertinência de mostrar aos seus superiores o produto de suas leituras
– uma tese segundo a qual sexo e prazer físico são fontes de inteligência e de
intuição criadora.
Em 1967, Belchior começou a estudar medicina, em Fortaleza.
Custeava os estudos com o que obtinha dando aulas particulares de biologia e
conseguiu chegar até o terceiro ano. Mas então sentiu-se “enlouquecido” com os Beatles e o tropicalismo
brasileiro e concluiu que tinha descoberto o verdadeiro caminho. Foi quando
cunhou a frase, uma espécie de lema que deve ter sido útil para manter o moral
nas muitas dificuldades que a decisão lhe acarretaria: “Vou viver ou morrer de
música”.
Comprou um violão e começou a estudar música de verdade. Ele
já se sentia plenamente apto a fazer as letras, mas queria um melhor suporte
melódico. Na verdade, a carreira de compositor não era uma escolha antiga.
Belchior deixa isso claro no folheto preparado em maio do ano passado pela
Phonogram para acompanhar o lançamento do elepê Alucinação. “O que eu sempre queria era escrever”, confessa. “Mas
num certo momento senti que era mais quente fazer música. Porque, não só em
termos de divulgação, mas ao nível do próprio receptor, o trabalho musical era
mais eficiente. Eu poderia cantar as mesmas coisas que estava querendo escrever
– só que com muito mais contato vivo, mais combatividade humana, muito mais
juventude”.
No final da década passada, o clarão dos festivais de música
popular irradiando-se do Sul atingiu Fortaleza, embora meio palidamente. Toda
aquela inquietação reforçou o sentimento de que havia algo a chamá-lo. Era hora
de fazer a lei da gravidade, cair par ao Sul.
Já em agosto de 1971, apenas quatro meses depois de chegar
ao Rio, Belchior ganhava o IV Festival Universitário, com “Hora do almoço” (“No
centro da sala/ diante da mesa/ no fundo do prato/ comida e tristeza). A música
deveria ser cantada pelo velho ídolo, Luiz Gonzaga, que no entanto não pôde
comparecer. Então Belchior mais dois
cantores – Jorginho Teles e Jorge Nery – todos vestidos de túnica e sandálias, “para
dar impacto”, entraram no palco e arrebataram o prêmio.
Mas as dificuldade do jovem autor não estavam terminadas –
antes, nem tinham começado. O esforço de Jorginho Teles conseguiu que a
Copacabana gravasse “Hora do almoço” com os três – mas assim eles só ocuparam a
face A de um compacto simples.
O disco seguinte só viria anos depois, também um compacto
simples, e já noutra gravadora, a Chantecler. Desta vez, com arranjo de Rogério
Duprat e cantando sozinho. Belchior mostrava uma música de cada lado, ambas de
sua autoria: “A palo seco” e “Sorry, baby”. Mas não era ainda o sucesso como
intérprete.
Belchior só pôde gravar seu primerio elepê – foi em 1974 –
depois de fazer sucesso como compositor, com músicas gravadas por Elis Regina e
Leny Andrade. A primeira canção de Belchior – em pareceria com Fagner – incluída
num elepê de Elis Regina foi “Mucuripe”, em 1972. A grande contribuição da
cantora para a consolidação do prestígio ao autor cearense, porém, ocorreu no
ano passado, com a inclusão de “Como nossos pais” e “Velha roupa colorida” no
elepê e no show Falso brilhante.
As coisas ficariam mais fáceis para ele, que, depois do
elepê Belchior, em 1974, na
Chantecler, gravaria Alucinação em
1976, na Phonogram e agora, em abril deste ano, Coração selvagem, na WEA.
Restou, da vida na grande cidade, antes do sucesso, a marca
da dura luta pela sobrevivência como cantor de boate, ou menos que isso.
Belchior morou no subúrbio carioca e chegou a trabalhar num hospital em troca
de comida. Em São Paulo, por uns tempos, viveu numa casa que estava sendo
demolida, de modo que ia mudando de um quarto para outro, à medida que as
paredes iam caindo. Só saiu de uma vez quando o último cômodo veio abaixo.
Jeosafá, professor, foi da equipe do 1o, ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora; no mesmo ano publicou A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.
A linguagem, ou a língua, aqui tomadas como sinônimos, pode assumir, a grosso modo, duas dimensões: a pragmática (prática) e a simbólica, sendo que nem a primeira nem a segunda são puras: tanto a dimensão predominantemente pragmática está mesclada com expressões de natureza simbólica, quanto a dimensão simbólica está contaminada pela dimensão pragmática da linguagem.
A dimensão pragmática da linguagem diz respeito ao uso cotidiano e prático da língua. Nela, os sentidos das palavras estão próximos e relacionados diretamente com os significados delas no dicionário linguístico: a palavra "caneta" representa um objeto empregado na escrita que se diferencia do lápis, feito com grafite, pelo emprego de tinta. Podemos, ao ouvir ou escrever "caneta", imaginar uma infinidade de formas, tamanhos e cores de caneta, porém a palavra está associada diretamente aos objetos possíveis de comporem um conjunto formado pelos diversos modelos de caneta. Ao chegarmos ao balcão de uma papelaria e pedirmos uma caneta esferográfica azul, o funcionário rapidamente exporá a nossa frente as que tiver para vender: escrita fina, escrita grossa, com cilindro colorido ou transparente etc. Todas, canetas.
Do mesmo modo, no uso didático, as palavras assumem por função esclarecer ideias, tirar dúvidas, exemplificar, refletir sobre aspectos da aprendizagem entre outros significados. As palavras aqui tendem a evitar duplos sentidos, buscam expressar ideias, conceitos, fórmulas, pensamentos com a maior exatidão possível, eliminando tanto quanto possível ambiguidades que induzam ao erro.
O mesmo se dá nas linguagens científica (sejam elas no campo das ciências exatas, no das humanas ou ainda no das linguagens) e informativa (ou jornalística), que também tendem à exatidão para comunicar conceitos, modelos científicos, fórmulas, fatos, sistematizar experiências ou experimentos etc.
Na dimensão pragmática o peso interpretativo é mínimo e o descritivo, máximo. Tanto que para os cientistas a partir do século XIX a ciência é antes de tudo uma descrição da realidade.
Em muitos sentidos, a dimensão simbólica é oposta à pragmática. Nela, ao contrário do que se disse até aqui, a linguagem se distancia da exatidão, as palavras se afastam de seus significados no dicionário linguístico e assumem francamente caráter ambíguo (de múltiplos sentidos).
Num romance, conto ou poema em que uma personagem está o tempo todo com uma caneta na mão a rabiscar, rascunhar, escrever, a palavra "caneta" é mais que um objeto destinado à escrita: ela simboliza todas tensões vividas pela personagem, seus sonhos, ansiedades, fantasmas, expectativas, traumas, desejos etc. etc. etc. Quando em posse dessa caneta em movimento, a personagem pode estar se sentido realizada ou torturada, em êxtase ou em sofrimento profundo, próxima do gozo ou à beira do suicídio.
Aqui o uso pragmático da linguagem cedeu espaço ao uso simbólico, que carece não apenas do dicionário linguístico, se bem que também aqui ele tenha lugar, mas de dois outros tipos de "dicionários" desordenados que estão depositados na mente e no coração do leitor: seu repertório de imagens (visuais, auditivas, olfativas, palatais e táteis) e seu repertório próprio linguístico.
Para se penetrar na dimensão simbólica da linguagem, ambos esses repertórios precisam ser ativados - e não basta isso: enquanto essa ativação não for automática e rápida, os sentidos relacionados às palavras não se constituirão no espirito do leitor (é como um computador que entrou em looping, que gira, gira, gira, mas não abre a página desejada e acaba por travar).
Embora os significados das palavras no dicionário sejam a base do sentido simbólico (afinal a palavra "caneta" significa caneta mesmo, e remete à imagem da caneta), para alcançar os infinitos sentidos simbólicos de uma palavra ou expressão (conjunto organizado delas), é preciso interpretar a palavra enquanto representação de símbolos e imagens, que remetem a sensações, sentimentos, pensamentos, ideias, conceitos, lembranças, experiências alegres ou dolorosas de vida repousadas em nosso inconsciente.
O símbolo "caneta" precisa suscitar em nossa lembrança o prazer de se ter usado pela primeira vez esse objeto. Quando nossa professora falou "Agora vocês podem usar a caneta", foi como se tivéssemos "ficado maiores", mais responsáveis, como se tivéssemos "crescido". Mas também o símbolo "caneta" remete seguramente a experiências que nos fizeram sofrer, por exemplo, aquela prova em que confundimos as alternativas na hora de fazer o X e marcamos por engano as erradas, embora soubéssemos as corretas.
Quanto mais imagens lembrarmos, quanto mais mobilizarmos nosso repertório de imagens, sensações, impressões visuais, auditivas, olfativas, palatais, táteis, conceituais (ideias e pensamento), maiores nossas chances de compreendermos as palavras-símbolo, que são o alfabeto da literatura.
Se a personagem inventada logo acima, presente em um texto de ficção, o tempo todo a rabiscar, escrever, anotar, num dado momento atira a caneta contra a parede e, não contente, a destrói com pisões, não é apenas uma caneta que está sendo destruída, mas talvez um sonho de escritor, poeta e de toda uma vida. Na caneta-símbolo destruída está selado o próprio destino de quem nela depositou tanta esperança subitamente frustrada.
Se essa personagem, arrependida, recolheu a caneta, guardou-a com carinho e a substituiu por outra para ressuscitar seu sonho no papel em branco, impulsos de vida triunfaram sobre os impulsos de morte. Porém se a personagem com a destruição da caneta pôs fim a seu sonho, enterrando-o definitivamente, podemos supor e mesmo deduzir, e mesmo apostar que o caminho de sua autodestruição se abriu como a boca de um dragão infernal. Daí para frente assistiremos à degradação de alguém que tinha tudo para dar certo, mas que perdeu-se definitivamente ao perder seu sonho.
A literatura depende dessa habilidade imaginativa do leitor, que pode e deve ser desenvolvida por meio de jogos simbólicos e práticas criativas de conversão da palavra-símbolo em imagens e da associação delas com situações, sensações, sentimentos, ideias, pensamentos já vividos por nós realmente (na forma de lembranças de experiências boas ou ruins) ou simbolicamente (filmes, músicas, peças de teatro a que assistimos, ou ainda jogos, brincadeiras, diversões prazerosas em que nos envolvemos durante a vida).
Quem não consegue imaginar, não acha graça em uma personagem ou situação hilária, porque simplesmente não a viu em sua mente, por conseguinte não a sentiu em seu espírito. Como rir do que, por não conseguirmos associar a nada, sequer visualizamos ou sentimos?
A cena da personagem pisoteando a caneta pode assumir um caráter trágico. Para captar essa tragédia, precisamos visualizá-la em detalhes. Porém, o autor pode introduzir um elemento de humor para "avisar o leitor" de que, afinal, o drama da personagem não é assim tão grave, e que seus exageros um tanto ridículos representam o ridículo a que todos nós estamos sujeitos quando perdemos o controle sobre nossas emoções.
No cinema, Chaplin foi campeão em extrair o riso dessas situações constrangedoras em que nos envolvemos sem querer, que parecem o fim do mundo, quando na verdade são apenas raiva momentânea e humanamente aceitável, digna de tudo, não de lágrimas.
A interpretação envolve assim a mobilização de dois repertórios interiores, o imagético e o linguístico, numa conversão (quanto mais automática possível, melhor) de palavras em imagens e símbolos, e destes novamente em palavras, que trazem para a consciência os segredos e mistérios embutidos nas imagens e nos símbolos.
Se não captamos a piada implícita, perdemos a oportunidade de rir e de extrair do riso a possibilidade de superação da dor que mora atrás ou no fundo de cada piada. Porém para captar a ironia do riso, é preciso imaginar a cena toda e deduzir dela o ridículo, o engraçado, o vexame, o humor.
Assim, quem "não gosta" de literatura tem antes de tudo uma questão a resolver com sua própria imaginação. Sem imaginar, não dá para sentir, gozar, ter prazer - aliás, nem com literatura, nem com coisa nenhuma.
Jeosafá, professor, foi da equipe do 1o, ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora; no mesmo ano publicou A lenda do belo Pecopin da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.